domingo, 14 de junho de 2009

Pedro, O Infecundo

Meu primo Pedro fugiu da falta de perspectiva de um porvir risonho do arraial do Junco para morar em Alagoinhas em meados dos anos setenta. Inicialmente morou em nossa casa, dividindo um quarto comigo. Foram meses de pesadelo: roncava, falava dormindo e se levantava da cama em ataque de sonambulismo. Quando eu comecei a me acostumar, a sua mãe alugou uma casa e ele foi morar com a sua irmã mais velha.
Arranjou trabalho de vendedor numa casa comercial de nosso tio Edgard. Não era um salário muito bom, nem mesmo beirando o razoável, mas dava para cobrir os gastos com as farras de fim de semana. Ele não gastava com mulher porque era um praticante dileto do sexo solitário. Exibia seu lema com muito orgulho: “Enquanto houver onanismo no mundo não me arrisco a pegar uma doença”. E as doenças eram brabas. Não matavam como a AIDS, mas faziam o cabra sofrer um bocado, principalmente na hora de tirar a água do joelho.
Como tudo nessa terra ganha apelido, a masturbação também ganhou o seu. Vários. Ato covarde, cinco contra um, descascar banana verde e puxar carrinho de mão são os mais falados na adolescência. Já em Salvador, a famosa “punheta” é o nome popular do bolinho de estudante vendido no tabuleiro das baianas do acarajé.
Uma vez minha tia veio visitar Pedro em Alagoinhas. Achou-o magro, amarelado. Reclamou:

– Pedro está muito magro e pálido!
– Isso é de tanto “puxar carrinho de mão”, tia – eu disse.
– Meu filho está puxando carrinho de mão! Vou falar a Edgard que isso não está certo! Você veio pra Alagoinhas pra ser vendedor da loja dele!

Pedro ficou sem saber onde enfiar a cabeça com o vexame da mãe. E ela ficou sem entender o motivo de tantas gargalhadas.

Ele também era adepto do “fazer terra”, “roça-roça”, “liga-liga” ou, como escreveu a poetisa Marisa Queiroz com muita propriedade, em um site de Literatura: “Masturbar-se nos outros”. Uma vez fomos a uma festa dançante que acontecia todos os domingos na sede do Esporte Clube Vencedor, um time de bairro pior do que o Íbis de Pernambuco. Indicado pelos amigos, disseram que nesse clube rolava a mais pura sacanagem. Pedro acreditou. No mexe e remexe da dança do mela-coxa, ele ficou estático e extático no meio do salão. Soltou um grito triunfal:

– Gozeeeiiiii!

Calou-se a orquestra, fez-se silêncio em honra a Calígula. A garota largou o parceiro no meio do salão e escafedeu-se. Acenderam-se as luzes. Pedro estava patético. Uma voz forte retumbou:

– Seguranças, peguem esse safado! Pau nele!

Não era a festa do pega-mela. Entramos no clube errado. E pelo cano. Era o Clube dos Sargentos e Sub-Tenentes da Polícia Militar. A garota que dançava com o meu primo era filha do presidente, um sargento metido a brabo. Puxei Pedro do seu delírio erótico e saímos pulando sobre as mesas, saltamos a roleta na porta de entrada e desaparecemos no breu da noite. Corremos seis quilômetros em menos de meia hora. E nunca mais pisei o chão ao redor daquele clube.




sexta-feira, 12 de junho de 2009

Para gostar de ler (e escrever) romance com o Escritor Antonio Torres


O Escritor Antônio Torres apresentará na Casa do Saber, Rio de Janeiro, às terças-feiras do mês de julho, das 19 às 22 horas, quatro aulas cuja temática será o título acima.




Desde Dom Quixote, cuja primeira parte data de 1605, o romance tornou-se um espaço entre a ficção e a biografia, e um território entre o real e a imaginação, sendo tudo isso ao mesmo tempo e nada disso, levando o leitor ao terreno da dúvida. O gênero cresceu na Inglaterra com a revolução industrial, no século 18, e chegou ao apogeu no século 19, pelo conjunto da obra de um elenco de gigantes (Tolstoi, Dostoievski, Dickens, Flaubert, Balzac, Sthendal, Eça de Queirós, Machado de Assis...) No século 20 teve sua estrutura virada pelo avesso, a partir das inovações formais e estilísticas introduzidas por James Joyce. Depois de todas as experimentações que sofreu daí em diante, e já com sua morte tantas vezes anunciada, afinal, qual o romance que se quer ler (ou escrever) hoje? Apenas uma velha e boa história bem contada? E mais: alguns segredos da criação de um romance, do título ao ponto final.


4 aulas


7 JULHO


Breve introdução ao gênero, sua história, desenvolvimento e impasses na contemporaneidade. Títulos, inícios e finais de romances memoráveis. A criação de personagens, dos diálogos, e a relação tempo cronológico-tempo psicológico. O narrador. Leitura em voz alta pelos participantes de um capítulo exemplar de romance. Impressões sobre o texto lido. O romance que cada um gostaria de ter escrito. E o que tem na cabeça – ou na gaveta – e nunca teve coragem de contar.


14 JULHO


A estratégia narrativa e a originalidade de Memórias póstumas de Brás Cubas, o romance dentro do romance, exemplo de obra literária do século 19 cujas inovações continuarão causando impacto pelos séculos afora. Leitura de alguns de seus capítulos. Exibição de trechos da adaptação do livro para o cinema, por André Klotzel. Confabulações em torno da construção e do texto machadiano, do Rio e da sociedade brasileira na visão ao mesmo tempo irônica e melancólica do autor.


21 JULHO


Outro caso exemplar de estratégia narrativa. Este, do século 20: O Grande Gatsby, no qual Scott Fitzgerald atingiu a quintessência do seu sonho de arte e beleza. Está tudo lá: ritmo, cadência, e a comprovação de uma crença do autor de que “ação é personagem”. E, em vez da ironia machadiana, a prosa melódica da era do jazz; em vez do toque de melancolia por trás do riso de Brás Cubas, que se narra, o olhar de desencanto do narrador diante da misteriosa opulência de Gatsby, e, por extensão, das extravagâncias da sociedade norte-americana do primeiro pós-guerra, como se antevisse o desfecho trágico que deu no crack de 1929 e na depressão dos anos de 1930, de que hoje tanto se fala. Leitura em voz alta de trechos do pequeno grande romance de Scott Fitzgerald. Comentários.


28 JULHO


Século 21: a desconstrução das formas canônicas, quando o romance prima pela incorporação de outros gêneros à sua estrutura, como o ensaio, a reportagem, a biografia etc., o que já vinha acontecendo no século anterior, mas agora parece dominar o cenário literário, sobretudo o brasileiro. Caso a ser analisado: O filho eterno, que ganhou praticamente todos os prêmios nacionais, levando o autor, Cristóvão Tezza, a ser distinguido com o Faz a diferença do jornal O Globo, este ano. Em foco: quando o real leva à invenção a atingir o status romanesco. Podem as vivências particulares resultar em histórias de interesse geral? O que faz a diferença entre a realidade e a ficção, ou mesmo entre um romance e outro? - considerando-se este outro o que desperta o interesse da crítica e do público. Comentários finais, envolvendo os participantes do curso.



Antônio Torres é autor de 11 romances, entre os quais se destacam: a trilogia formada por Essa terra, O cachorro e o lobo, Pelo fundo da agulha, e seus dois títulos (Meu querido canibal e O nobre sequestrador) que envolvem personagens e histórias da História do Rio de Janeiro. Com várias edições no Brasil e traduções em muitos países, foi agraciado pelo governo da França, em 1998, com a comenda de Chevalier des Arts et des Lettrres. Em 2000, recebeu o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto da sua obra. Em 2001 foi o ganhador do Prêmio Zaffari & Bourbon, da 9ª. Jornada Nacional de Literatura de Passo Fundo, RS, por Meu Querido Canibal. (Mais informações: www.antoniotorres.com.br)



quinta-feira, 11 de junho de 2009

Sim, crianças podem gostar de ler - Ignácio de Loyola Brandão



Crônica de Ignácio de Loyola sobre A Casa Meio Norte, em Teresina, Piauí, para o jornal O ESTADO DE SÃO PAULO, cuja leitura deveria ser feita por todas as mentes pensantes e não pensantes (pra ver se começam a pensar) não só do arraial do Junco, mas deste mundão de Deus.


A publicação no blog foi autorizada pelo autor.

Depois do texto há um vídeo produzido e disponibilizado no Youtube pela Casa Meio Norte depois da visita do escritor.



Imagens: Visita do Escritor Ignácio de Loyola à Escola Casa Meio Norte - Teresina - PI, retiradas do vídeo do Youtube no meionorte.com.


TERESINA — A cada passo, o espanto. Por fora parecia uma escola normal, o muro alto vedando a visão. Transposto o portão, o inesperado, a absoluta limpeza. Logo, outro assombro, não há uma só grade. Antes de começar a visita, fui ao banheiro. Imaculado. Desentendi. Não é uma escola publica em um dos bairros mais afastados da capital do Piauí? Um dos mais violentos, abandonados? Não é uma escola para alunos carentes, aqueles a quem a vida pouco dá, ao contrário, vai tirando, sugando? Nenhuma grade para proteger do mundo exterior, nenhum grafite nas paredes e nem uma janela quebrada. A admiração cresceria a cada passo, relevando-me a diversidade brasileira, nossas incoerências e contradições.

Levado pelas diretoras Osana Morais e Ruthneia Costa, percorri classes, recebido por alunos sorridentes, de alto astral, que me cantaram canções alegres. Já fui a muita escola de periferia em São Paulo e pelo Brasil. Alunos tristes, baixa auto-estima, professores desiludidos, agredidos, humilhados. Instalações precárias, banheiros porcos, falta de carteiras, de material, paredes repletas de inscrições ininteligíveis, grades para evitar roubos e depredações, cozinhas precárias, merendas destinadas a fomentar subnutrição. Síntese do ensino brasileiro. Não nesta escola chamada Casa Meio Norte! Tudo é diferente, e como!

Por que decidi vir, abandonando outros compromissos? Recém chegado de Belém, ainda no aeroporto me disseram: “Nessa escola, cada aluno lê entre 20 a 30 livros por mês”. Loucura, impossível! Vamos lá, quero ver! Não acreditei, até chegar. Na Casa Meio Norte, na Cidade Leste, as crianças têm paixão por livros e pela escrita. Cada sala de aula tem uma sacola com 50 ou mais livros, não há uma biblioteca central. O livro faz parte do cotidiano. As crianças descobriram que, por meio da literatura, podem escapar da áspera realidade em que estão envolvidos e à qual fatalmente seriam conduzidos. Um presente sem futuro. Tornado futuro pela escola, pela leitura e pela escrita.

Cidade Leste vive sob o domínio da violência, há todo tipo de foras da lei, do traficante ao ladrão, ao ladrãozinho, ao futuro ladrão. Esses meninos da Casa estariam destinados a se tornarem “mulas”, transportando drogas, ou estariam nas ruas pedindo esmolas, roubando. Estariam soltos, abandonados, enviados à morte prematura. Há pais aqui que são do tráfico, da delinqüência. Há quem não conheça o pai, há quem não saiba quem é sua mãe. Todavia, quando entramos e vemos aqueles rostos orgulhosos, sabemos, tudo indica, estão salvos. Nessa Casa comem quatro refeições por dia, quando o normal, fora dessas paredes, seria não comerem nada. Para ajudar a manter a Casa, o jornal Meio Norte, do Grupo de Comunicação Meio Norte, um dos principais de Teresina, entra com apoio, patrocina material e uma série de realizações. Acreditam que responsabilidade social pode gerar mudanças.

Assim que entrei, uma menina de 10 anos, Mariana Garcês, apanhou o caderno e leu um poema. Depois me deu a folha. Autografada, claro!

Se você do vicio
consegue sair
fecha a porta
para eu não entrar.
Se você na escola
conseguir entrar
deixe a porta aberta
para eu passar.

Contei minha história, a do Menino que Vendia Palavras, meu livro infantil. Revelei que também fui pobre, lia muito, escrevia. A guarda estava aberta, havia um ponto em comum, as privações da infância. A cada passo, um aluno queria me mostrar um texto. Numa das classes, Anderson, dos mais tímidos da escola, encontrou coragem, me disse também um poema. Não conseguiu terminar, chorou de emoção. Todos queriam falar dos livros que leram, e foram tantos. A turma — são 680 alunos — lê mais do que muito universitário da USP ou da PUC, do que muito menino de classe média e média alta do ensino privado. Eles gostam de ouvir e de contar histórias. Muitos não sabem se verão o pai no dia seguinte, habituados ao cotidiano de violência que permeia lá fora. Muitos desses pais são aqueles que garantem a “segurança” da Casa Meio Norte. Certo dia, uma gangue de outro bairro roubou equipamentos. Quatro horas depois os equipamentos “estavam de volta”, resgatados. Há um conceito diluído no ar: Não mexam com a escola!

Muitas vezes, na reunião de pais e mestres, professores deparam com homens vestidos corretamente, camisas de mangas compridas para esconder tatuagens ou cicatrizes, participando, dando opinião, perguntando. Eles não querem que os filhos sejam como eles. E os filhos não querem ser. Essa escola de ensino aplicado, que existe há dez anos, está realizando aquilo que todos desejam, e responde a pergunta que ouvimos pelo Brasil inteiro: como fazer a criança ler? Como tirá-las das ruas, dar identidade, ensinar cidadania? Aquela meninada sabe mais de cidadania do que muito ministro e milhares de parlamentares federais, estaduais, municipais, envolvidos em maracutaias sem fim.

Seminários, convenções, simpósios, debates de “alto nível”, comissões de governo. Não tem adiantado ao longo de décadas. Basta vir a Teresina e conversar com os 28 professores da Casa, um grupo de abnegados apaixonados por livros, histórias, fantasia. Ainda que com o pé inteiro na realidade. Os olhos daquela gente são iluminados. Aqui entra o paradoxo, a estanha maneira pela qual tudo funciona no Brasil e que nenhum ministro, secretário, educador, técnico, profissional consegue alcançar entender. Soluções ao contrário, o mundo funcionando ao reverso. A rebours, diria Huysmans. Há o Brasil aparente e o Brasil oculto com pessoas admiráveis sobre as quais não cai um foco de luz e elas não precisam, são alimentadas por sonhos e ideais. Brasil que caminha.












terça-feira, 9 de junho de 2009

Sheila


Quando você nasceu, eu vivia os instantes finais da minha adolescência pelas ruas de Alagoinhas, num misto de estudante, trabalhador e hippie. Era um dos últimos remanescentes da geração paz e amor. Vivíamos uma intensa repressão político-ideológica e vi várias pessoas serem perseguidas pelas mais esfarrapadas acusações.


Quando você deu o seu primeiro choro, centenas de pessoas deram o seu lamento pela última vez nos fétidos e obscuros porões das torturas. Quando você disse “papá”, articulando seus primeiros tatibitatis, nada se falava no país, pelo medo da repressão que nos amordaçava. O Araguaia era uma realidade distante que poucos ouviam falar. O Junco era governado pela ARENA 1, que se revezava com a ARENA 2, e conflitos de natureza ideológica eram coisas do outro mundo. Em Alagoinhas se articulava a fundação do diretório do MDB e foi nesse ano que conheci um homem que, tempos depois, liderou o país na cruzada pela democracia: Ulisses Guimarães.


Quando você nasceu os americanos levavam uma surra mortal dos vietnamitas, o lançamento do disco de Roberto Carlos era disputadíssimo, Raulzito se firmava como Raul Seixas e Secos e Molhados maravilhava o país, de norte a sul, com uma música totalmente diferente da que costumávamos ouvir. O nosso sangue latino começava a ferver nas veias. O país, discretamente, vivia a sua emancipação cultural. O brasileiro começava a rever seus valores. O americanismo não empolgava mais.


Quando a sua mãe começou os preparativos para a festa do seu primeiro aniversário, participei, pela última vez, da festa da padroeira do Junco. Teve feira-chic, corrida de saco, procissão pelas ruas da cidade, leilão para ajudar nas despesas da festa e à noite houve baile dançante no recém-inaugurado matadouro municipal. Levaram uma banda de Feira de Santana chamada The Spath Five, que foi rebatizada como “Os Espatifados”, de tão ruim que era. Lembro-me de gente dançando valsa, outros bolero, os jovens dançavam rock’n roll, enquanto o cantor cantava “We Said Good bye”, de Dave Mcclean. Desentrosamento total. Um caos. Mesmo assim todo mundo saiu satisfeito. O espírito da festa era o que importava. O resto era apenas detalhes.


No dia seguinte olhei a feira-chic pela última vez. Você começava a dar os seus primeiros passos, certamente trôpegos e tímidos, caindo e sorrindo, para deleite dos seus pais, enquanto eu caía no mundo, sem tempo para tropeços, sem mais tempo para sonhar. Era apenas um garoto que amava os Beatles, Pink Floyd e os Rolling Stones debutando para a realidade.



FELIZ ANIVERSÁRIO !






segunda-feira, 8 de junho de 2009

Antonio Torres e a arte de ser um boa praça - Marta Barcelos


Marta Barcellos*

O jovem romancista Antônio Torres escrevia “Carta ao bispo” quando percebeu que precisaria da autorização de Vinícius de Morais para usar um poema dele no livro. “A hora íntima” (Quem pagará o enterro e as flores/Se eu me morrer de amores?) seria recitado por um personagem, se não houvesse restrições.


O ano era 1979, e Vinícius estava cercado de fãs no lançamento da revista masculina Status, com fotos de Fafá de Belém e texto do poetinha. Torres faz que ficou encabulado na hora de abordar o seu ídolo, e a platéia da Casa do Saber acredita, relevando se tratar do mesmo orador desenvolto e carismático à sua frente. O fato é que, nessa história, o escritor apresentou-se timidamente e surpreendeu-se com a receptividade de Vinícius.


“Que poema você quer citar no livro?”, indagou o poeta. Diante da resposta, exacerbou-se: “É o meu melhor poema! Claro que você pode publicar!” Torres ficou feliz da vida, pelo encontro festivo e pela revelação. Mas não demorou para descobrir, por Antônio Callado, que Vinícius sempre afirmava entusiasticamente ser “aquele” poema, escolhido por seu interlocutor, também o seu preferido.
Em outro “causo” contado mais adiante, para deleite dos alunos, Torres mostrou como pegou o jeito, e inverteu a situação, anos depois. Diante de um carrancudo João Cabral de Melo Neto, convicto de ser odiado pelos paulistas, apesar de todas as argumentações em contrário, Antônio Torres mudou de estratégia: “Os paulistas têm razão de odiá-lo”, afirmou. “Afinal, São Paulo não tem um ‘João Cabral de Melo Neto’.” E finalmente conquistou a simpatia do poeta. “Nunca tinha pensado nisso”, rendeu-se ele, num muxoxo.


Enquanto Torres falava, fiquei pensando em como artistas cheios de talento, como ele e Vinícius, que bem podiam cultivar o enorme ego típico da categoria, tornam-se autênticos boas-praças. Imagino que, com o tempo, eles desenvolvam o talento (de novo!) de falar o que amigos e conhecidos gostariam de ouvir.


Veja bem, eles não ‘precisam’ fazer isso. O boa-praça não é absolutamente um puxa-saco, até porque não precisa ser. Ele apenas descobriu a delícia de ser generoso com os outros, todos os outros, com o mundo, que, afinal, é sua matéria-prima. Despeja simplicidade, generosidade e “boa-pracice” por aí, e, em troca, realimenta o seu próprio bom-humor, ganha o dia, quem sabe a inspiração para um personagem ou uma perspectiva diferente sobre o poder avassalador da vaidade humana.
Ah, a vaidade.


Depois dessa aula, lembrei da outra oficina que fiz, com um escritor com o qual sou ainda mais familiarizada, para não dizer fã de carteirinha. Moacyr Scliar também se deixava levar pelas perguntas dos alunos/admiradores, sempre ávidos por “causos”, quando revelou como se inspirava para dar conta da fila de autógrafos nos lançamentos de seus livros, sem melindrar ninguém. “O segredo é exaltar as qualidades da pessoa que pede a dedicatória”, ensinou. Gelei.


Na véspera, eu tinha ficado toda prosa com seus elogios a uma crônica do blog, lida em voz alta. “Você tem alma de cronista”, chegou a dizer. Na saída, saquei da bolsa o volume de “O texto, ou: a vida – uma trajetória literária” e pedi seu autógrafo. Ele caprichou: “À Marta, uma homenagem ao seu talento literário”. Não preciso dizer que os elogios rasgados ficaram reverberando em meu quarto, noite adentro, dificultando o meu sono.


Sem dúvida, outro boa-praça, o fabuloso Scliar.



Marta Barcellos
http://blog.contextofinal.com.br

*Marta Barcellos é jornalista, trabalhou em redação por quase 20 anos e hoje consegue conciliar realização no trabalho com qualidade de vida. Nesta nova fase, já escreveu três livros encomendados por empresas. Presta serviços jornalísticos, por meio da Contexto Final, é colaboradora do jornal Valor Econômico e mantém colunas na revista Capital Aberto e no site Digestivo Cultural.