sábado, 16 de maio de 2009

TRIBUTO A DOIS POETAS:


um de Lisboa e outro de Feira de Santana, Bahia


1 - Relações transatlânticas (Em homenagem a Alexandre O’Neill, “um poeta bestial, pá!”, neto de irlandês e parente de Santo Antônio)

(Do livro "Sobre Pessoas – Editora Leitura, Belo Horizonte, 2007")


Por Antônio Torres


Alexandre O'Neill - Foto: embaixada-portugal-brasil.blogspot.com




AUTO-RETRATO O’Neill (Alexandre),

AUTO-RETRATO

O’Neill (Alexandre), moreno português,

Cabelo asa de corvo; da angústia da cara,

Nariguete que sobrepuja de través

A ferida desdenhosa e não cicatrizada.

Se a visagem de tal sujeito é o que vês

(omita-se o olho triste e a testa iluminada)

o retrato moral também tem os seus quês

(aqui uma frase censurada...)

No amor? No amor crê (ou não fosse ele O’Neill)

e tem a veleidade de o saber fazer

(pois amor não há feito) das maneiras mil

que são a somovente estátua do prazer.

Mas sofre de ternura, bebe demais e ri-se

Do que neste soneto sobre si mesmo disse...



Lisboa, 25 de junho de 1965.

Ontem desembarcou aqui um brasileiro sem passagem de volta. E com apenas 600 dólares no bolso. Ele tem 24 anos, nasceu na Bahia, mas veio de São Paulo. Viera na classe turística de um navio italiano bonitão, o Augustus — que fazia a linha Buenos Aires-Gênova — no qual embarcara no porto de Santos, ao anoitecer de um dia cinzento. Chegou a Lisboa nesse domingo, num fim de tarde ensolarado, oito dias depois.

À primeira vista, a cidade de casario senhorial, coberto de telhas, a admirar-se no espelho das águas do Tejo, era mesmo cheia de encanto e beleza, como a cantavam, nos dois lados do Atlântico. “Se o que vês não é apenas um monte de casas velhas, tu a mereces”, ele se disse. Bela porta de entrada à Europa! Mas haja expectativa, ansiedade, incerteza diante de seu novo mundo, dali por diante.

De mala à mão, desceu do navio, despachou-se na alfândega sem problemas, recebeu e leu um telegrama, assinado por um desconhecido, que lhe desejava boas vindas e se desculpava por não poder recepcioná-lo, em virtude de um compromisso de última hora, intransferível. Grata surpresa. Sentiu-se a adentrar um território hospitaleiro. E pegou um táxi, que o levou para uma pensão na Praceta João do Rio. Precisava ficar perto da Praça de Londres, onde havia um emprego à sua espera, numa agência de publicidade, garantido pelo próprio dono dela – o senhor Coelho -, numa carta que ele portava, e à qual respondera informando o mês e o dia em que chegaria, daí o telegrama que lhe entregaram, ao desembarcar.

Instalou-se na pensão, onde a mesa era farta e o quarto confortável. Respirou os ares da praceta frondosamente arborizada, mergulhou numa banheira de água quente e dormiu o sono dos viajantes. Hoje acordou cedo, bem dormido, mas ansioso para apresentar-se à empresa que, logo descobrirá, fica num belo endereço. Marinheiro de primeira viagem, ele se regozija pelo mar de almirante em que navega até agora. Aguardemos, porém, a sua primeira tormenta, logo ao chegar ao que julgava o seu porto seguro, e ser recebido por um gerente que, do alto da sua franqueza gerencial, disse-lhe, de cara, na lata, sem mais delongas, que ele, o brasileiro, não devia ter vindo. Sua mudança para Portugal havia sido um equívoco: “Pensávamos que o senhor fosse um desenhador e não redactor”.

Imagine o pânico. Os seus 600 dólares mal dariam para uma passagem de volta. Irredutível, o gerente esclarecia-lhe que Portugal não precisava importar redactores publicitários brasileiros, pois os tinha de sobra, a maioria romancistas e poetas famosos, como José Cardoso Pires e Alexandre O’Neill, já os havia lido?

Nada a fazer. Só lhe restava (a ele, o senhor gerente), desculpar-se pelo mal-entendido e... “Passar bem”.

O brasileiro não se deu por vencido: “Quer dizer que a assinatura do seu patrão não significa nada para o senhor?” A pergunta desestabilizou toda a convicção com que o até então empedernido gerente o despachava. Percebeu isso pelos seus visíveis sinais de hesitação, ao vê-lo pegar um lenço e passá-lo na testa, a dizer:

- Deixemos que ele próprio decida.

E telefonou para o senhor Coelho, que se encontrava em casa, a cuidar de assuntos pessoais, informou. O patrão não hesitou em honrar o compromisso assumido através de uma carta transatlântica. E pediu ao gerente para passar o telefone ao redactor brasileiro. Para lhe dar as boas-vindas, desta vez de viva voz. Ufa!

Começará amanhã. Portanto, hoje terá tempo para flanar pela cidade. Desceu e engraxou os sapatos em frente ao Café de Londres, enquanto se refazia do transe vivido nas primeiras horas do dia. Aquela situação embaraçosa poderia ter sido evitada, se o tal gerente, ao agir como um cão de guarda patronal, tivesse raciocinado com rapidez, e consultado o patrão, antes de atacá-lo (a ele, o recém-chegado), com todas as unhas e dentes. Que cara, quer dizer, gajo, de raciocínio lento! Seriam todos os portugueses assim, e cheios de má vontade com um brasileiro? Mas não. Pela diligência e simpatia do senhor Coelho não podia botá-los num mesmo saco.

Ficou um tempo observando os homens que iam e vinham pela calçada, todos muito velhos, tristes, cabisbaixos, pesadões, um passo hoje, outro anteontem, a dar voltas em torno de si mesmos, num círculo de desesperança. Como se carregassem nas costas e na alma o fardo de quatro décadas de totalitarismo - na era de Dom António de Oliveira Salazar -, três séculos de inquisições, dois mil anos de cristianismo. Parecia não haver nesta cidade uma só viv’alma da sua idade. Os jovens estavam na guerra na África ou haviam fugido Europa adentro. Perguntou-se o que tinha vindo fazer aqui. Daí a pouco perceberia que a viagem havia começado a valer a pena.

Foi assim:

No Café de Londres, ainda a remoer um resto de angústia, pelo impasse que o tal gerente criara, lembrou-se de que precisava telefonar para um certo Galveias Rodrigues, o dono da Telecine-Moro, a maior produtora de filmes publicitários de Portugal. O motivo da ligação era um presentinho que ele trazia do Brasil – um boizinho de barro do mestre Vitalino -, enviado por um diretor de arte de São Paulo chamado Laerte Agnelli, que havia trabalhado seis meses em Lisboa. Desenhador podia, claro!

Apressou-se em comprar ficha e se valer de um telefone público. Galveias Rodrigues o atendeu prontamente. Em menos de uma hora já estava em seu gabinete. E dele sendo levado a conhecer os estúdios de filmagem, sala de projeção, filmes produzidos, story-boards de comerciais em produção e, por fim, a ala dos criativos. Foi aí que o nome de Alexandre O’Neill lhe foi mencionado pela segunda vez, nessa manhã. Logo, quase que o conhecia, antes de a ele ser apresentado.

O poderoso Galveias Rodrigues despediu-se, deixando-o aos cuidados do seu próprio redactor, “um poeta bestial, pá”, que adorava o Brasil, sem nunca lá ter ido. Deu para notar isso logo à entrada da sua sala, que tinha uma das paredes decorada com crônicas de Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Vinícius de Moraes e Rachel de Queirós.

— Com que então és brasileiro! – ele exclamou. – Nasceste num país grande e por isso andas pelo mundo como se estivesses atravessando um quintal.

- E o que dizer dos portugueses, que nasceram num país pequeno e se meteram em quase todos os cantos do planeta?

- Ó pá! Agora me destes uma volta.

Ato contínuo, Alexandre O’Neill levou sua inesperada visita à parede, na qual colara também poemas de João Cabral de Melo Neto. Ao mostrá-los, disse ter sido o organizador da primeira antologia de João Cabral publicada pela Portugália Editora, em 1963. E que era amigo dele. Costumava visitá-lo em Sevilha, onde o poeta brasileiro da sua maior admiração diplomaciava, como cônsul do Brasil. Encerrando esse capítulo, comentou o rigor de João Cabral com as palavras, que lhe parecia obsessivo:

- Ele afia tanto a ponta do lápis que ainda vai acabar cortando os dedos.

Antes de partirem para almoçar, ele pegou o seu paletó, que estava pendurado nas costas de uma cadeira. Enquanto o vestia, surpreendeu o brasileiro com uma observação prosaica:

- É bonito este teu casaco.

- O teu também é bacana.

- Mas não tem o corte e o caimento deste teu.

- Foi feito sob medida, para a viagem. No entanto, não tem lá essas diferenças do teu. A não ser na cor.

- Queres trocar?

Então o brasileiro passou-lhe o seu paletó azul e vestiu um marrom. Os dois encaminharam-se para um espelho. E concordaram que a permuta havia caído bem em cada um. Além de selar o começo de uma amizade, que atravessaria os tempos. Foi na casa de Alexandre O’Neill que o brasileiro encontrou guarida, ao ficar desempregado em Lisboa – e por quatro meses! –, sendo assim recebido, à Rua da Saudade, 23:

- Não precisas de emprego, mas escrever. Vou te tratar a pão e água, para que escrevas.

- E por que achas que tenho que escrever.

- Porque um dia, logo ao chegares, recitastes para mim, de memória, trechos e mais trechos de Scott Fitzgerald. Então eu pensei: “Tenho que levar esse gajo a sério”.


Amigo

Mal nos conhecemos

Inauguramos a palavra “amigo”

“Amigo” é um sorriso

De boca em boca,

Um olhar bem limpo,

Uma casa, mesmo modesta, que se oferece,

Um coração pronto a pulsar

Na nossa mão!

“Amigo” (recordam-se, vocês aí,

Escrupulosos detritos?)

“Amigo” é o contrário de inimigo!

“Amigo” é o erro corrigido,

Não o erro perseguido, explorado,

É a verdade partilhada, praticada.

“Amigo” é a solidão derrotada!

“Amigo” é uma grande tarefa,

Um trabalho sem fim,

Um espaço útil, um tempo fértil,

“Amigo” vai ser, é já uma grande festa!


Claro está que aquele brasileiro ainda não havia lido isto. E que, até o dia 25 de junho de 1965, não fazia a menor idéia de quem era Alexandre Manuel Vahia de Castro O’Neill de Bulhões – por um lado, neto de um irlandês, e, por outro, parente de Santo Antônio, que também era um Bulhões. Portanto, não sabia que ele, aos 40 anos, era um dos maiores nomes das letras portuguesas do século 20, às quais legou páginas memoráveis, sobretudo em versos, como os de “Um adeus português”, “A pluma caprichosa”, “O poema pouco original do medo”, “O país relativo”, “Portugal”.

Sua obra poética está toda reunida num só volume, de mais de 500 páginas. Publicou livros de crônicas, com títulos curiosos, como “As horas já de números vestidas” e “Uma coisa em forma de assim”. Amou muitas mulheres (o brasileiro desta história conheceu algumas delas: Noêmia, a mãe de seu filho Xaninha, Pâmela e Teresa, com quem teve outro filho). Mudou de endereço uma vez, para a Rua da Escola Politécnica, 48. Teve um programa de TV, coluna em jornal, e muitos patrões, até não achar mais quem lhe desse emprego. Entre os altos e baixos, viveu à rasca, ou seja, com problemas de dinheiro. Viajou ao Brasil em 1983, quando conheceu o Rio, São Paulo, Salvador e Fortaleza, fazendo parte de uma delegação de escritores, que incluía José Saramago, Lídia Jorge, José Cardoso Pires e Lobo Antunes. (Ao embarcar de volta a Lisboa, no Galeão, disse: - Quem chega por este aeroporto pela primeira vez, fica a achar que está a chegar num dos países mais ricos do mundo.).

Alexandre O’Neill bebeu e fumou demais. Sofreu o primeiro enfarto aos 52 anos. Morreu no dia 21 de agosto de 1986, aos 62.

Em 6 de julho de 82, ele havia publicado no Jornal de Letras, de Lisboa, a seguinte crônica:

“Quando se está com pane cardíaca o universo míngua e um sujeito ‘desliga’. Passa para a categoria de ‘bom doente’ para ver se salva o canastro, mas não tem propriamente medo. Só tem medo que se enganem nos remédios e lhe enfiem os que são para algum vizinho... De resto, nada mais, a não ser que, quando se volta para casa, se sente tudo fora do sítio e não se acredita que o canastro volte à normalidade. Nem com um jornal na mão se pode andar. Nem se pode caminhar contra o vento. Nem... Nem... Nem... Até que um dia um sujeito se sente de repente melhor que novo e recomeça a fazer asneiras...”

*

Lisboa, 6 de novembro de 1995.

“Numa noite escura da alma são sempre três horas da manhã”.

Alexandre O’Neill: esta frase aí é de Scott Fitzgerald (lembra?) e serve à perfeição para revestir as horas já de números vestidas, sem que eu consiga pegar no sono. Vem um motorista me buscar aqui no hotel, às sete, para me levar ao aeroporto, onde devo embarcar para Roma, se sobreviver até lá. Que coisa estranha: rodei, rodei, rodei para, afinal, vir morrer em Lisboa. Estou com medo. E achando que desta noite não escapo. Não adianta mudar de posição na cama, deitar de lado até o ombro doer, esperando que o sono chegue. Já fui ao banheiro várias vezes, me olhei no espelho, pra ver se há algum sinal de morte na minha cara, que parece normal. Já bebi potes de água, e nada do sono baixar. É estranho mesmo. Muito estranho. Para piorar as coisas, vêm-me à memória uns versos da sua lavra:

Eu estava bom pra morrer

nesse dia.

Não tinha fome nem sede,

nem alarme ou agonia.

Comigo me desavenho nas horas que vão se vestindo de branco.

Estou no Hotel Tivoli, na Avenida da Liberdade. Ainda há pouco cheguei à janela e vi as árvores negras, peladas, desvestidas de folhas, como em todos os outonos de Lisboa. E pensei: “Provavelmente um dia eu já tenha vivido aqui. Mas isso faz muito tempo. Foi no tempo de Alexandre O’Neill”. O que escreveu:

Subamos e desçamos a Avenida,

Enquanto esperamos por uma outra

(ou pela outra) vida.

Estou aqui como jurado do Prêmio Camões, ora veja. E vim com o romancista Márcio Souza e o poeta Affonso Romano de Sant’Anna. O prêmio saiu para José Saramago, aquele que me deu uma carona da casa do nosso amigo Fernando Santos para a sua, numa noite de fevereiro de 1984, em que fui seu hóspede (outra vez!), por cinco dias.

Àquela altura, você estava passando a pão e água, eu me recordo. A ponto de catar tostões para uma refeição por dia, como me contou. E remoia-se em atribulações pelo fracasso de um casamento; um filho com problemas (parece que veio a se suicidar); nenhuma perspectiva de trabalho. Ainda assim, você se contorcia em dúvidas: se devia ou não aceitar uma bolsa mensal do Instituto Português do Livro, oferecida pelo presidente daquela instituição, António Alçada Baptista, seu amigo de todas as horas, até a última. (Foi ele quem me telefonou um dia, para me dizer, desolado, que você havia entrado em coma).

- Não achas que essa bolsa é uma espécie de esmola? – você me perguntou, num daqueles cinco dias em que me oferecia a sua casa, pela última vez.

- Aceite-a como um direito. Autoral. Como um pagamento do que os editores lhe devem. E isso está vindo em boa hora, não é? – foi o que lhe respondi, incitando-o a não vacilar mais, para não continuar se martirizando com a falta de dinheiro, até para o pão de cada dia.

Fui encontrá-lo no Instituto, depois dos seus acertos burocráticos com o Alçada Baptista, conforme o combinado. Quando cheguei lá, vocês dois conversavam animadamente. Você sorria. Gostei de vê-lo de novo ânimo, de uma hora para outra. O Alçada levou-me a um passeio entre ruas de livros. Estava orgulhoso do trabalho que vinha fazendo ali. E eu dele, pelo bem que lhe fizera. A você, Alexandre O’Neill, que por um momento voltava a sorrir.

Dali fomos almoçar com o bom Irineu Garcia, o brasileiro dos discos de poesia, amigo de toda a gente do meio literário nos dois lados do Atlântico, e que já havia se tornado um lisboeta. No entanto, confessou-nos estar em dúvida se deveria ou não voltar para o Brasil. Não teve muito tempo para se decidir. Acabou sendo encontrado sem vida, pelo Cardoso Pires, num dia em que marcara um almoço com ele.

Ainda há pouco o José Carlos de Vasconcelos, o do JL, em que você tanto colaborou, veio buscar o Affonso Romano de Sant’Anna e eu para um jantar de lordes. No caminho para o restaurante, o carro em que nos levava cruzou a Rua da Escola Politécnica. Olhei à direita tentando localizar o prédio onde você morava, mas não deu para vê-lo. Depois a jornalista brasileira Norma Couri me levou ao teatro, para assistirmos a uma peça de Hélder Costa.

Findo o espetáculo, o Hélder me deu uma carona para o Procópio, onde a atriz (e que atriz!) Maria do Céu Guerra nos aguardava. E, como sempre, para cobrar as minhas memórias de você, que são as do meu tempo de Lisboa, de Portugal, àquele tempo definido pelo Fernando Santos como “um doce país fascista”, então a atravessar uma das ditaduras mais longevas do mundo. E é esse o país que está ao fundo de seus poemas.

Agora, Lisboa já não parece a cidade de homens dos pés redondos, a dar voltas em torno de si mesmos, tal qual parecia ao meu primeiro olhar, naquela manhã em que engraxei os sapatos na calçada do Café de Londres, no dia 25 de junho de 1965. Agora a cidade está chiquezinha, engraçadinha, internetadazinha, globalizadazinha. Agora, sim, é que ela desfila no “luxo blindado dos seus automóveis”. Importados, pois, pois! Percebe-se uma nova classe nesse desfile. Resta saber de onde veio, o que faz e para aonde vai.

Hoje à tarde parei diante de uma vitrine aqui ao lado do hotel, atraído por um paletó bacanérrimo. Recordei-me do nosso primeiro encontro, na Telecine-Moro. Entrei na loja e perguntei o preço. 500 dólares! Ora, viva: Lisboa não era a cidade mais barata da Europa? Pensei: esse não vou poder permutar com o O’Neill. Desta vez fico-lhe devendo um novo paletó.

No Procópio, a Maria do Céu estava cercada de amigos, como o Raul Solnado, o comediante lendário. De repente me chamam ao telefone. Era a Leonor Xavier, que amanhã estará lançando um livro muito bem editado sobre Maria Barroso, a senhora Mário Soares. Falando nisso, me contaram uma história... engraçada? Vá lá. Consta por aqui que, quando você agonizava na cama de um hospital, disse que queria a presença, ao pé dela, do presidente da República, que não era outro senão Mário Soares. Ao saber disso, ele foi visitá-lo. Mas deixou o hospital sem entender nada. Você o teria enxotado, aos berros: “Tirem esse homem daqui! Quem o chamou? Não quero falar com ele!”

Feita essa digressão (para você rir aí um pouquinho de si mesmo), volto ao telefonema da Leonor Xavier: “Tu aqui e o O’Neill cá já não está”. Desligou e veio correndo, não sei se para me ver ou ao Raul Solnado, com quem andava estremecida, mas pelo que pude perceber acabaram voltando às boas.

Seja como for, gostei de revê-la. A última vez que a havia visto foi numa festa no Rio de Janeiro, patrocinada por ela, há muitos anos — para José Saramago! O que acaba de levar o Prêmio Camões. A propósito, estranhei um cidadão que me interpelou no Procópio. Ele havia me visto na televisão, a dizer bem do premiado. Disse-me, na lata, ao jeito lusitano sem peias, que não entendia o fascínio brasileiro pelo Saramago.

- Esse gajo é um chatarrudo, um antipático, que vive a dizer mal de Portugal — e continuou desatando uma data de impropérios nada glorificantes a respeito do velho Zé, que está famoso como um corno, e com toda pinta de Prêmio Nobel. Mas aqui lhe sovam. Imagine os estilhaços verbais que sobraram para mim, por ter participado do júri e dito na televisão que o prêmio era justo etc. Chiça! Tudo como dantes. Dizer mal de toda a gente é uma tradição portuguesa, com certeza.

Também diziam muito mal de você, eu me lembro. Quando você fazia um programa na televisão e tinha uma coluna no Diário de Lisboa. Deviam pensar que você estava de tripa forra, com dinheiro saindo pelo ladrão. Sem terem antes o cuidado de verificar o seu saldo bancário. A vida é assim. Ou será uma coisa em forma de assim?

Se sobreviver a esta madrugada que avança com as horas cada vez mais se vestindo de números, escreverei umas linhas a seu respeito, nem que seja apenas para dizer que você foi um amigo como poucos.

E não foi?

*

Rio de Janeiro, 6 de fevereiro de 2007.

Pois, pois. Cá estou, sobrevivendo às minhas próprias “mós de baixo”. E condenado ao seu auto-de-fé:

Folha de terra ou papel,

Tudo é viver, escrever...


segunda-feira, 11 de maio de 2009

SEXO: SAGRADO OU PROFANO (final)


“Algumas mulheres do harém, quando apaixonadas entre elas, praticam nos respectivos “yones” (clitóris) os atos da boca, e alguns homens fazem o mesmo com as mulheres. A maneira de fazê-lo (isto é, beijar o “yone”) deve ser distinta do beijo na boca. Quando um homem e uma mulher se deitam em ordem inversa, ou seja, a cabeça de um lado dos pés do outro, e empenham-se nesse congresso, temos o congresso do corvo.”

À primeira vista, parece-nos uma narração banal de sexo entre as mulheres de algum harém ou que “o congresso do corvo” seja uma nova denominação para o sessenta e nove, o popular “meia-nove”. Ilusão de ótica. O texto acima é um versículo do Kama Sutra, ou o “Aforismo Sobre o Amor”, temática obrigatória no currículo dos cursos de Teologia hindu.

Apesar de a cunilíngua ser uma relação sexual condenada e proibida pelos brâmanes, por se tratar de prática dos eunucos e membros das castas inferiores, Vatsyayana, o compilador dos Kama Sutra, faz o seguinte comentário a respeito do sucesso do atual “meia-nove” entre as mulheres das castas superiores:

“Por tais práticas, as cortesãs abandonam homens possuidores de boas qualidades, liberais e inteligentes, e sentem-se atraídas por pessoas baixas, tais como, os servos e os tratadores de elefantes.”

Tal comentário passaria despercebido nessa época do pós-modernismo, em que pais ultramodernos oferecem suas camas para as filhas dormir com os namorados, se não fosse o responsável pela publicação um modesto estudante hindu de Religião e remontasse tal observação a quase dois mil anos atrás, época em que Mallinaga de Vatsyayana reuniu antigos textos, cujos autores os receberam diretamente dos deuses, e os condensou no livro “Os Kama Sutra”.

Na minha crônica anterior, discorri sobre o sexo no Velho Testamento: dos amores de Dalila que levaram Sansão ao esgotamento físico, das farras salomônicas de Salomão com a rainha de Sabá, e do estupro praticado por benjaministas contra uma jovem esposa de um levita, culminando em guerra sangrenta entre judeus. Há mais histórias de sexo bíblico de fazer corar qualquer sacristão, porém, hoje, vou me ater em outras religiões, onde, também, o sexo é tratado sem tabu nem preconceito, apenas como um segmento natural de perpetuação das espécies.

Assim conta a Lenda Hindu.

O deus mais popular do Hinduísmo é Krishna, a forma humana do deus Vishnu (chamado de “avatar”), que de vez em quando gostava de descer à Terra para fazer traquinagem. Tomando a forma de um pastor de ovelhas, espreitava as pastoras no banhar-se no rio, para cheirar suas peças íntimas. Galante e sedutor, as mulheres suspiravam por ele e à noite abandonavam o marido na cama e iam para a floresta, em busca das carícias de Krishna que, como um deus, se dividia em múltiplos avatares.

Apesar de ser um deus e de ter todas as mulheres aos seus pés, um dia Krishna se apaixonou por uma das suas amantes, de nome Rhadarani, abreviado “Rhada”, que abandonou o marido e foi viver um verdadeiro idílio amoroso com Krishna, na Floresta da Multidão. Quando eles se amavam, as estrelas dançavam, harpas tocavam, passarinhos cantavam e nasciam flores no lugar em que seus corpos rolavam. Metade da Índia ficou florida.

Mas até as paixões dos deuses um dia apagam o fogo e com o garanhão Krishna não poderia ser diferente. Em uma manhã de Primavera, cheia de flores por todos os lados, ele arrumou as malas e partiu sem olhar para trás. Casou-se com oito mulheres. Rhada voltou desconsolada para casa, para os braços do marido, que a aceitou de bom grado, porém ela sucumbiu à saudade das quatro mãos bobas do seu amante Krishna.
Morreu definhando das dores de amores, saudade letal do seu deus-amante.

Também aconteceu no Egito.

Osíris era um rei egípcio que governava com sapiência e justiça e por isso era muito querido pelo povo. Amava profundamente Isis, sua esposa, que a achava inteligente e sensual. Isis também amava Osíris com toda profundidade e sentimento que o coração de uma mulher pode amar um homem. Era um casal feliz.

Seth, irmão de Osíris, nutria uma inveja lúgubre pelo irmão e por isso planejou matá-lo. Mandou fazer uma arca com as medidas do irmão, ornada de ouro e pedras preciosas e numa festa em homenagem a Osíris, Seth pôs em prática o seu plano macabro: inventou que presentearia com a arca aquele cuja estatura coubesse na mesma. Os convidados aceitaram, testaram, porém a arca era muito maior do que eles. Quando Osíris fez o teste, Seth fechou a porta da arca, lacrou e a jogou no Rio Nilo. Depois espalhou a notícia de que Osíris havia desaparecido.

Ao saber do desaparecimento do seu esposo, Isis entrou em desespero. Rasgou as roupas e cobriu o rosto de lama. Depois, mais calma, vestiu luto e saiu à procura do seu amado pelo Egito, vindo a encontrar a arca muito tempo depois.

Em prantos, abriu a arca e se abraçou ao cadáver do marido. Arrastou- a até um pântano e a escondeu até encontrar uma maneira de ressuscitar Osíris. Seth descobriu o seu plano, ficou furioso, foi ao pântano e retalhou o irmão em quatorze pedaços, espalhando por todo o Egito. Isis, persistente, catou os pedaços, um a um, recompôs o corpo, fez uma magia, ressuscitou Osíris por um breve lampejo de tempo, o suficiente para fazerem amor pela última vez. Isis engravidou e teve um filho de Osíris, Hórus, vingador da morte do seu pai, anos depois.

Na África não poderia ser diferente.

Xangô era o “don juan” de Aruanda, o gostosão das tapiocas, mulherengo que só! Não podia ver uma orixá de bobeira que queria rosetar. Um dia passou na metalúrgica de Ogum, o ferreiro, e deu com os olhos na jovem Iansã, esposa de Ogum. Depois de umas insinuadas e piscadelas de olhos, Iansã caiu na lábia de Xangô e foi morar com o orixá da Justiça, depois de uma memorável batalha de espada com seu ex-marido, Ogum.

Iansã também não era flor que se cheirasse. Moderninha, já havia “ficado” com boa parte dos orixás, dos quais havia adquirido vários poderes. Feminista ao extremo, não admitia ordem de ninguém. Audaciosa, roubou as pedras mágicas dos raios de Xangô justamente quando ele entrava em casa. Pega de surpresa, enfiou-as entre as bochechas, porém foi traída pela emoção do reencontro: ao falar “meu amor”, saíram raios e trovões de sua boca, e isso deixou Xangô irado, colérico, e Iansã foi obrigada a fugir para não levar uns catiripapos.

Primeiro bateu à porta de Ogum, tentando uma reconciliação, porém este, magoado, não quis nem abrir a porta. Tentou Oxossi, seu primeiro amor, que também lhe negou guarida. Obaluaiê, comovido com a sua desdita, deu-lhe acolhida e um exército de mortos para lutar contra Xangô. Mas ela não queria guerra com seu amado; queria chamego. Sentia saudades das carícias sensuais do fazedor de trovões. Queria rosetar. Ou “xangozar”.

– Façamos amor, e não a guerra – propôs Xangô, saudoso dos cafunés eletrizantes de Iansã. Também não gostava de defuntos. Armistício em prática, armas ensarilhadas, exército de defuntos dispensado, se amaram como se amam os deuses de Aruanda, principalmente os dos raios e das tempestades: a terra tremeu em ventanias, raios, trovões, tempestades e inundações, por quarenta dias e quarenta noites e até hoje, quando os dois resolvem fazer amor, vemos nos noticiários que alguma parte da Terra foi tomada pelas enchentes.




sábado, 9 de maio de 2009

SEXO: SAGRADO OU PROFANO?


Crônica 1
“Receba eu o beijo da tua boca / porque os teus amores são melhores do que o vinho...”
 “Venha o meu amado para o seu jardim / e coma o fruto das suas macieiras”
“Quão bela são os teus pés / no calçado que trazei, ó filha do príncipe! / as juntas dos teus músculos são como colares / fabricados por mãos de mestres./ teu umbigo é uma taça feita ao torno / que nunca será desprovida de licores / teu ventre é como um monte de trigo cercado de lírios.”
“Os teus dois seios parecem dois cervotinhos / filhos gêmeos de uma gazela.”
“O teu pescoço uma torre de marfim./ Os teus olhos são como as piscinas de Hesebon.”
“Tua estatura é semelhante a uma palmeira / e os teus seios a dois cachos de uva.”

Estes versos e todo seu conteúdo sensual, embora pareçam tentações do Capeta, são versos salomônicos e fazem parte do livro “Cântico dos Cânticos”, da Bíblia Sagrada, usada por católicos, judeus e muçulmanos.

 A obra poética bíblica narra a história de amor de Sulamita, uma ingênua camponesa, e de um jovem pastor, a qual ela é tentada a abandonar a vida simples no campo e levar uma vida faustosa como esposa de Salomão, cuja fama de sedutor extrapolava os limites de Israel. A jovem donzela, porém, fiel à sua paixão, recusou o convite do filho de Davi e continuou sua vidinha de camponesa, ao lado do seu amado, sonhando com o dia de ser possuída por ele.

Ante tal erotismo bíblico, sou tomado pelas reflexões incompreensíveis tentando arrazoar o que se passa na cabeça de certas pessoas quando o assunto é sexo. Tudo bem que algumas citações extravagantes extrapolam a compreensão de alguns e os induzem a se horrorizar ante o que advém do sexo. Mas certos textos ou certas conversas, mesmo na leveza de um erotismo singular, fazem determinadas pessoas ficarem reticentes ou estarrecidas, achando tratar-se de uma indecência libidinosa.

Convenhamos: fazer xixi e defecar são necessidades fisiológicas vitais, pois, sem eliminarmos os excessos de substâncias ingeridas, não conseguiremos viver. O sexo, apesar de não matar, é uma necessidade fisiológica tais quais as citadas acima. Não morremos, porém teremos uma disfunção hormonal e psicológica comprometedora. Olhando sob esta premissa, o sexo, então, é a necessidade fisiológica da mente. Ou latinamente citando Juvenal, o poeta satírico romano: “Mena sana in corpore sano” (mente sã em corpo são). 

 O sexo é um ato sensitivo visível do milagre da perpetuação da vida sem o qual não seria possível a Darwin escrever sua obra revolucionária “A Origem das Espécies”, contrariando o tão polêmico Livro do Gênesis. O Velho Testamento é recheado de histórias de amor, sexo, traições e mortes. Há até incestos, necessários para a continuação da existência humana.

Dalila foi engabelada por Sansão três vezes. Mesmo usando de todo charme e beicinho, Sansão não se deixou enganar e inventou estórias escabrosas para dizer de onde vinha a sua força descomunal. Um dia Dalila radicalizou: trancou-se com Sansão em um quarto e fornicaram por vários dias, até a hora em que ele caiu prostrado. Sem coordenar as idéias, tresvariando, ele capitulou e entregou o ouro ao bandido. Ou melhor: à bandida. E os filisteus fizeram a festa. 
 
Nesse mesmo livro, ou “Juízes”, que naquela época era o mesmo que “chefe militar”, narra a história de um jovem casal levita que se deslocava de Israel para sua casa, nas imediações do Monte Efraim. No meio do caminho o casal parou na cidade de Gabaa, reduto dos filhos de Benjamim, conhecidos como benjaminitas, para o pernoite. Não encontrando quem lhes desse abrigo por serem de outra tribo, sentaram na praça e se puseram a pensar no que fazer. Nisso, apareceu um velho, também de Efraim, que, sabendo de sua história, convidou o casal para pernoitar em sua casa, o que foi aceito. No meio da noite foram acordados violentamente por homens do lugar que queriam enrabar o jovem levita. Diante de tamanha maldade que os benjaminitas queriam fazer ao pobre rapaz, o velho pediu para que eles se satisfizessem na sua jovem esposa. Arrastou-a para fora de casa e a entregou à sua própria sorte. Por toda noite ela foi seviciada, vindo a morrer quando o dia amanheceu. O marido, ao ver a esposa morta, dividiu o corpo em doze pedaços e espalhou pelas doze tribos de Israel, clamando vingança. Assombradas com o acontecido, depois de inteiradas da ocorrência, as tribos de Israel se uniram e marcharam em guerra contra Gabaa, destruindo suas plantações, tocando fogo nas aldeias e cidades, exterminando seus guerreiros, matando a espada o resto da população. Apenas seiscentos benjaminitas homens sobreviveram e fugiram para o deserto. Finda a batalha, os israelitas prometeram que nenhuma de suas filhas se casaria com algum sobrevivente do massacre.

Tempos passados, ânimos esfriados, bateu o arrependimento por terem aniquilados uma das suas tribos. O jeito era repovoar a cidade com os sobreviventes, mas como lhes arranjar esposas se todas as donzelas estavam proibidas de se casar com os benjaminitas? No conselho dos anciãos alguém sugeriu que se atacasse a tribo de Jabes Galaad, que havia se recusado a marchar contra Gabaa. Então se armou um exército que partiu em direção de Jabes Galaad com a missão de matar todo mundo, exceto as mulheres virgens. Findo o extermínio de um povo pacífico, contabilizaram quatrocentas mulheres virgens, que foram entregues aos benjaministas como esposas. Houve um déficit de mulheres e não era justo duzentos homens ficarem à toa, sem se casar. Como resolver o problema? Um ancião se lembrou que haveria a festa dedicada ao Senhor, na cidade de Silo. Então os duzentos benjaministas restantes foram autorizados a se esconder no mato e quando as virgens de Silo se reunissem para dançar, eles deveriam raptá-las e levá-las como esposa para as terras de Gabaa, o que foi feito. 

 Salomão só não foi considerado um tarado porque o povo nutria por ele uma grande estima, principalmente pela sua sabedoria. Mantinha setecentas esposas e trezentas amantes em seu harém. Mesmo assim pulava a cerca. Foi o que aconteceu com a rainha de Sabá em visita a Salomão.

Primeiro ficou impressionado com a riqueza da comitiva da rainha negra, que trazia camelos e camelos carregados de ouro, pedras preciosas, jóias, perfumes exóticos, desconhecidos em Jerusalém. A rainha de Sabá (hoje Iêmen), por sua vez, ao adentrar o palácio, se deslumbrou com tanto luxo e riqueza. Como havia um piso espelhado, ela pensou tratar-se de água e levantou um pouco o vestido para não molhar, coisa discreta, mas o suficiente para Salomão ver suas roliças e negras pernas refletidas no espelho do piso e que o levou ao desespero dos pensamentos libidinosos. 

A rainha de Sabá era uma rainha mística e havia ido a Jerusalém testar a sabedoria de Salomão, que respondeu a todos os seus enigmas, deslumbrando-a de tal maneira que mantiveram longos dias e noites de intensa paixão. Engravidou e retornou para Sabá com os seus criados, onde nasceu o filho em seu castelo, fruto desse idílio real.

 Salomão só conheceu o seu filho árabe, de nome Meneleque, quando o mesmo completou a maioridade e viajou para Jerusalém.

Para aqueles que acham que sexo é uma indecência a ser combatida, sugiro que leiam a Bíblia Sagrada de vez em quando, onde verão que, mesmo não estando explícito, é tratado sem tabu e sem preconceito.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

A HERESIA SAGRADA

Imagem: blog Canção Nova


Quando eu era menino lá no interior da Bahia, minha mãe me exibia orgulhosa para as amigas e falava triunfante:

– Escrevam aí: esse menino, quando crescer, vai ser padre! Um belo padre!

Mais não poderia dizer por que, tendo filho padre, teria comunicação direta com Deus. E estaria eu hoje de batina se no despontar de minha infância não tivesse caído no vício de encostar jega no barranco e descoberto maravilhado que o paraíso é aqui mesmo. Mas minha mãe não desistiu de seu intento e, quando nos mudamos para Alagoinhas, me obrigou a segurar no badalo do padre, como assistente de missa, ou coroinha, como é mais conhecido o garoto que toca o sininho e segura a bandeja na comunhão. A emenda saiu pior do que o soneto, pois angariei mais um vício no meu livro de pecados: o de encher a cara de vinho canônico no vacilo do padre. Descoberto, fui expulso do Clube São Domingos Sávio, o padroeiro dos coroinhas.

O tempo passou e finalmente minha mãe se convenceu de que pau que nasce torto morre torto. Escreveu ao Vaticano pedindo suas escusas ao papa e carinhosamente me expulsou de casa. Dentre suas crenças, uma dizia que todo herege está fadado a ser assado na fogueira santa e ela não queria se envolver com os tribunais eclesiásticos. Sem ter para onde ir, zanzei pelo Baixo Alecrim, a zona da cidade, e fui consolado por mulheres soturnas que bebiam feito esponja e fumavam como condenadas. Senti-me o próprio Salomão e suas quase duas mil mulheres até o dia que o comissariado de menor resolveu pedir minha identidade. Foi o supra-sumo da humilhação: expulsaram-me do pedaço e as mulheres que eu amava passaram a noite no xilindró.

Envergonhado, peguei um pau-de-arara e dei com os costados na Baía de Todos os Santos e por lá fiquei por longos anos a fio a consumir batida de limão e a admirar as belas mulheres da praia do Porto da Barra. Um dia a ressaca bateu forte e, quando dei por mim, era protagonista de um cerimonial de núpcias na igreja do Rio Vermelho. Nesse dia, tornei-me amigo do padre e voltei a freqüentar a sacristia, o que deixou a minha mãe esperançosa, mas depois ela descobriu que as minhas idas diárias à igreja eram apenas para entornar o vinho canônico. Dessa vez, acompanhado do padre, um biriteiro de marca maior. Mas ele não resistiu à sedução das noitadas e sucumbiu aos olhares lascivos de uma de suas beatas: sem pestanejar, largou a batina para se casar e abandonou os amigos da garrafa, vindo a se suicidar tempos depois, talvez, por solidão, conforme está relatado no conto “Carta de Apresentação”. Que bela ironia: enquanto padre, vivia na esbórnia; largou a batina e deixou subjugar-se pela mulher como se fosse boi de canga.

Assim fui consumindo os meus pecados, matando a minha mãe de tristeza, até que no ano passado me convidaram a escrever o prefácio de um livro de conteúdo religioso, com a devida aprovação do bispo da região. Desafio aceito, de repente me vi debruçado na Bíblia Sagrada à procura de fundamentos para a empreitada e acho que dei conta do recado. Dentre todos os textos do livro, o único leigo é o meu, apesar do ceticismo dos amigos e até ironia de alguns, principalmente dos meus irmãos e da minha inestimável consorte. Já a minha mãe, quando recebeu não-sei-quantos exemplares para distribuir nas igrejas de sua cidade, fez questão de levar o primeiro exemplar ao bispo e ainda desdenhou com o orgulho de mãe quando fala do filho pródigo às amigas:

– Tá vendo, Dom Raimundo, meu filho escreveu melhor do que os padres e vocês ficam dizendo que ele é um herege. E agora, como sustentar sua heresia se pode até ser canonizado pelo Papa?

O bispo baixou a cabeça sem dizer nada. Tempos depois me escreveu reticente e cerimonioso, como a escrever ao Papa. Queria a minha intervenção no Vaticano para sua promoção a cardeal.