De Surpresa! |
A surpresa não é mais aquela. Que é que faz com ela? Ou, o que foi feito dela, então? Esquece, vamos direto ao assunto. A surpresa passou a ocupar um elemento secundário, ou quase secundário, na literatura de ficção, desde que o romance, por exemplo, encontrou um lugar específico e privilegiado no campo da obra de arte, a partir de Flaubert. Porque não há dúvida: o escritor francês dividiu muito bem a missão ficcional. Até “Madame Bovary”, digamos, era apenas um lugar de diversão, de leitura emocional, de mágica, de estudos, para arrepiar e chorar. E só.
Transformada em objeto de amor intelectual, mesmo que “Madame Bovary” tenha sido uma leitura popular, a surpresa, quem diria?, viveu para a glória do texto, da arquitetura da palavra, para as sutilezas narrativas. Escondida no anti-enredo, na anti-suspensa. Isso quer dizer que passava quase despercebida, sem necessidade daquele arranque estrutural que sacudia o leitor para territórios nunca dantes navegados. Tem mais a ver com mágica sutil, do que de coelhos arrancados de cartola, com orelhas, rabos e tudo.
Mas não foi completamente dispensada. O escritor sempre percebeu que precisa trazer o leitor para junto da emoção nervosa, digamos. É preciso a distinção porque há a emoção estética. Sem dúvida. Depois de Flaubert, porém, viveram as vanguardas, os experimentalismos os desconstrutores, todos e os demais. A surpresa passou a fazer parte do jogo das palavras, da montagem das frases, das sequências narrativas. Então, numa palavra: na obra de arte de ficção há duas emoções:
a) emoção nervosa, cujo principal valor está no enredo;
b) Emoção estética, que considera a montagem estrutural da obra.
Guimarães Rosa, por exemplo, alcançou resultados espetaculares. Como naquela frase construída através de crases e verbos para mostrar a ansiedade e a tensão de Dão-La-lão, e a surpresa de não encontrar amantes de Soropita. O leitor, portanto, deve estar preparado para a estrutura frasal e não para corte narrativa, que caracteriza a surpresa convencional.
É assim:
Chegava a casa, abriu a porteira, chegava à casa, subiu o terraço, chegou em casa.
Podemos observar, assim, que há, no interior da frase, no andamento, na montagem, uma sensação de expectativa, de medo, de inquietação, sem que essas palavras apareçam em lugar algum. O personagem avança, e avança, está chegando em casa, a surpresa – mesmo a que ele já espera – pode acontecer, mas nada é dito diretamente. É narrada com sutileza, não se mostra, não se apresenta. Não diz. Cabe ao leitor senti-la. E é muito. É demais. É tudo o que o escritor espera, como quem vai tirar um fantasma da cartola, está aí. Eis a diferença entre a surpresa, digamos, nervosa, que sacode o leitor, e a surpresa estética e sutil, fruto do jogo de palavras, de sentimentos, de expectativas.
Em “A arte da ficção” (tradução de Guilherme da Silva Braga, 243, L&PM, Porto Alegre), David Lodge escreve uma traça uma poética da surpresa muito esclarecedora:
“Como em um show pirotécnico, um pavio vai queimando aos poucos e, por fim, desencadeia uma sequência de explosões espetaculares. O leitor precisa receber informações suficientes para que a surpresa seja convincente quando revelada, mas não o bastante a ponto de conseguir prever o que virá a seguir. Thackeray sonega informação, mas sem trapacear”.
Não é bom isso? Fica bem claro e explica tanto o exemplo sutil de Guimarães, no específico campo da linguagem, quanto no plano do espetacular, capaz de provocar a inquietação do leitor. A tristeza ou a alegria. A euforia ou o azedume.
De minha parte, sempre gostei de surpresas, desde que elas viessem no interior do texto, exigindo o máximo do leitor, atenção redobrada na movimentação dos personagens, o que faço, com clareza, em “As sementes do sol”. Davino, o pai, acompanha, envolvido em sutilezas, a cena em que Agamenon, por assim dizer, desvirgina Mariana, filha de Davino e irmã de Agamenon, e não pode fazer nada, até a cena em “O amor não tem bons sentimentos”, em que Matheus imita o suicídio do pai, ou suposto pai, Ernesto. O cuidado todo é este: não trapacear. Nunca trapacear. Fazer o leitor acreditar, sinceramente, no que está acontecendo.
É assim:
“Um menino vestido de velho, chapéu e guarda-chuva, termo escuro e gravata antiga. Compreendi a gargalhada do homem, fiquei com raiva. Tive vontade de voltar gritando eu sou meu pai, filho da puta, você não está vendo que sou meu pai?, vim buscar meu filho que anda abandonado pelo mundo. Triturava a raiva nos dentes – e com piedade de mim mesmo. Calça coronha, subi as escadas e parei diante do espelho, eu mesmo morrendo de rir, o paletó quase estourava nos ombros e o chapéu não entrava na testa. O cabo do guarda-chuva repousava no pulso. Ia tirar a roupa quando decidi viver a loucura do meu pai. Coisa esquisita ter pai.
Nunca pensei que fosse possível ter pai e mãe.
Sentei-me na cadeira de balanço do terraço. A noite vencia o cansaço da tarde. E o meu cansaço – há tão pouco tempo ali e já exausto. Coloquei o guarda-chuva no céu da boca, uma arma. Imitei o exato gesto do polegar apertando o gatilho. Foi um susto. A explosão do tiro jogou minha cabeça para trás, bateu forte no espaldar da madeira. Dor, muita dor, parece que subi uns cinco centímetros do assento, o gosto de sangue esvaia-se na boca. Ri – esse pequeno riso de comoção e medo. O que me deixou preocupado foi a sensação da morte chegando pelas minhas mãos. Ou pelo meu dedo no gatilho”.
O texto todo procura levar o leitor a viver a emoção de Matheus, sentindo, surpreendentemente, a dor de um tiro que, na verdade, não existe. E, ainda assim, sem trapacear. Vivendo a carga de sentimentos do personagem, sozinho num sobrado recifense, com muitos quartos, portas e janelas.
No entanto, é preciso ressaltar que o romance moderno, por isso mesmo, tanto pode conviver com as questões puras de surpresa, para provocar sempre o leitor, como é possível tê-la escondida na tensão narrativa, a exemplo do que é feito por Guimarães Rosa. Lembro, também, que no início de “A feira das vaidades”, de Thacherey, há uma cena de surpresa quando uma aluna, rejeitada durante o curso, joga um dicionário nos pés da professora. É claro, uma surpresa simples e não previsível, mas no caminho da aprendizagem, é essencial. Mas não se pode esquecer os exercícios. Sempre: exercícios, exercícios, exercícios. Escrevendo e apagando. É sempre bom fazer exercícios, mesmo que os despreze depois. Não importa, literatura é trabalho sempre. Incansável.
Clarice Lispector consegue dar um toque de pavor e fragilidade à surpresa em “Perdoando Deus”, de um modo inusitado e inquietante. É assim que ela escreve:
“Por puro carinho, eu me senti a mãe de Deus, que era a Terra, o mundo. Por puro carinho mesmo, sem qualquer prepotência ou glória, sem o menor senso de superioridade ou igualdade, eu era por carinho a mãe do que existe...E foi quando quase pisei num enorme rato morto. Em menos de um segundo, eu estava eriçada pelo terror de viver, em menos de um segundo estilhaçava-me toda em pânico, e controlava como podia o meu mais profundo grito”.
É aconselhável voltar ao livro “Legião Estrangeira”, ler e reler. Leitura sempre é muito. E se surpreender a cada nova leitura. Como se fosse a única e a múltipla. Leitura de escritor – ou de aprendiz de escritor – passa por três estágios.
A ) - Leitura somente com os olhos, irresponsavelmente;
B - Leitura contemplativa e de olhos fechados, como quem traz as palavras para o sangue;
C - Leitura com a mente, técnica, procurando descobrir as artimanhas e as armadilhas do escritor;
E o grande escritor precisa surpreender o leitor mesmo nas releituras. Vejam que Clarice preparou a surpresa tornando-se carinhosa e, de certa forma, divina, por assim dizer. Criou um efeito de ternura e afeto, para só depois levar o terrível ao leitor. É sempre assim? Não, o escritor deve ter liberdade para criar as suas próprias técnicas. Sempre. Técnica não é camisa de força. É matéria de estudo.
Mas não se esqueça de ler poemas. Um prosador lê sempre os grandes poemas. Porque eles são surpreendentes. Com certeza.
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