Começando a semana desopilando o fígado.
segunda-feira, 29 de novembro de 2010
domingo, 28 de novembro de 2010
Cineas Santos - Lobato, intolerância e burrice
Monteiro Lobato (1882- 1948) foi um brasileiro atípico, ou seja, alguém que, movido por incontido entusiasmo, acreditava no Brasil, apostava no Brasil e, consequentemente, sofria com e pelo Brasil. Evidentemente, não foi o único. Na galeria dos que padeceram dessa mesma “enfermidade”, figuram: Mauá, Delmiro Gouveia, Heitor Villa-Lobos e o nosso engenheiro Sampaio, para citar apenas os que me vêm à memória sem maior esforço. É escusado afirmar que o país, com sua vocação pachorrenta, convive mal com esse tipo de gente. Não por acaso, os netos de Macunaíma procriam e prosperam a olhos vistos.
Lobato sofria daquela “inquietação de espírito” de que falava o poeta Bandeira. Tinha a compulsão de fazer: pintava, escrevia, ilustrava, traduzia, editava, divulgava, procurava petróleo e ainda encontrava tempo para, nas páginas dos jornais, envolver-se em polêmicas notáveis em defesa de suas ideias. Tantas fez que acabou preso em 1940 ao denunciar o Escândalo do Petróleo no Brasil. Para os esbirros da ditadura Vargas, o autor de Urupês “conspirava contra os interesses do país”. Irreverente, o escritor tratou o episódio com fina ironia: “O tribunal de Segurança, achando que eu estava um tanto magro, houve por bem mandar-me internar num dos melhores hotéis de S. Paulo – o Detenção Hotel, na Av. Tiradentes”. Ao longo da vida, foi vítima de outras desinteligências: acusaram-no de ser agnóstico, comunista, e até de “deformador do caráter” das crianças brasileiras. Resistiu a tudo bravamente.
O que Lobato não poderia imaginar é que, 62 aos após sua morte, em plena normalidade democrática, um grupo de sábios que integram o Conselho Nacional de Educação (CNE) iria acusá-lo de um crime muito mais grave: racismo. Como se sabe, pela lei brasileira, trata-se de crime inafiançável e imprescritível. Os guardiões do “politicamente correto” encontraram no livro As Caçadas de Pedrinho (1933) nítidas manifestações de “racismo e perversidade” e recomendaram ao MEC a exclusão do livro da relação das obras a serem distribuídas nas escolas públicas brasileiras. Em defesa de Monteiro Lobato, levantaram-se muitas vozes, gente que aprendeu a gostar de ler na sua caudalosa e colorida obra destinada ao público infantil e infanto-juvenil.
Curiosamente, enquanto se acende uma polêmica inútil para questionar a obra do iniciador da literatura infantil em nosso país, uma jovem universitária paulistana, insatisfeita com o resultado das urnas, disparou no Twitter: “Nordestino não é gente. Faça um favor a São Paulo, mate um nordestino afogado”. Até onde se sabe, a cidadã não aprendeu isso na obra de Monteiro Lobato. Seguramente, nunca leu um livro dele. O que se vê, hoje, nas escolas brasileiras, com as exceções de praxe, é ignorância, intolerância e burrice. Consta que certa feita, Lima Barreto, que foi editado por Lobato, ao passar em frente a uma livraria onde beletristas discutiam o sexo dos anjos, ouviu o seguinte comentário: “Eis o Lima, bêbado como um gambá. A cachaça é a desgraça deste país”. Lima teria retrucado: “Não, meu camarada; é a burrice!”. Mais atual, impossível.
sexta-feira, 26 de novembro de 2010
Luís Pimentel - Maluco são os outros
O homem estava sentado no chão, no canto à esquerda da porta do bar. Outro homem estava sentado em uma cadeira, com encosto para as costas e braço lateral para apoiar a mão, no canto à direita. No centro do cenário, cotovelos no balcão, um terceiro homem bebia cerveja e fumava cigarros.
O homem sentado no chão estava muito sujo, barba e cabelos desgrenhados e cheios de fuligem. Fedia muito. Tinha moscas à sua volta, ou mosquitos. Mesmo assim, mantinha a mão estendida, pedindo dinheiro. Não pingava um tostão sequer na mão do infeliz. O homem que usava a cadeira anotava jogo do bicho, daí o encosto para as costas e o braço de madeira, para apoiar a mão enquanto escrevia os números que os apostadores ditavam. O homem que bebia e fumava só bebia e fumava, vez em quando balançando a cabeça afirmativamente, concordando com alguma coisa que o dono do bar dizia.
Lá pras tantas o homem que escrevia jogo do bicho olhou para o homem do balcão e para o comerciante. E disse:
– Vocês não acham que esse mendigo filho da puta está fedendo muito? E que isto espanta nossa freguesia?
– Eu acho – disse o homem que bebia e fumava.
E imediatamente puxou um revólver da cintura. Mirou bem e atirou no mendigo, matando-o na horinha. Depois pagou a conta e saiu, assoviando uma canção que ninguém ali conhecia.
Até hoje o apontador de jogo e o comerciante se perguntam, intrigados, quem era aquele maluco violento que um dia tomou cerveja e fumou cigarros no balcão do bar.
terça-feira, 23 de novembro de 2010
domingo, 21 de novembro de 2010
Antonio Torres - Representações do Cotidiano Escolar Em Textos Literários
Palestra do escritor Antonio Torres no Forum de Crítica Cultural, realizado pela UNEB - Universidade Estadual da Bahia - na cidade de Alagoinhas, novembro de 2010.
1.

Na evocação da personagem chamada Saudade, o professor pigarreia, para desembargar a sua emocionada voz, e pergunta para uma platéia imaginária:
- Quem poderá aprofundar melhor do que qualquer outra pessoa as singularidades poéticas que se enrodilham na essencialidade dos sentimentos humanos e suas expressões vocabulares, senão um poeta?
Um coro de meninos responde:
Ai que saudades que eu tenho
Da aurora da minha vida
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais
Quem nunca teve saudade da escola onde se aprendia a ler... lendo em voz alta, recitando e cantando, que atire a primeira pedra! Os tempos são outros, claro. E outras são as escolas e as poesias. Do tom nostálgico do romântico Casimiro de Abreu chega-se à consciência do mundo no modernismo de Lêdo Ivo, cuja obra poética está reunida numa edição da Topbooks* de mais de mil páginas. É dele um caso exemplar de representação do cotidiano escolar num texto literário, e que, ao mesmo tempo, comprova que para a modernidade o que importa é observar a singularidade na qual o sujeito se insere num tempo e espaço determinados, reinventando as coisas, as relações humanas, enquanto busca tratar os velhos sentimentos de uma forma nova. Já o romantismo valoriza a emoção, o individualismo, o sofrimento amoroso, o passado etc. Agora, passemos a palavra ao nosso contemporâneo Lêdo Ivo:
Primeira lição
Na escola primária
Ivo viu a uva
e aprendeu a ler.
Ao ficar rapaz
Ivo viu a Eva
e aprendeu a amar.
E sendo homem feito
Ivo viu o mundo
seus comes e bebes.
Um dia num muro
Ivo soletrou
a lição da plebe.
E aprendeu a ver.
Ivo viu a ave?
Ivo viu o ovo?
Na nova cartilha
Ivo viu a greve
Ivo viu o povo.
Neste poema, a memória do aprendizado das primeiras letras leva ao processo dialético do crescimento humano, da formação do cidadão (Um dia num muro/ Ivo soletrou/ a lição da plebe). Como se o poeta quisesse nos dizer que nunca é demais lembrar que tudo começa mesmo é na escola, onde Ivo viu a uva/ e aprendeu a ler.
2.
Essa escola, porém, demorou a entrar nas nossas vidas. O sertão onde nasci – por exemplo -, só passou a ter ensino público na década de 1940. Antes, ali havia apenas um abnegado e severo professor particular, com o qual se aprendia a assinar o nome e pronto. Ele se chamava Laudelino Mendonça, o “Pai Lau”, que hoje é nome de rua. Mas quando apareceu a professora Serafina, tudo mudou. Já no seu primeiro 7 de setembro no comando daquela escola, ela pôs os meninos em cima de um palanque para recitar Castro Alves (Auriverde pendão da minha terra, que a brisa do Brasil beija e balança, estandarte que a luz do sol encerra, as divinas promessas da esperança), Olavo Bilac (Criança, ama com fé e orgulho a terra em que nasceste!) e tantos mais. E o povo chorou. Era a chegada de um novo tempo. Agora os meninos dali iam aprender mais do que assinar os seus nomes.
Recuando a anos anteriores, chegaremos à escola do professor Padilha, no romance “São Bernardo”**, de Graciliano Ramos, cuja primeira edição é de 1937. Ela rende entrechos decisivos na história de Paulo Honório, um criminoso que, ao deixar a prisão, passa por cima de tudo e de todos, até se transformar num grande fazendeiro no estado de Alagoas, tornando-se “o emblema complexo e contraditório do capitalismo nascente, empreendedor, cruel, que não vacila diante dos meios e se apossa do que tem pela frente, dinâmico e transformador”, nas palavras de João Luiz Lafetá. Tanto que ele constrói a escola visando um bom negócio, que agradaria ao governador e, portanto, poderia lhe render alguma vantagem. Coincidentemente, ao tomar essa decisão, Paulo Honório ouve uma conversa “elogiando umas pernas e uns peitos”. Pergunta: “De quem são as pernas?” Então fica sabendo que são de Madalena, uma professora, bonita, loura, que está entre os vinte e os trinta anos. A partir desse momento Paulo Honório começa a pensar em se casar
Páginas adiante, ele conhecerá dona Glória, tia de Madalena, que lhe diz sentir pena da sobrinha “encafuar-se num buraco”, pois havia feito um curso brilhante.
- Faz pena – concorda Paulo Honório. E acrescenta: - Isso de ensinar bê-a-bá é tolice. Perdoe a indiscrição, quanto ganha sua sobrinha ensinando bê-a-bá?
Dona Glória baixou a voz para confessar que as professoras de primeira entrância tinham apenas cento e oitenta mil-réis.
- Quanto?
- Cento e oitenta mil-réis.
Ele se espanta e diz que “faz até raiva ver uma pessoa de certa ordem sujeitar-se a semelhante miséria”, e se gaba de ter empregados que nunca estudaram e são mais bem pagos. E pergunta por que dona Glória não aconselha a sobrinha a procurar outra profissão. E pior: recomenda um meio de as duas, tia e sobrinha, ganhar dinheiro a rodo: criando galinhas.
O duro realismo desse diálogo nos faz lembrar que quem o escreveu tinha conhecimento de causa. Como sabemos, Graciliano Ramos foi presidente da Junta Escolar de Palmeira dos Índios, em 1927, na qual se elegeria prefeito, em 1928, e onde, em 1932, fundou uma escola na sacristia da Igreja Matriz. E para completar, ele foi nomeado Inspetor Federal do Ensino Secundário, em 1939, ou seja, já depois da publicação do “São Bernardo”. Quanto à sua criatura, estava mesmo era fazendo rodeios para chegar à Madalena, secretamente desejando tê-la como moradora da sua fazenda, não como professora, mas como esposa. E assim Madalena entra para a história como uma personagem nuclear de um drama rural brasileiro de alguma maneira comparável ao da Desdêmona de “Othelo”, a célebre peça teatral de William Shakespeare.
A diferença de sensibilidades, para não dizer de estatura intelectual, moral e etc, levaria Paulo Honório e Madalena a atritos que culminariam num desfecho trágico. E a escola sempre entrava no rol das desinteligências do casal, conforme podemos ler no capítulo 21 de “São Bernardo”:
“Foi à escola, criticou o método de ensino do Padilha e entrou a amolar-me reclamando um globo, mapas, outros arreios [...] Quando a fatura chegou, tremi. Um buraco: seis contos de reis. Seis contos de folhetos, cartões e pedacinhos de tábuas para os filhos dos trabalhadores. Calculem. Uma dinheirama tão grande gasta por um homem que aprendeu leituras na cadeia, em carta de ABC, em almanaques, numa bíblia da capa preta. Mas contive-me. Contive-me porque tinha feito tenção de evitar dissidências com minha mulher e porque imaginei mostrar aquelas complicações ao governador quando ele aparecesse aqui. Em todo caso, era despesa supérflua.”
Quer dizer, Paulo Honório não achava os custos do material escolar um investimento, mas despesa. E supérflua. Qualquer semelhança com pessoas do Brasil de hoje não será mera coincidência.
3.
Agora passemos à escola de Jorge Amado:
“Para o menino grapiúna*** – arrancado da liberdade das ruas e do campo, das plantações e dos animais, dos coqueirais e dos povoados recém-surgidos – o internato no colégio dos jesuítas foi o encarceramento, a tentativa de domá-lo, de reduzi-lo, de obrigá-lo a pensar pela cabeça dos outros”.
E nos estreitos limites do internato, ele seria salvo pela lembrança do mar de Ilhéus, da praia do Pontal, das marés mansas e das tempestades, enquanto um padre chamado Luiz Gonzaga Cabral – que substituíra o professor de português -, declamava para os alunos episódios de “Os Lusíadas”, em vez de sacrificá-los com análises gramaticais, tentando descobrir o sujeito oculto e dividir as orações da epopéia lusitana.
“O primeiro dever passado pelo novo professor de português foi uma descrição tendo o mar como tema. A classe se inspirou, toda ela, nos encapelados mares de Camões, aqueles nunca dantes navegados [...] Prisioneiro no internato, eu vivia na saudade das praias do Pontal onde conhecera a liberdade e o sonho. O mar de Ilhéus foi o tema da minha descrição”.
Como o padre levara os deveres para corrigir em sua cela, na aula seguinte ele anunciou a existência de uma autêntica vocação de escritor naquela sala de aula. E pediu que os alunos escutassem com atenção o dever que ele ia ler, afirmando que o autor daquela página (que acabara de fazer 11 anos) seria no futuro um escritor conhecido.
“Passei a ser uma personalidade, segundo os cânones do colégio, ao lado dos futebolistas, dos campeões de matemática e de religião, dos que obtinham medalhas. Fui admitido numa espécie de Círculo Literário onde brilhavam alunos mais velhos. [...] O padre Cabral tomou-me sob sua proteção e colocou em minhas mãos livros de sua estante. Primeiro ‘As viagens de Gulliver’, depois, clássicos portugueses, traduções de ficcionistas ingleses e franceses. Data dessa época minha paixão por Charles Dickens [...] Recordo com carinho a figura do jesuíta português erudito e amável... sobretudo por me haver dado o amor aos livros, por me haver revelado o amor da criação literária, que me ajudou a suportar aqueles dois anos de internato, a fazer mais leve a minha prisão, minha primeira prisão.”
4.
As memórias de Jorge Amado nos pedem um rápido retorno à escola de Graciliano Ramos, não a que ele “construiu” em “São Bernardo”, mas a rememorada numa crônica intitulada “O Barão de Macaúbas”, do seu livro “Infância”****:
“Foi por esse tempo que me infligiram Camões, no manuscrito. Sim senhor: Camões, em medonhos caracteres borrados – e manuscritos. Aos sete anos, no interior do Nordeste, ignorante da minha língua, fui compelido a adivinhar, em língua estranha, as filhas de Mondego, a linda Inês, as armas e os barões assinalados. [...] Deus me perdoe. Abominei Camões...”
Rubem Braga também nos legou uma memorável representação do cotidiano escolar. Em sua crônica “Aula de inglês”*****, com toques amenos que chegam a lembrar os de Machado de Assis, ele dá uma verdadeira aula... de como escrever com sagacidade e leveza. Começa com uma professora a mostrar um objeto para o aluno, perguntando: - Is this an elephant? Como o aluno demora na análise do objeto, a professora fica apreensiva. Mas quando afinal responde, negativamente, e com convicção, ela suspira, satisfeita. A aula prossegue como um teste de conhecimento vocabular na língua inglesa, marcado pelo suspense no silêncio entre pergunta e resposta. Ao final, a professora festeja a vitória do aluno tão efusivamente que o deixa perturbado, sentindo, ao mesmo tempo, vergonha e orgulho.
“Retirei-me imensamente satisfeito daquela primeira aula; andei na rua com passo firme e ao ver, na vitrine de uma loja, alguns belos cachimbos ingleses, tive mesmo a tentação de comprar um. Certamente teria entabulado uma longa conversação com o embaixador britânico, se o encontrasse naquele momento. Eu tiraria o cachimbo da boca e lhe diria:
- It’s not an ash-tray!”
5.
O estojo escolar de Cony
Está no livro “Crônicas para ler na escola”, de Carlos Heitor Cony, publicado pela Editora Objetiva, com apresentação da professora Marisa Lajolo. E vai aqui na íntegra, com autorização do autor:
Noite dessas, ciscando num desses canais a cabo, vi uns caras oferecendo maravilhas eletrônicas. Bastava telefonar, e eu receberia um notebook capaz de me ajudar a fabricar um navio, uma usina nuclear, uma estação espacial.
Minhas necessidades são mais modestas: tenho um PC mastodôntico, contemporâneo das cavernas da informática. E um notebook da mesma época que começa a me deixar na mão. Como pretendo viajar esses dias, habilitei-me a comprar aquilo que os caras anunciavam como o top do top em matéria de computador portátil.
No sábado, recebi um embrulho complicado que necessitava de um manual de instruções para ser aberto. Depois de mil operações sofisticadas para minhas limitações, retirei das entranhas de isopor o novo notebook e coloquei-o em cima da mesa. De repente, como vem acontecendo nos últimos tempos, houve um corte na memória. Tinha 5 anos e ia para o jardim de infância. E vi diante de mim o meu primeiro estojo escolar.
Era uma caixinha comprida, envernizada, com uma tampa que corria nas bordas do corpo principal. Dentro, arrumadas em divisões, havia lápis coloridos, um apontador, uma lapiseira cromada, uma régua de vinte centímetros e uma borracha para apagar meus erros.
Da caixinha vinha um cheiro gostoso, cheiro que nunca esqueci e que me tonteava de prazer. Fechei o estojo para proteger aquele cheiro, que ele ficasse ali para sempre, prometi-me economizá-lo. Com avareza, só o cheirava em momentos especiais.
Na tampa que protegia estojo e cheiro, havia estampado um ramo de rosas vermelhas que se destacavam do fundo creme. Amei aquele ramalhete – olhava aquelas rosas e achava que nada no mundo podia ser mais bonito.
O notebook que agora abro é negro, não tem nenhuma rosa na tampa. E em matéria de cheiro, é abominável. Cheira a telefone celular, a cabine de avião, ao aparelho de ultrassonografia onde outro dia uma moça veio ver como sou por dentro.
Piorei de estojo e de vida.
6.
Duas representações teatrais inesquecíveis
A primeira: “Apareceu a Margarida”, de Roberto Athayde. Escrita quando o autor tinha apenas 22 anos, esta peça fez um extraordinário sucesso no Brasil na década de 1970, e foi encenada em mais de 30 países. Trata-se de um monólogo em que a metáfora do poder se encarna em Dona Margarida, professora primária que diz ser uma segunda mãe para os alunos, e só querer o bem deles, mas que usa métodos autoritários, ilógicos, neuróticos e violentos. À medida que a aula avança, os alunos-espectadores se vêm dominados pelo terror, entre o espanto e situações cômicas. Esta peça marcou profundamente a carreira teatral de Marília Pêra, que nela, segundo a crítica da época, revelou qualidades de atleta, acrobata, palhaço, mulher atraentíssima, monstro, e atriz completa, que coloriu o longo discurso da professora Margarida com surpreendentes mudanças de tom, tempo e intenção.
Segunda: “A aurora da minha vida”, de Naum Alves de Souza. Ano: 1981.
O título foi, obviamente, inspirado em “Meus oito anos”, de Casimiro de Abreu. Trata-se de um texto teatral que nasce das recordações de um senhor sobre a sua infância, ao visitar a sua velha escola, quando revive o seu passado escolar. Articulada em quadros independentes, nos quais decorre um longo período de tempo, a peça oferece a cada integrante da classe de aulas o aprofundamento de suas relações consigo mesmo e com o mundo.
São oito personagens/alunos que se alternam com alguns professores, envolvendo um retrospecto às vezes nostálgico, às vezes cômico ou crítico, quando associa as deformações provocadas pelo regime militar ao ambiente das escolas.
Pela sua alta comunicabilidade, “A aurora da minha vida” foi um dos maiores sucessos teatrais da década de 1980, “despertando no espectador a lembrança de fatos muito vistos e vividos, e acumulando impressões, conclusões, associações de idéias que remetem à ternura das coisas familiares”, de acordo com a revista “IstoÉ” de 6 de julho de 1981. Arquétipos, os personagens revelam tipos comuns nas salas de aula de todos os tempos, e os condicionamentos que justificam as suas condutas. E as platéias, que vivem em outros padrões, mesmo se comovendo ao relembrar vivências passadas, não deixam de confrontar, criticamente, o mundo velho com o novo.
E assim concluímos: nem todas as representações da escola risonha e franca são só nostálgicas. Há também as que se manifestam risonhas e críticas.
***********
*Ivo, Lêdo. Poesia completa. RJ: Editora Topbooks/ Braskem, 2004.
**Ramos, Graciliano. São Bernardo: RJ, Editora Record. 1985, 44ª. ed.
***Amado, Jorge. O menino grapiúna: RJ, Editora Record. 2004, 22ª. ed.
****Ramos, Graciliano. Infância. RJ: Editora Record, S/d.
*****Braga, Rubem. 200 crônicas escolhidas: RJ, 2004, 22ª. edição.
sexta-feira, 19 de novembro de 2010
O Candidato Adão
Que graça tinha o Paraíso afinal? Viver assim, sem ouvir a Voz do Brasil, sem assistir a “As Pegadinhas do Faustão” ou ver a Mulher Melancia pelada na Playboy, tinha graça?
Adão, apesar da beleza sensual de Eva, vivia triste e angustiado, em graves crises existenciais, em múltiplos conflitos interiores, questionando o ser ou não ser filho da macaca e, por isso, vivia azucrinando o juízo do seu psicanalista. Sentia um imenso vazio por não ter uma sogra e, mais ainda, Deus lhe dera uma mulher em vez de uma caixa de cerveja.
O Todo-Poderoso, cansado da anarquia reinante em seus domínios, convocou eleição direta para eleger os constituintes que iriam fazer a primeira Constituição do Paraíso, um código de conduta para a macacada, leãozada, toda bicharada e os seus dois rebentos feitos à sua imagem e semelhança. Era hora de botar ordem na casa: elegeria também um Presidente ao qual todos se reportariam e deveriam obediência.
Adão se candidatou a Presidente. Aconselhado pelos marqueteiros, andou de jegue, comeu buchada de bode e desfilou vestindo camisa do Corinthians. Eva candidatou-se à Constituinte, contrariando o Todo-Poderoso, que achava a sua segunda criação humana um tanto feminista, de idéias independentes e subversivas. Fatalmente poria o Paraíso em Suprema Revolução.
Nos comícios, Adão descobriu que tinha talento para a política e esperava contar, também, com o fator sorte. Nem só de talento sobrevive o político; mais do que tudo, precisa de uma sorte madrinha.
Prometeu mundos e fundos, prometeu o Paraíso, defendeu o parlamentarismo, reforma agrária, distribuição de renda e total proteção aos descamisados. Em várias ocasiões apareceu abraçado ao Frei Damião e, para gáudio da macacada, seu último comício fora animado pela banda Chiclete com Banana.
Porém, como diz o ditado, “de urna eleitoral, cabeça de juiz e de técnico da seleção brasileira ninguém sabe o que é que vem’, Adão foi fragorosamente derrotado, apesar de ser o único eleitor votante. Eva não votava. Naquele tempo lugar de mulher era na cozinha.
- Houve fraude! – murmurou revoltado o primogênito de Deus – Bem que me disseram para não confiar nessas urnas eletrônicas brasileiras!
Com dívidas de campanha acumuladas até o pescoço, devendo a Deus e ao mundo, com os empresários e diretores de bancos estaduais em seu encalço, ele não via outra saída senão o suicídio. Eva, que também não fora eleita constituinte, se sentia aliviada por não ter que presidir as ações sociais do Governo como a Primeira-Dama do Paraíso. Vendo a angústia e o abatimento do marido, sentiu uma imensa pena fluir sob seus seios ainda virgens. Deitou-o em seu colo, alisou a sua cabeleira e o induziu a procurar Deus e exigir uns três ministérios, sob ameaça de instituir um governo paralelo.
Mais tarde, tarde da noite, em uma reunião secreta com os seus candidatos a ministros, Adão comeu uma maçã oferecida pela serpente. Comeu duas. Comeu três. Bebeu vinho do Porto e tomou duas talagadas de Conhaque de Alcatrão de São João da Barra. Bêbado, matou a cobra e mostrou o pau a Eva. Ela, dengosa, melosa, derretida, no cio, arfando no peito um grito incontido de “É hoje! É hoje!”, se aproximou naquele estado em que, se paredes houvesse, diria: “Tô subindo pelas paredes!” e Adão, metido a gostoso, precavido, quando Eva tocou seu corpo com suas mãos delicadas, saiu de banda e exigiu:
- Só se for de camisinha, meu bem!
A macacada, que a tudo assistia em silêncio escondida entre a folhagem, ensaiou um coro estrondoso que retumbou Paraíso adentro:
- Bicha! Bicha! Bicha!
Eva, depois de muitas considerações a respeito, decidiu partir para o adultério com um gorila assanhado que vivia rondando o seu terreiro, dizendo-lhe gracinhas e chamando-lhe de gostosa. Na primeira vez fez “tchan!” “Quem não tem Adão caça com macaco!”, se justificou. Na segunda fez “tchan-tchan!” “Quem não tem tu, vai tu mesmo!”, disse. Na terceira vez... bem, na terceira vez a Johnson & Johnson havia inventado a camisinha e Eva pegou Adão e... “tchan-tchan-tchan-tchan!...”
Moral da história: Se é que gorila é macaco, então não há o que se discutir sobre a origem do homem.
quarta-feira, 17 de novembro de 2010
Cineas Santos - Reinações de um violeiro
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De Pedro Costa e Luís Carlos |
Seu Liberato era um sertanejo atípico: não caçava, não pescava, não maltratava animais e tinha pavor a queimadas. Tratava a terra como fêmea por sabê-la grávida de vidas. Era exato e preciso como a palavra não. Avesso a manifestações ruidosas, nunca o vi colérico ou eufórico. Sua vida era balizada pelas chuvas e suas aspirações não excediam os limites de sua gleba. Sabia ler os sinais da chuva na agitação das formigas, na floração dos mandacarus, na posição do ninho do João-bobo. Um homem que cabia em si, perfeitamente integrado ao seu chão. Não fazia versos, não tocava viola, não cantava chulas nem loas. Se bem me lembro, conhecia apenas uma cantiga: “O cabelo de meu bem tem areia/tem areia, tem areia, vou tirar/cabelo de meu bem tem areia/tem areia, só tiro se ela mandar”. Era temente a Deus, mas avesso cultos de qualquer natureza. Certa feita, quando o convidaram para uma quermesse, sentenciou: “Homem que segura pau de andor ou carrega viola não sustenta a família”.
Homem de rasas sabenças, seu Liberato não viveu o bastante para perceber o quanto estava enganado. Hoje, religião é o mais rentável dos negócios e os violeiros deixaram os terreiros e as latadas e conquistaram a ribalta. É certo que ainda existem os que gaguejam versos estropiados nas feiras dos sertões, mas os mais ladinos são tratados como estrelas. Entre nós, por exemplo, existe um certo Pedro Costa que, segundo o mestre Paulo Nunes, se não houver tropeços, chegará ao Vaticano. Natural de Alto Longá, Pedro descobriu, muito cedo, que puxar cobra para os pés no rabo de uma enxada não tinha futuro. Trocou a enxada pela viola e rumou pra capital. Dublê de cantador, poeta, ator e empresário, Pedro Costa criou a Fundação Nordestina do Cordel (FUNCOR), passou a editar a revista “De repente” e folhetos à mancheia. Autor de mais de 300 folhetos sobre temas diversos, professor de cordel nas escolas de Teresina, Pedro acaba de marcar mais um tento: construiu a sede da FUNCOR, no Parque Itararé, com sala para projeção de filmes, biblioteca aberta ao público e estúdio de gravação.
Enquanto alguns companheiros de ofício queixam-se, pedem ou esperam uma “ajudinha” do poder público, Pedro Costa, com a gana de um sem-terra, trabalha, avança, abre novos espaços e confirma a máxima dos empreendedores: “só se estabelece quem tem competência”. Tem razão o poeta medíocre quando canta: “Pedro Costa, com esse jeito/ de arigó e matuto/ é uma réplica do João Grilo/esperto, ladino, astuto/ só aposta pra ganhar/ conhece os paus que dão fruto”.
Longa vida ao Pedro, um cidadão que, com talento e trabalho, honra e dignifica a cultura popular do Piauí.
segunda-feira, 15 de novembro de 2010
Antonio Torres - Lisboa rima com Pessoa
"Sobre sete colinas, que são outros tantos pontos de observação de onde se podem disfrutar magníficos panoramas, espalha-se a vasta, irregular e multicolorida massa de casas que constitui Lisboa”. É assim que Fernando Pessoa começa o guia da cidade que ele chamava de seu lar, e onde se sentia fincado no chão, “senão como uma raiz pelo menos como um poste”. Intitulado O que o turista deve ver, esse guia permaneceu desconhecido durante décadas, até ser encontrado, em 1987, dentro de uma arca com mais de 27 mil documentos pessoanos, que estavam sendo pesquisados em função das comemorações do centenário do poeta, no ano seguinte. O achado foi “um grande e inesperado prazer”, escreveu a professora Teresa Rita Lopes no prefácio ao guia, afinal publicado em 1992, e que, ela esclarece, não é curiosidade avulsa, mera resposta a uma ocasional solicitação, pois fazia parte de um vasto plano de Pessoa. Por volta de 1919, ele decidira escrever, com fervor patriótico, contra o que classificava de “descategorização europeia” e “descategorização civilizacional” - de Portugal, pois, pois.
Portanto, vejamos a velha cidade, cheia de encanto e beleza, através do olhar amoroso de quem se dizia “transeunte de corpo e alma destas ruas baixas que vão dar no Tejo”. Mas antes de seguirmos seus passos de flâneur pela Baixa, a planície na qual desemboca a Avenida da Liberdade, e se assenta o centro de Lisboa, com seus históricos logradouros (Restauradores, Rossio, Chiado, as ruas Augusta, do Ouro e da Prata, do Carmo, Garrett, a Praça do Comércio), parando aqui e ali para ver o tempo passar às mesas de cafés lendários como os do Cais do Sodré, o Nicola, A Brasileira, o Martinho da Arcada (onde Pessoa fazia ponto); ou de nos aventurarmos pelo clássico roteiro que inclui o Padrão dos Descobrimentos, Castelo de São Jorge, passando pela Catedral, de construção parcialmente românica, e subindo a Rua da Saudade, onde morou outro grande poeta pós-Pessoa, chamado Alexandre O’Neill, sem esquecermos o Mosteiro dos Jerônimos, o Museu de Arte Antiga, e os de Artes Decorativas, Arqueologia e de Etnografia, da Marinha, dos coches, da Fundação Gulbenkian, das casas antigas, parte delas decoradas de azulejos - pois antes de tudo isso façamos um breve passeio pela já longa história da cidade.
No princípio Lisboa era de origem fenícia. Chamava-se Olissipo, e desenvolveu-se graças à atividade comercial. Ocupada pelos mouros em 716 d.C, foi reconquistada em 1147. Tornou-se capital de Portugal no século XIII. Viveu seu apogeu a partir da era das grandes navegações, na virada do século XV para o XVI, e que resultaram em descobertas de terras e gentes em praticamente todos os continentes, quando a língua portuguesa se firmou como veículo de expressão de um novo reino, a se espraiar por mares nunca dantes navegados na voz de intrépidos marinheiros, que atingiram o Cabo Bojador em 1434, chegaram à foz do Congo em 1483, dobraram o Cabo da Boa Esperança em 1487, e descobriram o Brasil em 1500. As aventuras marítimas portuguesas tiveram o seu coroamento com a publicação, em 1575, do monumental Os Lusíadas, de Luís de Camões, tendo sido ele próprio um herói da epopéia que escreveu - como soldado em Ceuta e pelos quinze anos de guerras na Índia.
Mas, enquanto o mundo girava e a Lusitana rodava, colhendo os louros de suas conquistas, Lisboa era parcialmente destruída no devastador terremoto de 1755. Reconstruída e embelezada pelo Marquês de Pombal, viria, num preito de gratidão, a dar-lhe o nome a uma das suas praças mais importantes, surgida naquela reconstrução.
Na virada da História, em tempos modernos, Lisboa iria se postar à beira do cais, com um olhar esfíngico e fatal, a fitar o futuro do passado, como se esperasse avistar os navios que desapareceram na fronteira da nostalgia, ou divisar através da cerração um vulto baço, que volta. Ícone do Modernismo lisboeta, Fernando Pessoa fez-se por vezes o intérprete dos sentimentos passadistas lusitanos, a evocar suas lendas heróicas, em poemas de louvor a navegantes e conquistadores como Vasco da Gama e Dom Sebastião, o rei desaparecido em África na batalha de Alcácer-Quibir, em 1578. O rei falhado, que deixou um império na saudade, tornou-se o símbolo de um passado que não volta, por mais desejado que seja o seu retorno. Foram-se as navegações, ficaram as recordações: “Ó mar salgado, quanto do teu sal/ São lágrimas de Portugal! Por te cruzarmos, quantas mães choraram, / Quantos filhos em vão rezaram! / Quantas noivas ficaram sem casar/ Para que fosses nosso, ó mar!”).
Na hora de mostrar a cidade aos turistas, o seu tom é outro: “Para o viajante que chega por mar, Lisboa, vista assim de longe, ergue-se como uma bela visão de sonho, sobressaindo contra o azul vivo do céu, que o sol anima. E as cúpulas, os monumentos, o velho castelo elevam-se acima da massa das casas, como arautos distantes deste delicioso lugar, desta abençoada região”.
Chegando de navio – continua ele -, o espanto do turista começa na entrada da barra. Depois de passar o farol do Bugio, na embocadura do rio Tejo, lhe aparece a Torre de Belém, “como exemplar magnífico da arquitetura militar do século XVI, em estilo romano-gótico-mourisco”.
Hoje, o poeta teria que recorrer aos seus célebres heterônimos para recepcionar os turistas que chegam de avião, de trem e de carro. Aliás, as auto-estradas do país dão a impressão de terem sido construídas para produções hollyhoodianas, em tempos de categorização européia geral, ó pá!
E mesmo que essa categorização civilizacional o fizesse, agora, se sentir um fantasma a errar em salas de recordações, com certeza ele haveria de se rejubilar, ao ler estas palavras da professora Teresa Rita Lopes: “Talvez só hoje Lisboa se tenha tornado o lar de Pessoa. De tal forma que é impossível percorrer certos sítios, certas ruas, sem sentir ao nosso lado os seus passos esvoaçantes”.
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