Embora hoje ninguém acredite, em 1985 houve uma greve que paralisou o então maior pólo petroquímico das Américas. O sindicato patronal não levou fé na força persuasiva do sindicato dos trabalhadores, na época denominado Sindiquímica, sob a presidência de Nilson Bahia, nem na união da peãozada, cansada de ser acachapada por seus superiores em seu idealismo utópico e no seu romantismo político, como se a empresa, apenas ela, fosse o começo, meio e fim, não havendo nenhuma brecha para abrigar o ideário econômico-social da massa oprimida e comprimida nas mazelas do capitalismo selvagem.
Eu era apenas um rapaz latino-americano, sem dinheiro no bolso e sem amigos importantes quando o sindicato bateu à minha porta pedindo guarida. Ou compreensão dos fatos. Operador de processo na Copene, vaticinei: este será um ano atípico, o ano dos morcegos e das cobras. Foi. Era cobra engolindo cobra, amigos traindo amigos, os morcegos mostrando suas mandíbulas. Nacionalmente havia a distensão política, com a posse de José Sarney na presidência da República. Enquanto ele planejava entrar para a ABL com o seu livro de poesias “Marimbondos de Fogo”, nós, peões do Pólo Petroquímico de Camaçari, vivíamos nossa prova de fogo, sem que nos dessem um fardão para vestir.
Os dias que antecederam a greve foram marcados por intensa angústia e assédio moral. Tanto por um lado, quanto pelo outro. Era o jogo de empurra, de informações truncadas, de disse-me-disse, guerra de nervos, espionagem e arapongagem. Companheiros seguravam a bandeira com força e fé, e prometiam marchar na unidade, comungar do princípio Uno que rege as forças naturais e mantém inalterada a harmonia do Universo. Seria “a união faz a força”, o axioma universal de todas as revoluções. Um peão sozinho não faz greve, no máximo, falta ao trabalho. Um por todos, todos por um: o sindicato.
Era preciso união, crescer o bolo dos grevistas e inchar. Inchar até explodir a veia aorta ou, antes disso, paralisar o coração. Era essa a lógica dos estrategistas de plantão. O grupo que estava trabalhando no horário de 15 às 23 horas seria rendido pelo grupo das 23 às 07 e, em vez de retornar à casa, ficaria no vestiário; o grupo que entraria às sete, se juntaria ao grupo que estava no vestiário e, não havendo rendição, o grupo que estava trabalhando teria que parar as unidades, por causa do cansaço, vez que o grupo que viria à tarde estava acampado no vestiário, ou, no jargão sindical, inchando. Isto foi o planejado.
Não houve transporte para o grupo da noite, o qual eu me incluía. Através de carros particulares, todos compareceram para render o grupo da tarde. O grupo da tarde, conforme o planejado, não saiu da Copene, ficando acampado no vestiário. No outro dia o grupo da manhã encontrou os portões fechados a cadeados. Não podia entrar. Criou-se um movimento na área externa. Depois de muito se conversar com o vigilante que tinha as chaves do portão, ele deu um vacilo, o pessoal tomou as chaves e abriu o portão principal e, em vez de aguardar no vestiário conforme o combinado, foi direto para as unidades, disposto a pôr a termo a angústia nossa daqueles dias. Exatamente às nove horas da manhã, o flare da Copene mostrou uma bola de fogo enorme, cujo calor se fez sentir a quilômetros de distância, sinal de que os compressores de eteno estavam parados. Este feito foi comemorado com urras e vivas, e muitos atiraram o capacete ao ar, à moda cowboy. Só faltaram dançar can-can.
Parada a Copene, as coligadas foram obrigadas a desligar seus motores. Quem não parou por livre e espontânea vontade, parou pela massa massacrada e humilhada. Pronor, Politeno, Nitrocarbono, Polialden, CPC, Acrinor, Metanor, Nitrofértil e todas as outras do conglomerado silenciaram suas máquinas em respeito ao maior movimento paredista da história da petroquímica que se tem notícia. E a relação capital/trabalho nunca mais foi a mesma, com os patrões engendrando mil maneiras de afastar o trabalhador de um convívio mais afetivo e harmônico, deixando-o isolado em sua área, sozinho com suas manobras operacionais e conversando com os fantasmas remanescentes de uma greve, cuja solidão dos últimos tempos o deixa na dúvida se ela foi, de fato, real ou apenas fruto de sua fértil imaginação.
Eu, que fiquei do lado de fora da cerca ao final da greve, impedido de gozar dos loiros da vitória, e, por conseguinte, alijado do processo produtivo do país no maior caça às bruxas promovido pelos resquícios da ditadura, chego à triste conclusão de que, se por um lado aquela greve não abalou a economia mundial, por outro promoveu um abalo sísmico no meu mundo e nas pessoas que giram em sua órbita.
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