Foi num belo domingo de verão, na estação de trem “São Francisco” em Alagoinhas-Bahia, que um grupo de amigos e eu embarcamos num trem a vapor carinhosamente apelidado de Maria-Fumaça. Destino: Praia de Periperi, no subúrbio de Salvador.
Agarrado a um violão, eu fazia muito barulho, e me sentia o tal e qual. Não parava de tocar, cantar e de infernizar a vida dos passageiros do trem.
A viagem de ida foi tudo alegria, bagunça, sorrisos, música, enfim. Seria o meu primeiro contato com o mar. Tudo me parecia novo e divertido. Não via a hora de pisar na areia da praia, de catar conchinhas, de admirar o horizonte oceânico pela primeira vez e de me salgar nas águas doAtlântico.
A minha expectativa dentro do trem era intensa e, pela janela, os meus olhos varriam a paisagem à procura do tal mar, o qual eu imaginava estar escondido entre as verdejantes montanhas daqueles campos baianos.
A viagem parecia nunca acabar e a minha ansiedade aumentava a cada instante. Jamais havia me afastado da saia da minha mãe e me preocupava em ser tragado pelas ondas do mar, que na minha imaginação tinham vida e engoliam gente.
Chegamos a Periperi embaixo de chuva. Tempo fechado.Como praia e chuva não se combinam, não houve banho. Ficamos abrigados em casa de amigos, bebendo cerveja e cantarolando canções da época. Tudo transcorria num clima de festiva felicidade digna de nossas adolescências.
Em dado momento uma das cordas do violão se quebrou, interrompendo a cantoria.
– Acabou-se a festa! – falou alguém.
– Não! Não acabou. Vai continuar!
Encostei o violão numa cadeira e saí à procura de cordas. Entrei numa quitanda, se é que se podia chamar assim aquele barraco de tábuas velhas com algumas prateleiras apinhadas de garrafas de cachaça. O odor da aguardente se irradiava.Mal perguntei se havia cordas de violão ao balconista, alguém me segurou pelo braço e anunciou:
– Polícia! Mãos na cabeça e não se mexa.
Virei bruscamente a cabeça e dei de cara com um monte de policiais me apontando armas de fogo de todos os tipos e calibres. Exigiram meus documentos. Estava sem. Havia deixado juntos ao violão.
Depois de longo interrogatório, um dos policiais aproxima-se do meu cangote e, apontado sua arma para meus pés, sussurrou:
– Calma seu vagabundo! Não tente correr senão eu dou um tiro no seu pé, tá legal?
Outro, olhando dentro dos meus olhos, deduziu:
– Ele não é aquele sujeito que roubou a padaria do espanhol?
– É… Ele parece mesmo! – concordou seu parceiro.
– Diga pra mim, seu cafajeste: você não é fulano? – gritou, me chamando pelo nome do suposto ladrão da tal padaria do espanhol, e continuou me massacrando:
– Fala, cara, fala: como é o seu nome? Cadê seus documentos? E eu, no meio da roda daquele batalhão armado até os dentes, me borrava de medo. Respondi, gaguejando:
– Nam-nam, não, não, seu polícia! Eu não sou esse tal fulano, não!Eu me chamo Zé...- falei o meu nome e sobrenome, e acrescentei: nasci no Junco. Sou estudante. Moro em Alagoinhas. Vim pra cá de maria-fumaça; trabalho na funerária do seu Nenzinho. – e ainda apelei – o moço ai, do balcão, viu a hora que passei por aqui, bem cedo, tocando violão e cantando com um monte de garotas, não foi? Não foi? Pergunte a ele, pergunte, pergunte.
Recebi um tapa no pé-do-ouvido, em meio aos berros.
– Calaaado, seu filho-da-puta!
Rodopiei, quase caí, e nem pude sequer explicar quem eu era e onde estavam meus documentos. Mas de nada adiantava a minha palavra. Ela nada valia frente à ditadura. Não haveria acordo e eu provavelmente dormiria no xilindró. Já havia tomado um murro no pé-do-ouvido e a coisa estava feia.
E a minha mãe? Eu quero é a minha mãe - era somente o que eu pensava.
Ah! velhos tempos ditatoriais, onde qualquer farda tinha mais poder que a palavra!
Tentando me tirar daquela encrenca, o quitandeiro interveio a meu favor:
– Não, “seu” tenente! Acho que ele não é o tal ladrão que o senhor procura. – e concluiu – Eu vi a hora que ele passou por aqui, bem cedo, tocando violão e cantando com um monte de garotas. O que ele diz é verdade!
– É mesmo? Qual música você estava cantando? – um dos tiras me dirigiu a palavra, exigindo maior explicação. Creio que foi por mera gozação, mas, mesmo assim, cantarolei um trechinho:
– “… só quero que você me aqueça nesse inverno e que tudo mais vá pro inferno, ou,ou,ou.”
– Caalaado! - Gritou o chefe do grupo, o tal tenente, pondo ordem no recinto.
Por pouco, muito pouco, eu não me transformei em mais um turista de camburão. E isto graças a alguns colegas que percebendo a minha demora foram me salvar levando meus documentos e o violão.
Sentindo-me aliviado, parei de tremer. Um dos tiras ainda foi gentil ao me dizer:
– Cai fora seu fedelho!
Os camburões partiram festivamente cantando: ui-ui-ui-ui-ui-ui-ui.
Finalzinho da tarde. A noite descia uma escuridão pesada. Com uma tristeza danada, embarquei no Maria-Fumaça sem motivos para cantorias; sem me molhar no mar, sem paisagens a vislumbrar no negrume da noite e tendo tão-somente o barulho intermitente do trem a me distrair.
Eis o meu inescapável destino: ser ambígua por natureza. Trago no coração alegria e martírio, de que decorre uma tristeza que rima com beleza, a enovelar um sentimento mais ou menos melancólico de incompletude, ligado pela memória a situações bem vividas. Em outras palavras: privação da presença de alguém ou de algo que muito se quer, ou a ausência de certas experiências e prazeres do passado, que se deseja reviver. Saudade assim até que não é ruim, eu tiro isso por mim, cantava o saudoso Luiz Gonzaga, o rei do baião, numa música popular que também dizia que saudade faz doer, amarga que nemjiló. Pode me chamar de uma faca de dois legumes, que corta na alma, ui!
Modéstias à parte, sou uma palavra para muita prosa e verso, ponteio de viola, conversa mole, papo perfunctório (perdão, leitores), devaneio, pieguice, riso e lágrima. E é aí que mora o perigo. O de ser a musa inspiradora dos suspiros e ais das mais compungidas almas deste mundo: Saudade, palavra triste, quando se perde um grande amor... Daí um célebre vate dantanho haver me definido como a presença da ausência. Outro, de gosto mais duvidoso, cravou-me um espinho cheirando a flor. E tome metáfora enternecedora servida em frasco de xarope e frases lapidares como as tumbas: Punge-me agora trágica saudade...
(Com a palavra um professor, saudoso das aulas de civismo, que incluíam a cantoria de hinos patrióticos e a declamação de poemas tão inolvidáveis quanto os boleros que ele gostava de dançar).
O professor pigarreia, para desembargar a sua emocionada voz. E ensina: “Quem poderá aprofundar melhor do que qualquer outra pessoa as singularidades poéticas que se enrodilham na essencialidade dos sentimentos humanos e suas expressões vocabulares, se não um poeta? E não precisa ser dos maiores. Basta que seja poeta”. Os meninos: “Ai que saudades que eu tenho, da aurora da minha vida, da minha infância querida, que os anos não trazem mais”. Vossos aplausos, por favor.
Ora dizem que sou intraduzível. Ora, que estou entre as dez palavras da língua portuguesa de mais difícil tradução. Ambiguidade é isso aí: altamente valorizada para consumo interno, não possuo valor de troca no mercadão universal das Letras. Tirando-se nuestros hermanos de habla hispânica, que têm lá a saudosinha Soledad, os demais tradutores devem me achar uma encrenca, uma pedra na língua deles. Mas quer saber mesmo? Meto-me em sapatos altos, vaidosíssima, toda vez que ouço essa história de que sou uma autêntica filha da última flor do Lácio, significando isto que tenho o latim no meu DNA. Descendo de Solitas e Sólus, quer dizer, de uma família chamada Solidão. É preciso dizer mais?
Mas digo: vindo há muito do tempo, não posso afirmar com exatidão em que dia, hora, mês e ano nasci, e se foi já no século VII, quando surgiu um conjunto dialetal galego-português no noroeste da Península Ibérica, ou mais tarde, quando os portugueses investiram contra os árabes, para a reconquista de suas terras dominadas por eles, e com isso o idioma alastrou-se pelo sul, lá pelas bandas dos Algarves, separando-se do galego e tornando-se o veículo de expressão de um novo reino; ou se foi quando o português se consolidou como língua literária, entre os séculos XV e XVI, cujo coroamento viria a acontecer com a publicação de Os Lusíadas, em 1572. Antes disso ele, o português, já havia feito muita travessia pelos mares, na voz dos intrépidos marinheiros que atingiram o Cabo Bojador em 1434, chegaram à foz do Congo em 1483, dobraram o Cabo da Boa Esperança em 1487, e deram com seus costados no Brasil em 1500. Eu fiquei em terra e me fiz ao mar ao mesmo tempo, a recitar: Cantando [me] espalharei por toda a parte, se a tanto me ajudar o engenho e a arte. Em terra, com os olhos cansados de olhar para o além, cantava La barca, um bolero que ainda ia ser inventado, séculos adiante, enquanto outra parte de mim seguia as pegadas em Ceuta do soldado Luís de Camões, e nos quinze anos mais em que ele se meteu em guerras na Índia, tendo sido ele próprio um herói da epopéia que escreveu. No regresso, pegou o mote Se me levam águas, nos olhos as levo, e disso saiu um poema que começa assim: Se de saudade morrerei ou não, meus olhos dirão... E nessas suas linhas, que podem me servir se não de certidão de nascimento, mas de batismo, ele via no espelho das águas a minha condição ambígua: Todas são salgadas, porém as choradas, doces me parecem. Enfim, se eram do mar, da saudade seriam. Navegar era preciso.
Eu nasci para marinheiro,
Mas pus os óculos e fiquei em terra.
Alexandre O’Neill
A esta altura parece claro que minha biografia começa mesmo é no tempo das grandes navegações. Quanta aventura, tanta desventura, conquistas e espantos, cobiça e sonhos. Feliz o tempo que passou, passou. Tempo tão cheio de recordações... Bota saudade nisso.
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
(Lágrimas de Portugal? Cá entre nós, isso não parece lavrado numa tabacaria da zona portuária, por um bardo alambicado que queria se passar por outra pessoa? E pessoa cujo estro iria deixar a posteridade a babar nas gravatas?).
Mas sim, assim me vêem, por séculos, seculorum, amém. Uma enlutada viúva à beira do cais, a salgar o mar de fados, boleros e guarânias, sambas-canções, toadas, valsas, xotes, maracatus e baiões, e a acenar para o navio que lá vai à linha do horizonte, já a adentrar a fronteira da nostalgia. E, enquanto o mundo gira e a lusitana roda, Portugal volta a cantar um dos maiores sucessos de sua música ligeira: Ó tempo, volta pra trás. Quem anda em busca do tempo perdido está sentindo o que? Sodade, mô bem, sodade.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Fernando Pessoa
Do heróico tempo ficou-se a ver navios. E com olhar esfíngico e fatal. E a fitar o futuro do passado, vendo entre a cerração um vulto baço, que torna. E de quem seria esse saudoso vulto cujo retorno se esperou, dia após dia, ano após ano, século após século? De quem poderia ser se não de O Desejado, o rei morto no campo de batalha em Alcácer-Quibir, no dia 4 de agosto de 1578, seis anos depois da publicação de Os Lusíadas?! Este, sim, salgou o mar com o mais transatlântico saudosismo legado ao mundo que o português criou, ao passar além da dor.
Eis-me aí: passar além da dor. Agora, sim, dá saudade da pessoa que escreveu isto, e não aqueles bafios marinhos lacrimosos e filosofantes, tudo vale a pena se a alma não é pequena, valei-me minha Nossa Senhora do Perpétuo Socorro.
Haverá santa que me salve da poesia barata, a que deveras afaga e consola, e da qual nem aquela venerável pessoa ficou imune? Mas vamos combinar: uma coisa é o saudosismo individual, para consumo privado, sem perturbações da ordem pública; outra é o coletivo, que vem em cruzadas assustadoras em busca do futuro do passado, heil! Ideologicamente, porém, não favoreço apenas as margens direitas do mundo. Estou em todos os lados, todas as torcidas, correntes de pensamento, credos etc., onde quer que haja um coração que a seu modo sente saudade de tempos mais felizes – eis aí porque atualmente estou arrebentando nas bolsas dos sentimentos, nas quais a minha cotação atinge índices nunca dantes imaginados.
Recentemente encontrei num romance brasileiro um personagem a dizer para o retrato oval do seu finado avô – um fervoroso fiel à igreja católica, apostólica, romana -, que só sentia saudade de duas coisas: o tempo dos boleros e o tempo dos comunistas, embora não soubesse exatamente por que; talvez houvesse mais sonhos naquele tempo, ele acabou por concluir, ao final de seu solilóquio. Pode-se deduzir que uma saudade como essa é conseqüência dos estilhaços projetados pela queda do Muro de Berlim, acontecida em anos recentes do passado. Mas veja: um mapa mundi que não inclua a Utopia não é digno de consulta. Quem escreveu isso foi Oscar Wilde. E ele morreu no ano de 1900. Eu vim de longe e para longe vou, porque o ser humano está sempre sentindo falta de alguma coisa que acha que já teve melhor.
O teu perfume predileto exala
No piano saudoso, à tua espera.
Castro Alves
Presumivelmente cheguei ao Brasil acompanhando o movimento utópico dos barcos. Aqui me espraiei. Tanto mar, tanto chão, quanta selva. Então me desdobrei em duplo sentimento: oceânico e telúrico. Juntando os dois em um, dá a solidão de um país grande. No ano de 1836 tive a subida honra de ser homenageada em um livro que entraria para a história literária como o marco inicial do Romantismo brasileiro. Título: Suspiros poéticos e saudades. Chamemos isso de um desconvite à leitura. Autor: Gonçalves de Magalhães. Era o precursor de uma corrente que cantava o desgosto da vida, a infância, o amor impossível, a melancolia, a tristeza, ufa! O inefável poeta veio a se superar em outro volume, intitulado Cantos fúnebres.
Passos mais adiante, eu viria a me sentir muito mais bem tratada (ou retratada) nas mãos do maranhense Gonçalves Dias, que se consagrou como o primeiro grande poeta romântico do Brasil, e que sentia orgulho de ter em seu sangue as três raças formadoras do povo brasileiro, por ser filho de um comerciante português com uma mestiça de índios e negros. Pelo menos dois de seus poemas puxam a brasa para a minha sardinha: Ainda uma vez, adeus e Canção do exílio, este escrito quando ele cursava direito na Universidade de Coimbra e morria de saudades do Brasil: Minha terra tem palmeiras, onde canta o sabiá, as aves que aqui gorjeiam, não gorjeiam como lá. Com essa estrofe fica a sugestão de mote para o seguinte capítulo: Do quanto a saudade esteve, está e sempre estará no coração dos exilados. Mestrandos e doutorandos, mãos às teses.
Sim, sim, também tive alguma influência na lírica do pop star do Romantismo made in Brazil, e sua mais bela cabeleira, o baiano Castro Alves, que, embora tivesse colocado a sua pena a serviço de um mundo mais justo, comprometida com a construção de uma nova ordem social, e com a causa republicana e abolicionista, não deixou de ser também um flamejante poeta do amor e da melancolia. Na sua obra há pelo menos uns sete poemas com um Adeus no título. Em Horas de saudade, escreveu: No piano saudoso, à tua espera/ Dormem sono de morte as harmonias/ E a valsa entreaberta mostra a frase/ A doce frase qu’inda há pouco lias. Castro Alves e Gonçalves Dias foram os românticos brasileiros que deixaram saudades.
No Brasil se diz: “Triste é não ter de que sentir saudade”. E mais: “Saudade não tem idade”. Aqui me mimam, fazem-me cafunés, carregam-me nos colos, ora como vó coruja, ora como mãe gentil, ou mana do peito, ou filha querida, amada amante. E até me puseram no andor das 100 palavras para melhor conhecer o Brasil, espécie de breve dicionário afetivo japonês-português, publicado em 2008 dentro das comemorações do centenário da imigração japonesa. Não deu para entender nos caracteres nipônicos que palavra corresponde à saudade, mas o certo é que ganhei um verbete amoroso, assinado por Paulo Nathanael Pereira de Souza, um educador paulista já premiado pela Academia Brasileira de Letras. Arigatô.
Aqui tenho data: 30 de janeiro. É o Dia Nacional da Saudade. Por que 30 de janeiro? Naveguei (nada a ver com uma volta às minhas origens, pois, pois) na Internet e não encontrei nenhuma pista. Escolheram uma data e pronto, estamos conversados. Homenagem é igual a cavalo dado: não se olha os dentes. Além do mais, em vez de continuar a pesquisa em outras vias, liguei-me catatonicamente a um programa dedicado ao assunto, na televisão. Um repórter saiu às ruas para saber de que as pessoas mais sentem saudades. Um nordestino que mora no Rio disse que de sua terra natal. Um carioca mostrou-se saudoso do tempo em que sua cidade vivia em paz, sem a violência atual. Outros, de um passado mais glorioso no futebol brasileiro. La nave vá. Ontem os heróis eram os dos mares. Hoje, os dos gramados.
Por fim, mas não por último, registre-se que há brasileiros que passam por mim fingindo que não me conhecem. Para estes, saudade e melancolia são sentimentos retrógrados, reacionários, bregas. Múmias paralisantes. Melhor devolvê-las a Portugal - de onde nunca deveriam ter saído -, aos cuidados da alma imortal de Fernando Pessoa, aquele que em vida carregou nos dedos três anéis irreversíveis: a tristeza, a desgraça, a solidão.
Chega de saudade, decretou a dupla Vinícius de Moraes-Tom Jobim, ao compor a música tida e havida como o marco da Bossa Nova.Mas olha que coisa mais linda, mais cheia de graça: saudades do tempo de Tom e Vinicius. Cordiais saudações.
*Do livro Dicionário amoroso da língua portuguesa. Organização: Marcelo Moutinho e Jorge Reis-Sá/ Editora Casa da Palavra, Rio de Janeiro, 2009.
A surpresa não é mais aquela. Que é que faz com ela? Ou, o que foi feito dela, então? Esquece, vamos direto ao assunto. A surpresa passou a ocupar um elemento secundário, ou quase secundário, na literatura de ficção, desde que o romance, por exemplo, encontrou um lugar específico e privilegiado no campo da obra de arte, a partir de Flaubert. Porque não há dúvida: o escritor francês dividiu muito bem a missão ficcional. Até “Madame Bovary”, digamos, era apenas um lugar de diversão, de leitura emocional, de mágica, de estudos, para arrepiar e chorar. E só.
Transformada em objeto de amor intelectual, mesmo que “Madame Bovary” tenha sido uma leitura popular, a surpresa, quem diria?, viveu para a glória do texto, da arquitetura da palavra, para as sutilezas narrativas. Escondida no anti-enredo, na anti-suspensa. Isso quer dizer que passava quase despercebida, sem necessidade daquele arranque estrutural que sacudia o leitor para territórios nunca dantes navegados. Tem mais a ver com mágica sutil, do que de coelhos arrancados de cartola, com orelhas, rabos e tudo.
Mas não foi completamente dispensada. O escritor sempre percebeu que precisa trazer o leitor para junto da emoção nervosa, digamos. É preciso a distinção porque há a emoção estética. Sem dúvida. Depois de Flaubert, porém, viveram as vanguardas, os experimentalismos os desconstrutores, todos e os demais. A surpresa passou a fazer parte do jogo das palavras, da montagem das frases, das sequências narrativas. Então, numa palavra: na obra de arte de ficção há duas emoções:
a) emoção nervosa, cujo principal valor está no enredo; b) Emoção estética, que considera a montagem estrutural da obra.
Guimarães Rosa, por exemplo, alcançou resultados espetaculares. Como naquela frase construída através de crases e verbos para mostrar a ansiedade e a tensão de Dão-La-lão, e a surpresa de não encontrar amantes de Soropita. O leitor, portanto, deve estar preparado para a estrutura frasal e não para corte narrativa, que caracteriza a surpresa convencional.
É assim:
Chegava a casa, abriu a porteira, chegava à casa, subiu o terraço, chegou em casa.
Podemos observar, assim, que há, no interior da frase, no andamento, na montagem, uma sensação de expectativa, de medo, de inquietação, sem que essas palavras apareçam em lugar algum. O personagem avança, e avança, está chegando em casa, a surpresa – mesmo a que ele já espera – pode acontecer, mas nada é dito diretamente. É narrada com sutileza, não se mostra, não se apresenta. Não diz. Cabe ao leitor senti-la. E é muito. É demais. É tudo o que o escritor espera, como quem vai tirar um fantasma da cartola, está aí. Eis a diferença entre a surpresa, digamos, nervosa, que sacode o leitor, e a surpresa estética e sutil, fruto do jogo de palavras, de sentimentos, de expectativas.
Em “A arte da ficção” (tradução de Guilherme da Silva Braga, 243, L&PM, Porto Alegre), David Lodge escreve uma traça uma poética da surpresa muito esclarecedora:
“Como em um show pirotécnico, um pavio vai queimando aos poucos e, por fim, desencadeia uma sequência de explosões espetaculares. O leitor precisa receber informações suficientes para que a surpresa seja convincente quando revelada, mas não o bastante a ponto de conseguir prever o que virá a seguir. Thackeray sonega informação, mas sem trapacear”.
Não é bom isso? Fica bem claro e explica tanto o exemplo sutil de Guimarães, no específico campo da linguagem, quanto no plano do espetacular, capaz de provocar a inquietação do leitor. A tristeza ou a alegria. A euforia ou o azedume.
De minha parte, sempre gostei de surpresas, desde que elas viessem no interior do texto, exigindo o máximo do leitor, atenção redobrada na movimentação dos personagens, o que faço, com clareza, em “As sementes do sol”. Davino, o pai, acompanha, envolvido em sutilezas, a cena em que Agamenon, por assim dizer, desvirgina Mariana, filha de Davino e irmã de Agamenon, e não pode fazer nada, até a cena em “O amor não tem bons sentimentos”, em que Matheus imita o suicídio do pai, ou suposto pai, Ernesto. O cuidado todo é este: não trapacear. Nunca trapacear. Fazer o leitor acreditar, sinceramente, no que está acontecendo.
É assim:
“Um menino vestido de velho, chapéu e guarda-chuva, termo escuro e gravata antiga. Compreendi a gargalhada do homem, fiquei com raiva. Tive vontade de voltar gritando eu sou meu pai, filho da puta, você não está vendo que sou meu pai?, vim buscar meu filho que anda abandonado pelo mundo. Triturava a raiva nos dentes – e com piedade de mim mesmo. Calça coronha, subi as escadas e parei diante do espelho, eu mesmo morrendo de rir, o paletó quase estourava nos ombros e o chapéu não entrava na testa. O cabo do guarda-chuva repousava no pulso. Ia tirar a roupa quando decidi viver a loucura do meu pai. Coisa esquisita ter pai.
Nunca pensei que fosse possível ter pai e mãe.
Sentei-me na cadeira de balanço do terraço. A noite vencia o cansaço da tarde. E o meu cansaço – há tão pouco tempo ali e já exausto. Coloquei o guarda-chuva no céu da boca, uma arma. Imitei o exato gesto do polegar apertando o gatilho. Foi um susto. A explosão do tiro jogou minha cabeça para trás, bateu forte no espaldar da madeira. Dor, muita dor, parece que subi uns cinco centímetros do assento, o gosto de sangue esvaia-se na boca. Ri – esse pequeno riso de comoção e medo. O que me deixou preocupado foi a sensação da morte chegando pelas minhas mãos. Ou pelo meu dedo no gatilho”.
O texto todo procura levar o leitor a viver a emoção de Matheus, sentindo, surpreendentemente, a dor de um tiro que, na verdade, não existe. E, ainda assim, sem trapacear. Vivendo a carga de sentimentos do personagem, sozinho num sobrado recifense, com muitos quartos, portas e janelas.
No entanto, é preciso ressaltar que o romance moderno, por isso mesmo, tanto pode conviver com as questões puras de surpresa, para provocar sempre o leitor, como é possível tê-la escondida na tensão narrativa, a exemplo do que é feito por Guimarães Rosa. Lembro, também, que no início de “A feira das vaidades”, de Thacherey, há uma cena de surpresa quando uma aluna, rejeitada durante o curso, joga um dicionário nos pés da professora. É claro, uma surpresa simples e não previsível, mas no caminho da aprendizagem, é essencial. Mas não se pode esquecer os exercícios. Sempre: exercícios, exercícios, exercícios. Escrevendo e apagando. É sempre bom fazer exercícios, mesmo que os despreze depois. Não importa, literatura é trabalho sempre. Incansável.
Clarice Lispector consegue dar um toque de pavor e fragilidade à surpresa em “Perdoando Deus”, de um modo inusitado e inquietante. É assim que ela escreve:
“Por puro carinho, eu me senti a mãe de Deus, que era a Terra, o mundo. Por puro carinho mesmo, sem qualquer prepotência ou glória, sem o menor senso de superioridade ou igualdade, eu era por carinho a mãe do que existe...E foi quando quase pisei num enorme rato morto. Em menos de um segundo, eu estava eriçada pelo terror de viver, em menos de um segundo estilhaçava-me toda em pânico, e controlava como podia o meu mais profundo grito”.
É aconselhável voltar ao livro “Legião Estrangeira”, ler e reler. Leitura sempre é muito. E se surpreender a cada nova leitura. Como se fosse a única e a múltipla. Leitura de escritor – ou de aprendiz de escritor – passa por três estágios.
A ) - Leitura somente com os olhos, irresponsavelmente; B - Leitura contemplativa e de olhos fechados, como quem traz as palavras para o sangue; C - Leitura com a mente, técnica, procurando descobrir as artimanhas e as armadilhas do escritor;
E o grande escritor precisa surpreender o leitor mesmo nas releituras. Vejam que Clarice preparou a surpresa tornando-se carinhosa e, de certa forma, divina, por assim dizer. Criou um efeito de ternura e afeto, para só depois levar o terrível ao leitor. É sempre assim? Não, o escritor deve ter liberdade para criar as suas próprias técnicas. Sempre. Técnica não é camisa de força. É matéria de estudo.
Mas não se esqueça de ler poemas. Um prosador lê sempre os grandes poemas. Porque eles são surpreendentes. Com certeza.