terça-feira, 15 de setembro de 2009

Feira de livro: Quanto menor, melhor*

Por Antônio Torres



Comecemos lembrando que feira vem do latim feria e significa dia de festa. Daí o seu caráter festivo, seja ela do que for, do gado aos livros, em local onde se faz mercado, em épocas fixas. E onde acontecem as reuniões de vendedores e compradores, estes atraídos por motivações as mais variadas, como o atendimento a necessidades básicas (produtos alimentícios e de vestuário, por exemplo), novidades, vendas a preços reduzidos, entretenimento, animação.


Suas origens remontam à Grécia Antiga, em Delfos e Delos. Mas foi na Alta Idade Média, com a renovação comercial da Europa, que as feiras se tornaram o centro da vida econômica internacional. A partir de então passaram a ser favorecidas pelos senhores e pelos reis, que concediam privilégios a seus participantes (garantia de herança, garantia contra prisão por dívida, autorização de empréstimo a juros), e se tornaram também Bolsas de Valores que aceitavam letras de câmbio e pagamentos a termo. Isso proporcionou o surgimento de grandes corredores comerciais nas cidades situadas ao longo das encruzilhadas das estradas que levavam da Itália aos Países Baixos, e nas que iam da Hansa à Île-de-France.


Sim, foi na França, e no século VII, que as feiras progrediram. Mais precisamente: em Saint-Denis e no Lendit. Chegaram ao apogeu no século XII, quando o renascimento comercial europeu e o recuo do Islã puseram em relevo as cidades de Champagne e outras próximas do Mediterrâneo, na região de Languedoc - Nîmes, Carcassone, Saint-Gilles. Do século XIII em diante, feiras como a de Beucaire, cidade situada no vale do Ródano, cresceram de importância. Instituídas em 1420, as de Lyon se tornaram ponto de encontro internacional e de concentração de bancos. Fora da França, destacaram-se as de Bruges, Antuérpia, Ypres e Torhout, nos Países Baixos; Stourbridge, na Inglaterra; Colônia, Frankfurt, Nuremberg, Leipzig, na Alemanha; Milão, Veneza ou Piacenza, na Itália. Depois do século XVII, a maior parte delas viria a desaparecer, em função da melhoria das comunicações, o que levou as companhias comerciais a distribuir os seus produtos através de uma rede de sucursais.


Evolução mercadológica alguma, porém, seria capaz de decretar o fim das feiras. Elas haveriam de sobreviver à vertiginosa expansão dos sistemas de distribuição de mercadorias, com as facilitações dos canais de vendas (supermercados, shoppings, redes de lojas globalizadas, telemarketing, web, tudo que está aí, ao alcance das nossas mãos). Adaptaram-se aos novos tempos e diversificaram-se, de acordo com o meio e as modas. Das feirinhas semanais de cada povoado ou cidadezinha, às dos bairros nas cidades maiores, elas cresceram e se multiplicaram, em cenários ideais para lançamentos de produtos, promoções, alívio de estoques, convívio, festa. No Brasil, há até uma cidade que deve o seu nome a uma feira de gado, evocada numa música que os boiadeiros cantavam pelas estradas de uma vasta região do país: “Mundo Novo adeus/ adeus minha amada/ eu vou pra Feira de Santana/ eu vou vender minha boiada”. A história dessa feira começa em meados do século XVIII, numa fazenda chamada Santana, no estado da Bahia, que se tornou pouso para tropas de gado que vinham do Piauí, Goiás, Minas Gerais e do próprio interior baiano. O ajuntamento resultou em feira e daí à fundação, em 1873, da Cidade Comercial de Feira de Santana, que em 1938 teria o seu nome reduzido para o atual. Autoproclamada “a princesa do sertão”, Feira de Santana é hoje a maior cidade do interior baiano, com cerca de 800 mil habitantes. O seu desenvolvimento fez com que o campo do gado desse lugar à ocupação urbana e se tornasse apenas uma referência histórica.


Igualmente memorável é a feira de Caruaru, em Pernambuco, aquela que “dá gosto a gente ver”, pois “de tudo que há no mundo, nela tem pra vender”, conforme a imortalizou Luiz Gonzaga, o rei do baião. E quem não se lembra de Simon & Garfunkel cantando “I’am going to Scaborough fair?” A dupla cantante alardeava que estava indo à feira de uma cidade do estado de Nova York, que pelo visto devia ser famosa. E agora passemos ao real motivo destas linhas: as feiras de livros. Claro que estas têm propósitos idênticos aos de quaisquer outras, mas de algumas delas se diferenciando pelo histórico menos enciclopédico. Entre o célebre poema de Castro Alves, O livro e a América, declamado com grande sucesso pela atriz Eugênia Câmara em 3 de julho de 1867 (“Oh! Bendito o que semeia/ Livros... livros à mão cheia... / E manda o povo pensar! / O livro caindo n’alma/ É germe - que faz a palma, / É chuva - que faz o mar”), a fundação, em 1918, da primeira editora nacional, pelo escritor Monteiro Lobato, e o surgimento das feiras de livros no Brasil, muita água rolou debaixo das pontes. Mas onde? Quando?


Uma cidade: Porto Alegre.

Data: 16 de novembro de 1954


A cidade adentrara a década de 1950 com 400 mil habitantes. Seu local de maior movimento era a Praça da Alfândega. Diante da badalação bem ao centro da capital gaúcha, um jornalista chamado Say Marques achou que ali estava um lugar perfeito para a instalação de uma feira de livros. Sua idéia não surgira do nada. Ele se inspirara em algo do gênero que havia visto na Cinelândia, no Rio de Janeiro. E assim, no dia 16 de novembro de 1954 os gaúchos tiveram um motivo a mais para badalar na Praça da Alfândega: a inauguração da Feira do Livro de Porto Alegre, que se resumia a 14 barracas de madeira em torno do monumento ao general Osório.


Um começo modesto, diríamos hoje, já acostumados aos mega-eventos que a indústria editorial tem promovido. No entanto não se pode dizer o mesmo do objetivo daquela feira, que se iniciava com uma conceituação ambiciosa: “Se o povo não vem à livraria, vamos levar a livraria ao povo”. Tal slogan encarava um problema que perdura no país através dos tempos, escancarando uma realidade irrefutável: nossas livrarias são para poucos. Se não chegamos a ter, em todo o nosso imenso território, menos pontos de venda de livros do que a cidade de Buenos Aires, como se costuma alardear, ainda não dá para nos ufanarmos dos nossos números já alcançados. Segundo a revista Panorama Editorial (no. 35/ outubro 2007), da Câmara Brasileira do Livro, um diagnóstico do setor livreiro desenvolvido pela ANL aponta a existência de 2.600 livrarias no Brasil. A maior parte (53%) está concentrada na região Sudeste e distribuída da seguinte maneira: 48% em São Paulo; 24% no Rio de Janeiro; 25% em Minas Gerais; e 3% no Espírito Santo. Os outros 47% estão assim divididos: 15% na região Sul; Nordeste, 20%; Norte, 5%. Centro-Oeste, 4%; Distrito Federal, 3%.


O quadro exposto acima não é nada favorável em relação ao acesso da população aos livros. E isto mais de meio século depois do brado porto-alegrense, que vale a pena ler de novo: “Se o povo não vem à livraria, vamos levar a livraria ao povo”. As estatísticas comprovam que o apelo publicitário dos livreiros, em 1955, continua atualíssimo. De acordo com recomendações da ONU (Organização das Nações Unidas), o ideal é haver uma livraria para cada 10 mil habitantes. “Estamos muito longe dessa realidade”, diz Vítor Tavares, presidente da ANL, a Associação Nacional de Livrarias, à já citada Panorama Editorial. Ele dá como exemplo o estado de São Paulo, onde há apenas 676 livrarias – o maior número do país – para uma população de mais de 40 milhões de habitantes.

Tudo isso reforça a necessidade de mais e mais feiras de livros Brasil adentro e afora, a exemplo de Porto Alegre, que entrou para a história menos pelo pioneirismo da sua iniciativa e mais pelas inovações que iria introduzir em relação às incipientes, precárias e esparsas realizações do gênero em outras praças. Já na sua segunda edição (1955), a Feira do Livro de Porto Alegre apresentava como novidade as sessões de autógrafos. Na terceira, passou a vender coleções pelo sistema de crediário. Nos anos 70, introduziu uma programação cultural que lhe deu mais abrangência. Na década de 1980, abriu espaços para livros usados. A partir de 1990 veio a ter a adesão de grandes patrocinadores. Cresceu e apareceu no calendário de eventos anuais da cidade, consagrando-se não só por se tratar de uma das mais antigas e maiores feiras de livros do país, cujo interesse se tornou nacional, mas por se manter fiel à velha praça onde foi inaugurada, com todo o seu charme histórico e colorido popular. E porque há registros de sua origem, continuidade e desenvolvimento, até em livro (do escritor gaúcho Walter Galvani), não deixa de ser um marco dos empreendimentos congêneres bem sucedidos da indústria e comércio livreiros. E, de alguma maneira, serviu (e serve) de modelo às de cidades que as realizam em praças públicas, em vez dos fechados e sombrios centros de convenções, como as de Ribeirão Preto (SP) e Caxias do Sul (RS), esta já entrando na sua 24ª. edição, significando isto que ela existe desde 1984.


Lobato ia gostar de ver isso,

ou diria que ainda é pouco?


No eclético elenco de suas criações figura um slogan indelével: “Um país se faz com homens e livros”. Hoje há quem conteste isso. Pouco adiantará produzir-se livros e livros à mão cheia num país ágrafo. Melhor cuidar antes da formação de leitores. Seria, então, a porção editor de Monteiro Lobato que havia pesado mais, quando ele investiu em tal campanha?


Polêmicas à parte, o certo é que as idéias que mais o consumiram não foram em vão. A começar pela que ficou conhecida como “O escândalo do petróleo”. Hoje pareceria até inacreditável que um brasileiro tenha ido parar na cadeia por querer provar de todos os modos a existência de petróleo em território nacional, quando todo o aparelho do Estado, em conluio com uma empresa norte-americana chamada Standard Oil, fazia de tudo para negá-la. Por ironia do destino, o primeiro poço de petróleo aberto no Brasil surgiu no Lobato, na periferia de Salvador, Bahia, no ano de 1939. Mas era agora, ao saber que o país se prepara para entrar no cartel dos 10 maiores produtores de petróleo do mundo, que o polemista José Bento Monteiro Lobato (1882 – 1948) poderia se sentir um visionário. E também ao constatar que avançamos a passos de gigantes na indústria editorial, que é hoje a mais poderosa de toda a América Latina. E é essa indústria a maior incentivadora das feiras de livros, que funcionam como canais de escoamento de uma produção que nem sempre está ao alcance dos leitores nos limitados espaços das livrarias.


À medida que cresceram e se multiplicaram, as feiras passaram a ter outras designações. Foi então que surgiram as bienais, a começar pela de São Paulo, inaugurada em 1968. A do Rio de Janeiro seria instalada pela primeira vez em 1981. O próprio crescimento do mercado empurrou-as para o gigantismo e para a participação internacional: países homenageados, número cada vez maior de escritores estrangeiros convidados etc, tudo isso inspirado no Salão do Livro de Paris, que homenageou o Brasil em 1987 e 1998 – a idéia dos cafés literários veio de lá -, e na Feira de Frankfurt, que o fez em 1994.


Por sua vez, as bienais do Rio e São Paulo inspiraram outras, de Campo Grande, MS, a Fortaleza, CE, de Goiânia, GO, a Maceió, AL. No rodízio geral, somam com as feiras anuais, que chegaram à marca de 150, informa a Câmara Brasileira do Livro. Segundo a CBL, as menores congregam em média 100 mil pessoas. O recorde de público ficaria com a Bienal de São Paulo de 2006: 811 mil participantes. A do Rio de Janeiro também costuma fazer bonito na passarela, pois há muito tempo vem ultrapassando os 600 mil visitantes, conforme o Sindicato Nacional dos Editores de Livros tem divulgado.


Cronologicamente, o Rio Grande do Sul volta a merecer um capítulo especial, pelas também bienais Jornadas Literárias Nacionais de Passo Fundo, criadas em 1981, com 750 participantes, que atualmente chegam a cerca de 20 mil, no espaço de maior movimentação cultural do país, aliando a formação de leitores à venda de livros, num feirão que começa dentro da UPF - a universidade que idealizou o evento e, em associação com a prefeitura local, o organiza, promove e divulga -, às mais de dez livrarias da cidade, cuja existência se deve às Jornadas Literárias, promotoras ainda de um dos maiores prêmios brasileiros (100 mil reais), que tem o nome da empresa que o patrocina, Zaffari & Bourbon. Tudo sob o comando da dinâmica professora Tânia Rösing. Resultado: uma outrora obscura cidade interiorana de 170 mil habitantes, para lá da serra gaúcha, foi guindada ao título de Capital Nacional da Literatura, sancionado pelo presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, através da lei federal no. 11 264, de 02/01/06. É preciso dizer mais?


Na seqüência, vem o caso da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), cuja repercussão supera as das iniciativas similares européias (são mais de mil), que lhe serviram de modelo. Pelo menos essa é a avaliação de sua idealizadora, a inglesa Liz Calder. Por sua vez a Flip fez moda nos trópicos e inspirou os encontros de Ouro Preto, MG, e, mais visivelmente, a Fliporto (Festa Literária Internacional de Porto de Galinhas, Pernambuco), e Brasil vai. O ano de 2007 acrescentou um ponto a essa história, com a entrada em cena da Feira do Livro de São Luís, organizada pela Fundação Municipal de Cultura e o Sesc Maranhão. Tantas feiras, bienais, salões, jornadas e festas de livros seriam inimagináveis ao tempo de Monteiro Lobato. Mas não é necessário ser um crítico tão radical quanto ele foi para dizer que ainda falta muito para chegarmos a um nível ideal. Basta fazer a conta: 150 feiras por ano, num país de mais de cinco mil municípios. Entre os não-feirantes de livros inclui-se a próspera Feira de Santana. “Mundo Novo adeus...”


Vida de viajante



Novo mesmo é isto: nunca dantes se viu tanto escritor rodando de feira em feira como nos últimos tempos. Nesse ir-e-vir cruzam-se nomes em princípio de rodagem com outros já bem quilometrados, entre eles um pop-star oitentão, o popularíssimo Ariano Suassuna, aquele cristão que, ao contrário do seu personagem João Grilo, não nasceu antes do dia. Outro da mesma faixa etária que bomba nos auditórios é Carlos Heitor Cony, tão bom de prosa escrita quanto falada. E neste exato momento deve haver uma platéia em algum lugar se divertindo muito numa palestra de Nélida Piñon, de Moacyr Scliar, de Ignácio de Loyola Brandão, de Ferreira Gullar... só para lembrar alguns dos mais falantes.


O autor destas linhas faz parte do time dos que vivem de escrever e falar sobre isso. E atesta que houve um progresso considerável quanto à exposição pública de escritores nas mais variadas regiões do país. Tudo obedece a uma estrutura com apoio logístico, quanto a transportes, hospedagem, alimentação, e algum respaldo econômico. Esse tempo de estrada, porém, vem de longe. A bem dizer, começou em 1975 com um debate no Teatro Casa Grande, no Rio de Janeiro, organizado pelo contista João Antônio e mediado pelo filólogo Antônio Houaiss. Três dos componentes da mesa passaram a ser convidados para falar em tudo quanto era canto, às vezes juntos, em outras separados. Foram eles o já citado Loyola (conferir no livro dele, Veia bailarina, de 1997), o próprio João Antônio e o locutor que vos escreve. Um dia foi Campos, outro Bauru, depois Assis, Marília, Campinas, Americana, Araraquara. Parecíamos uma trupe mambembe, a ciganear de cidade em cidade, e logo cruzando com outros escritores, de diferentes gerações e tendências, em rodoviárias, estações de trens, aeroportos, hotéis. Mas também dormíamos em casa de professor ou em alojamento de estudante, sempre correndo o risco de sermos proibidos de falar, como aconteceu na Universidade Federal de Juiz de Fora. (Na semana seguinte, a mesma proibição recairia sobre Darcy Ribeiro e Ferreira Gullar). Tudo parecia uma aventura, nem sempre confortável, mas com seus encantos.


Um deles era a descoberta dos nossos pares. Márcio Souza em Manaus; Moacyr Scliar e Tânia Faillace em Porto Alegre; João Ubaldo Ribeiro em Salvador; Benedicto Monteiro em Belém do Pará; Newton Navarro em Natal; Domingos Pellegrini Júnior em Londrina; Lygia Fagundes Telles, Edla Van Steen, Ivan Ângelo, Moacir Amâncio, Wladir Nader, Hamilton Trevisan, Márcia Denser e Raduan Nassar em São Paulo; Oswaldo França Júnior, Wander Piroli, Sérgio Sant’Anna e Roberto Drummond em Belo Horizonte; Luiz Vilela em Ituiutaba, onde no ano de 1976 houve uma feira de livros, à qual cheguei num ônibus que partira de São Paulo, e rodou por mais de mil quilômetros, quase nada, para quem havia estado na capital do estado do Amazonas poucos dias antes. Vida que segue: Curitiba, Criciúma, Itajaí, São José do Rio Preto, Mossoró, Fortaleza, Recife, Manaus e Belém outra vez, Ipatinga, Teixeira de Freitas, Jequié, Alagoinhas... de pequeno em pequeno público, acaba-se fazendo um publico, eis a esperança de quem vive de escrever e falar sobre isso.


Às vezes, de onde se espera muito não acontece nada, ou quase nada (os tais mega-eventos, por exemplo, de Rio e São Paulo), podendo-se comprovar também o contrário, como no modesto Salão do Livro do Piauí, realizado num centro de convenções de Teresina, onde um auditório com 800 lugares fica completamente lotado. E daí para mais, embora de forma previsível, em Paraty e Passo Fundo. Pois acredite: no mapa dos eventos literários nacionais, quem surpreende mesmo é Teresina, que acaba nos convencendo que quanto menor é a feira de livro, melhor.


No mais, é a solidão de um país grande.


*Texto publicado na revista Leitura, da Biblioteca Nacional, em maio de 2008






domingo, 13 de setembro de 2009

A Santa Guerreira Contra o Dragão da Maldade




Diante dos fatos, uma constatação: há gente séria nesses chamados e-groups, preocupada tão-somente em ler e se fazer ler, tagarelar, cantar, discutir futebol, política e religião e, quando possível, falar de receita de bolo.


Estes são os autênticos, os que realmente dão sentido e vida às letrinhas frias e miúdas do monitor. São - posso afirmar sem medo de errar - os verdadeiros escritores cibernéticos, os que não precisam de bajulanças para serem lidos nem de outro expediente não muito recomendável para se fazer notar.


Mas nem tudo é assim dentro desses e-groups, ou “grupos de literatura”, conforme seja no nosso linguajar. É que no Inglês é mais chique. Em todos eles há uma turminha que pensa que sabe alguma coisa, mas não se manifesta porque se acha acima dos demais, são deuses, com todo seu universo de vaidade e poder. São pessoas oniscientes, invisíveis, que só se revelam em surdina, através dos chamados pvts ao moderador do grupo. Na sua essência, são chantagistas militantes e arrogantes quando algo não é do seu agrado: “ou sai ele ou sai eu”, dizem intimativos, encostando o moderador na parede. Normalmente sai “ele”, porque os moderadores precisam de bajuladores e os que conversam muito dentro de um grupo se tornam mais evidentes do que eles, os moderadores.


Dia desses uma amiga me convidou “gentilmente” a sair do seu grupo porque encaminhei à lista de bate-papo uma fotografia de um filhote de panda que, visto pelo olho da malícia, lembrava vagamente o órgão sexual masculino (vide foto acima). Dentre outras coisas, ela tornou público o seu descontentamento comigo, afirmando haver segundas intenções no envio da foto, que eu tinha a mente poluída, que eu havia quebrado as regras do grupo e patati-patatá. Uma verdadeira chamada à responsabilidade, como se estivesse falando com um moleque de rua. Ora, mas era só um filhote de panda e a mesma foto havia aparecido nos jornais e na televisão, mas as beatas do grupo haviam protestado e pediam a intervenção do Vaticano. A minha até então amiga, que se dizia agnóstica, me jogou na fogueira santa da Inquisição sem o mínimo pudor de justiça, sem o pendão da esperança balançar sobre o meu direito de defesa, mas com o devido furor inerente de quem tem o poder, de quem está por cima da carne seca e pode machucar sem o mínimo pejo. Morte aos anarquistas! - gritaram as beatas que não sabiam a diferença entre um pênis e um ursinho panda, muito menos o que era ser um anarquista. Depois que fui obrigado a pegar o meu boné de volta, talvez por arrependimento ou por querer agradar a Deus e ao Diabo ao mesmo tempo, a minha “amiga” me mandou e-mail indicando um grupo de ateus onde eu poderia me sentir à vontade. Segundo ela, era um grupo dos párias cibernéticos, aonde iam os pseudoescrotos, talvez o purgatório desse mundo tão quente quanto as paredes de um iglu.


Você, caro leitor, que ainda não faz parte desse mundo ciberliteral, aconselho-o a pensar duas vezes antes de entrar para algum, principalmente se você for daqueles que tem opinião formada e não abre mão delas. Você fará meia dúzia de amigos, em compensação encontrará uma miríade de gente escrota que se ofende por qualquer dá cá aquela palha, até mesmo com uma fotografia de filhote de panda. As pessoas expansivas e sinceras não adejam muito tempo nessa auréola de supostos deuses. Que o diga a minha amiga Sara Rafael, encantadora poetisa portuguesa, que esta semana me escreveu para dizer que ela havia quebrado o meu recorde de menor tempo de permanência em grupo.


A minha amiga d'além-mar, escritora de “facto” e de direito, educada nos mais rígidos colégios europeus, nem de longe tem essa explosão caliente dos latinoamericanos do Trópico de Capricórnio, mas leva a vantagem (ou talvez desvantagem) de ver a foto de um panda como realmente ela é: um panda. Tudo porque ela se enquadra naquilo que afirmei acima: não é daquelas que precisam bajular nem ser bajulada para sobreviver aos ditames ditatoriais desses grupos literários.






sexta-feira, 11 de setembro de 2009

11 de Setembro - O Dia Que Não Acabou


O 11 de setembro é uma data emblemática. Não pelo ataque às Torres Gêmeas patrocinado por Bin Ladin, mas pelo dia que decidiu o fim da greve do maior pólo petroquímico das Américas, o Pólo Petroquímico de Camaçari, no dia 11 de setembro de 1985.

Também foi no dia 11 de setembro de 2008 que centenas de trabalhadores, sumariamente demitidos e implacavelmente perseguidos pela ditadura remanescente nos porões da Nova República, tiveram seu status de perseguidos políticos reconhecidos pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, em julgamento ocorrido no auditório da Biblioteca Pública dos Barris. A reparação a qual fizeram jus, por maior que tenha sido, não apaga de suas almas os anos de privações e necessidades que passaram. A ditadura, através do braço que ficou no ramo químico/petroquímico (o general Geisel foi o seu principal mandatário até a reforma feita pelo Governo Collor), transformou-os num exército de párias, na legião dos condenados.

Hoje, aproveito a data, para publicar duas crônicas e um poema deste que vos escreve com o mote da greve. “UM MINUTO DE SILÊNCIO” foi escrito e publicado no Natal de 84 no jornal do sindicato, como forma de sensibilizar a classe patronal a fornecer nosso paradigma salarial que serviria como base de nossas reivindicações perante a Comissão de Anistia. “A GREVE QUE [NÃO] ABALOU O MUNDO” foi apresentada como tese no Congresso dos Petroleiros e Petroquímicos, realizada no ano passado. E “ORAÇÃO DO MORCEGO”, foi o poema que abalou as estruturas emocionais no dia 11 de setembro de 1985, na assembléia do Cine Nazaré. Lida pelo então secretário do Sindiquímica, Jacques Wagner, hoje governador da Bahia, não houve quem não fosse às lágrimas tamanho o impacto emocional. Esse poema foi publicado no jornal do sindicato e eu me tornei um proscrito.

“Morcego”, no jargão sindical, é aquele trabalhador que se alija do seu direito reivindicatório para se encostar à sombra daquele que luta por dias melhores.

UM MINUTO DE SILÊNCIO


Agosto de 1985. O Pólo Petroquímico de Camaçari vivia o seu apogeu produtivo. As unidades operavam a 150% de sua capacidade nominal de carga. Algumas indústrias, a exemplo da Copene, começavam a ampliar suas plantas operacionais. Duplicar era preciso. A demanda era maior do que a oferta.

O país vivia a distensão política, depois de duas décadas de ditadura militar. Embora se chorasse a morte de Tancredo Neves, ocorrida em situação misteriosa em 21 de abril desse mesmo ano, se respirava o alívio da Nova República, presidida por José Sarney e tendo Ulisses Guimarães como timoneiro do Congresso Nacional.

Os trabalhadores da indústria química/petroquímica lutavam pela equiparação salarial com a Petrobrás. O adicional de turno de 88,5% era a principal bandeira reivindicatória. Na época, os adicionais eram apenas de 56%, dois terços dos adicionais pagos na Petrobrás, a principal acionista das empresas do Pólo, através da Petroquisa. Era necessário se corrigir aquela injustiça. Afinal de contas, o patrão era o mesmo.

Não houve acordo. As empresas se mostraram intransigentes. O sindicato endureceu. Na queda de braço, levou a melhor este último, patrocinando o maior movimento paredista da história da petroquímica em todo o mundo. Havia em torno de sessenta indústrias no Pólo de Camaçari e todas elas pararam. Os patrões foram à Justiça. Perderam. O Tribunal Regional do Trabalho julgou a greve legal, decisão surpreendente para o modelo jurídico da época, atrelado, de corpo e alma, ao poder econômico. Davi vencia o Golias. Mais uma vitória do Sindiquímica.

Não demorou muito e veio a retaliação contundente e arbitrária dos donos do poder. De imediato foram demitidos 171 funcionários por justa causa, sendo que a Copene liderou a lista dos demitidos, com 71. Não tiveram direito a nada, nem mesmo de pegar seus pertences que ficaram nos armários de suas respectivas empresas. Os patrões, não satisfeitos com o final da greve, foram demitindo a conta-gotas, cada dia um, para não chamar a atenção da sociedade. A cada demitido, o estigma de uma lista negra invisível que negava o acesso do inditoso grevista a todo e qualquer meio produtivo, tornando o cidadão um pária social.

Por alguns meses os desafortunados foram sustentados pelos colegas que tiveram a sorte de gozar dos loiros da vitória. Foi penoso, aviltante, humilhante e triste. Os demitidos, todos pais de família, tiveram suas vidas esfaceladas, moralmente destruídas. Alguns casamentos entraram em crise e muitos foram desfeitos. Filhos estranharam pais, colegas evitaram ex-colegas e a vida parecia não ter mais conserto. Alguns não resistiram e morreram clamando por justiça.

E hoje, dezenove anos passados, os patrões parecem que não perderam a intransigência nem arrefeceram o ânimo em prejudicar os herdeiros da Desdita. Ante a possibilidade dos mesmos serem beneficiados pela Lei da Anistia, negam fornecer um documento fundamental para que tal aconteça: o plano de cargo e salário praticado, hoje, pelas empresas. Sem esse documento, não há a menor chance de que os excluídos sociais um dia resgatem a sua dignidade de cidadão que em setembro de 1985 lhe foi usurpada.

Portanto, façamos um minuto de silêncio pelos que passam fome. Fome de Justiça e de Cidadania.



A GREVE QUE [NÃO] ABALOU O MUNDO


Embora hoje ninguém acredite, em 1985 houve uma greve que paralisou o então maior pólo petroquímico das Américas. O sindicato patronal não levou fé na força persuasiva do sindicato dos trabalhadores, na época denominado Sindiquímica, sob a presidência de Nilson Bahia, nem na união da peãozada, cansada de ser acachapada por seus superiores em seu idealismo utópico e no seu romantismo político, como se a empresa, apenas ela, fosse o começo, meio e fim, não havendo nenhuma brecha para abrigar o ideário econômico-social da massa oprimida e comprimida nas mazelas do capitalismo selvagem.

Eu era apenas um rapaz latino-americano, sem dinheiro no bolso e sem amigos importantes quando o sindicato bateu à minha porta pedindo guarida. Ou compreensão dos fatos. Operador de processo na Copene, vaticinei: este será um ano atípico, o ano dos morcegos e das cobras. Foi. Era cobra engolindo cobra, amigos traindo amigos, os morcegos mostrando suas mandíbulas. Nacionalmente havia a distensão política, com a posse de José Sarney na presidência da República. Enquanto ele planejava entrar para a ABL com o seu livro de poesias “Marimbondos de Fogo”, nós, peões do Pólo Petroquímico de Camaçari, vivíamos nossa prova de fogo, sem que nos dessem um fardão para vestir.

Os dias que antecederam a greve foram marcados por intensa angústia e assédio moral. Tanto por um lado, quanto pelo outro. Era o jogo de empurra, de informações truncadas, de disse-me-disse, guerra de nervos, espionagem e arapongagem. Companheiros seguravam a bandeira com força e fé, e prometiam marchar na unidade, comungar do princípio Uno que rege as forças naturais e mantém inalterada a harmonia do Universo. Seria “a união faz a força”, o axioma universal de todas as revoluções. Um peão sozinho não faz greve, no máximo, falta ao trabalho. Um por todos, todos por um: o sindicato.

Era preciso união, crescer o bolo dos grevistas e inchar. Inchar até explodir a veia aorta ou, antes disso, paralisar o coração. Era essa a lógica dos estrategistas de plantão. O grupo que estava trabalhando no horário de 15 às 23 horas seria rendido pelo grupo das 23 às 07 e, em vez de retornar à casa, ficaria no vestiário; o grupo que entraria às sete, se juntaria ao grupo que estava no vestiário e, não havendo rendição, o grupo que estava trabalhando teria que parar as unidades, por causa do cansaço, vez que o grupo que viria à tarde estava acampado no vestiário, ou, no jargão sindical, inchando. Isto foi o planejado.

Não houve transporte para o grupo da noite, o qual eu me incluía. Através de carros particulares, todos compareceram para render o grupo da tarde. O grupo da tarde, conforme o planejado, não saiu da Copene, ficando acampado no vestiário. No outro dia o grupo da manhã encontrou os portões fechados a cadeados. Não podia entrar. Criou-se um movimento na área externa. Depois de muito se conversar com o vigilante que tinha as chaves do portão, ele deu um vacilo, o pessoal tomou as chaves e abriu o portão principal e, em vez de aguardar no vestiário conforme o combinado, foi direto para as unidades, disposto a pôr a termo a angústia nossa daqueles dias. Exatamente às nove horas da manhã, o flare da Copene mostrou uma bola de fogo enorme, cujo calor se fez sentir a quilômetros de distância, sinal de que os compressores de eteno estavam parados. Este feito foi comemorado com urras e vivas, e muitos atiraram o capacete ao ar, à moda cowboy. Só faltaram dançar can-can.

Parada a Copene, as coligadas foram obrigadas a desligar seus motores. Quem não parou por livre e espontânea vontade, parou pela massa massacrada e humilhada. Pronor, Politeno, Nitrocarbono, Polialden, CPC, Acrinor, Metanor, Nitrofértil e todas as outras do conglomerado silenciaram suas máquinas em respeito ao maior movimento paredista da história da petroquímica que se tem notícia. E a relação capital/trabalho nunca mais foi a mesma, com os patrões engendrando mil maneiras de afastar o trabalhador de um convívio mais afetivo e harmônico, deixando-o isolado em sua área, sozinho com suas manobras operacionais e conversando com os fantasmas remanescentes de uma greve, cuja solidão dos últimos tempos o deixa na dúvida se ela foi, de fato, real ou apenas fruto de sua fértil imaginação.

Eu, que fiquei do lado de fora da cerca ao final da greve, impedido de gozar dos loiros da vitória, e, por conseguinte, alijado do processo produtivo do país no maior caça às bruxas promovido pelos resquícios da ditadura, chego à triste conclusão de que, se por um lado aquela greve não abalou a economia mundial, por outro promoveu um abalo sísmico no meu mundo e nas pessoas que giram em sua órbita.



Oração do Morcego


Meu Deus,
Quisera ter um coração grande
O quanto tanto a Tua bondade divina,
Para compreender a perfídia ignominiosa
Desses estranhos seres habitantes
Das profundezas obscuras das cavernas

E que fazem da noite o seu dia

Para tecer traições aos seus companheiros.

Meu Deus,
Que a minha mágoa de traído não seja menor
Que a angústia e os pesadelos do meu traidor,
Pois ela há de me fazer sorrir
Em algum momento, em algum lugar,
Quando por algum Judas eu passar
E os meus filhos compreenderem
Que os apertos materiais desses dias
Foi pelo pacto que fiz com minha consciência
E do compromisso que assumi como Homem.

Meu Deus,
Esse estranho ser
Que me induziu, que me cativou,
Que fingiu ser meu amigo e o meu drama compreender
E arrancou dos meus lábios o meu brado de guerra
Por melhores dias e uma justiça salarial
E depois recuou incontinenti,
Fascinado pelo brilho das trinta moedas
E acossado pela sua covarde traição,
Decerto, meu Deus, decerto,
Não viverá melhores dias
Que os dias daqueles que foram banidos
- Pais de família, honestos cidadãos,
Que, por culpa dele, foram jogados na rua
Como se fossem temíveis ladrões.

Meu Deus,
Quando a Tua ira se abater sobre o meu algoz
E o gosto pela vida ele não mais sentir,
Mesmo com os meus olhos vertendo lágrimas
E o meu coração dilacerado, estraçalhado,
Por mágoas profundas da traição,
Te peço, meu Deus, te imploro,
Tende piedade da consciência
E da alma desse estranho ser
Que me beijou como amigo
Pra sugar todo meu sangue.

Salvador, 11 de setembro de 1985.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

A PRIMAVERA DE UM POVO






"Dai que meus sonhos não se banalizem, 
não sejam mortos em tão duras provas.." 
Adroaldo Ribeiro Costa

Primavera, teu nome é flores. Antigamente – e não tão antigamente assim – a chegada da Primavera era motivo de festas e de tema de redação nas escolas. No dia 22 de setembro os estudantes eram obrigados a se perfilar e a cantar o Hino da Primavera. Depois saíam em caminhada pelos parques e jardins em busca de inspiração para a redação. Namorados trocavam cartões, amantes enviavam flores e os jardins públicos e privados se esbaldavam em aroma floral. Havia também desfiles escolares pelas principais ruas e avenidas da cidade. 

Na Bahia de antigamente – e não tão antigamente assim – havia os jogos estudantis da Primavera e mobilizavam toda classe estudantil baiana em disputa de modalidades olímpicas. O auge acontecia no Ginásio de Esporte Antonio Balbino e na pista olímpica do estádio da Fonte Nova. Caravanas e caravanas de estudantes partiam em ruidosa romaria do interior para a capital e, durante duas semanas, Salvador abrigava milhares de rostos juvenis com suas alegrias e ansiedades características. Devo confessar que a Primavera, além de inspirar o espírito esportivo, aflorava nos corações o envolvente e mágico jogo da sedução. Houve inúmeros casos de casamento em data posterior ao evento. Casamentos estes que, às vezes, só duravam até o outono. Os jogos eram patrocinados pelo Governo do Estado, pelos Diários Associados – então a maior rede de notícias do Nordeste – e coordenados pelo saudoso professor Adroaldo Ribeiro Costa, um poeta dos maiores, autor do belíssimo e poético hino do Esporte Clube Bahia, educador de primeira linhagem e criador do projeto “Hora da Criança”, em 1943, no intuito de educar através da arte. Foi desse projeto que surgiram as irmãs canoras artisticamente conhecidas como “Quarteto em Cy”. O Hino da Primavera, também do professor Adroaldo Ribeiro Costa, era um hino ufanista e conclamava os baianos a sentir o amor pela pátria chamada Bahia. Advém daí o grande orgulho do baiano em ser baiano. 

Na Bahia somos doutrinados para sentir orgulho de nossa terra, de nosso povo, de nossa gente, desde os primórdios da infância. Antes de se estudar a História do Brasil ou de outros povos, estuda-se primeiro a História da Bahia, nossa geografia heróica, humana e social. Parte-se da premissa de que, se queremos ser valorizados pelos outros, primeiro temos que nos valorizar. 

Em sete de setembro de 1922 D. Pedro deu o Grito do Ipiranga e foi para um bordel tomar cachaça e fornicar com as putas. À sua sombra, soldados e bajuladores, pois isso não é coisa d’agora. Enquanto ele mostrava a sua espada para a Marquesa de Santos, o pau comia entre baianos e portugueses na província da Bahia. Por quase um ano o baiano lutou bravamente contra os homens d’el-rey para defender o então solo pátrio. Luta campal renhida e desigual, que ficou conhecida como a Batalha de Pirajá, por um acaso afortunado do destino os portugueses não levaram a melhor: vendo-se acossado, o comando em terra das forças baianas deu ordem ao soldado Lopes, corneteiro da tropa, para dar o toque de retirada e evitar mais mortes. O corneteiro se atrapalhou e, em vez do toque de retirada, mandou para o ar o toque de “avançar”. Os soldados índios, os soldados caboclos, os soldados negros escravos dos senhores de engenho do Recôncavo, aliados aos rotos soldados do Imperador, cresceram em coragem e fé e partiram com vontade para cima dos portugueses, que fugiram até o mar do Porto da Barra e lá entraram em suas naus e escafederam-se na Baía de Todos os Santos, perseguidos pelo almirante Lord Cochrane, contratado de última hora pelo Imperador para reforçar os bravos combatentes baianos na sua luta desigual. 

O Sete de Setembro na Bahia é apenas um feriado a mais, sem muitas comemorações. A festa cívica dos baianos acontece na data de aniversário em que o corneteiro Lopes pôs os lusos para correr. Apesar de ser Inverno, o Sol abre alas para as escolas desfilarem em trajes de gala. Alegorias revivem a trajetória vitoriosa, do Pirajá ao Campo Grande, local da última batalha, cujos monumentos lembram os heróis da independência da Bahia. 

Um dos bairros mais chiques de Salvador, a Vitória, ganhou esse nome em homenagem à data Magna baiana, inclusive a sua principal rua chama-se “Corredor da Vitória”, onde a tropa lusa levou as últimas bordoadas antes de fugir pelo Porto da Barra. 

Então, nesse histórico e inesquecível dia, 2 de Julho de 1823, teve início a Primavera do baiano, que lutou bravamente, não pelo seu Imperador, mas por uma pátria chamada Bahia.

(Agradecimentos ao compadre José Carlos Bahiana Machado Filho pelo empréstimo da fita k-7 com a música do Hino da Primavera da Bahia)