Por volta de meio-dia de ontem passava eu em frente à Secretaria de Educação do Estado e, na calçada do estacionamento, duas senhoras esperavam alguém. Ao me aproximar das duas, vi um crachá pendurado no pescoço identificando o município de origem. Certamente eram professoras que participavam dalgum evento na Secretaria, pensei. Parei e puxei conversa:
– Com licença, moças... Vocês são de Tanque d’Arca?
– Somos – responderam olhando para o crachá, como a indagar: não sabe ler não?
– Você também é de lá? – perguntou uma delas que não sei identificar aqui qual das duas. Nem seus nomes perguntei. Como vivente do interior que fui, sei que o povo desses lugares é tímido e muito desconfiado, principalmente as mulheres.
– Não. É que tenho um amigo que é de lá e estou planejando levar um povo, também amigo dele, pra conhecer a cidade e gostaria de saber alguns detalhes do itinerário. O nome do conterrâneo de vocês que conheço é Audálio Dantas. Vocês já ouviram falar dele, né?
As duas perscrutaram a memória e a mais velha respondeu:
– Audálio, Audálio, Audálio... Nunca ouvi falar.
– Ele é jornalista, escritor, e nos tempos de chumbo enfrentou as baionetas com o brado do sindicato dos jornalistas.
– E ele mora em Tanque d’Arca?
– Não. Desde os anos sessenta que ele mora em São Paulo.
– Conhecemos não. – reafirmou a mais nova – Pra falar a verdade não conheço ninguém com esse sobrenome, muito menos com esse nome.
Infelizmente há um descaso injustificável da administração pública dos municípios interioranos no tocante às personalidades da terra que honram ou honraram o seu povo. Alguns políticos parecem temer que o brilho de alguns ofusque suas realizações.
Perto de Tanque d’Arca, Palmeira dos Índios e Quebrangulo, o Mestre Graça é um famoso desconhecido da população. Em Quebrangulo poucos são os que conhecem e a metade desse pouco chegou a ler algum livro do conterrâneo famoso. Já em Palmeira dos Índios somente agora, com a chegada da escola técnica federal, é que se começa a se discutir a importância de Graciliano para o lugar.
Em Feira de Santana, às portas da capital baiana, o grande poeta Eurico Boaventura viveu e morreu no anonimato e foi preciso a UEFS resgatar a sua história e o colocar no pedestal dos grandes intelectuais baianos, dois anos atrás, no advento do seu centenário. Até então ele não passava de um ilustre desconhecido.
Porto Calvo, Norte de Alagoas, palco histórico da guerra contra os holandeses e tão cantado em versos e prosas da dramaturgia brasileira, tem um personagem emblemático na discussão acadêmica do patriotismo, porém é de total desconhecimento da população local. Duas amigas retornavam de Recife e, ao passarem pela cidade, uma se lembrou de certo episódio dessa guerra:
– Não foi aqui que Calabar foi enforcado?
– Foi.
– Vamos visitar o local? Talvez haja algum memorial ou museu.
Na praça, pararam próximo a uns senhores que pareciam matar o tempo jogando conversa fora.
– Por favor, senhores, alguém pode nos dizer onde é que fica o local em que Calabar foi enforcado?
Os nativos fizeram uma cara de surpresa. Entreolharam-se e o que parecia mais esperto dirigiu-se ao carro onde as duas permaneciam:
– Moça, a senhora tem certeza de que esse Calabar foi enforcado aqui?! Não estamos sabendo de nenhum enforcamento não. Que dia foi? Foi esta semana?
Para honra e glória do Brasil, há exceções nesse desconhecimento coletivo interiorano. Poucas, mas há. O arraial do Junco é uma delas. Segundo o último Censo do IBGE, o município tem uma população que passa dos dezoito mil habitantes, porém a população itinerante, os nômades do lugar, ultrapassa, com folga, os vinte mil. Como os que saem adquirem uma visão diferenciada, terminam influenciando os que ficam. É por isso que o escritor Antonio Torres é conhecido nos quatro cantos de sua terra e um grande movimento cultural fervilha em torno do seu nome. Não há uma só pessoa que não diga sentir orgulho de Totinha de Irineu, nome de infância que carrega até hoje junto aos mais velhos. Ao completar 70 anos, em 2010, o escritor foi homenageado pelo prefeito, pela Câmara de Vereadores, e por alunos e professores da rede pública, além de outros alunos e professores das cidades circunvizinhas que compareceram à festa. A visita dos alunos à biblioteca pública, cujo patrono é Antonio Torres, é obrigatória, como também é obrigatório se conhecer a biografia e a obra do autor.
Mas voltemos ao episódio de ontem, pois Tanque d’Arca é logo ali, a 95 Km da capital, segundo me informaram as tanquenses. Talvez um dia faça parte da Região Metropolitana de Maceió. Com pouco mais de 6 mil habitantes, deve ser duro para o administrador municipal e operadores da Cultura local propagar no município o nome daqueles que levam a cidade a ser conhecida além de suas fronteiras. Essa omissão, maliciosa ou não, cria a falsa ilusão na gente comum ao discernir entre heróis e espertalhões.
Ao longo da conversa fiquei sabendo que as duas senhoras participavam de um evento ligado à segurança alimentar. Podiam ser merendeiras, nutricionistas, integrantes do conselho escolar ou simplesmente secretárias dalguma coisa ou ser tudo ao mesmo tempo.
– No jornal Gazeta de Alagoas de ontem saiu uma matéria falando de Tanque d’Arca e do Audálio. – comentei a título de deixá-las orgulhosas. E deixei.
– Sério?! – perguntou a mais velha, que parecia ser alguém importante na cidade, talvez a primeira-dama ou alguém muito ligada a ela. Em algumas cidades o topo da pirâmide social é assim: em cima, a mulher do prefeito; embaixo, o prefeito e o delegado; mais embaixo, o motorista de ônibus, o cobrador e o padre.
– Então esse Audálio é importante mesmo. Vou ver se encontro esse jornal. – concluiu a mais nova.
– Se não achar, procurem no Google o blog Onde Canta a Acauã que também foi publicado lá.
– Ah! Tá certo! Mas me diga uma coisa: você conhece o nosso prefeito?
– Não.
– Mas como não?! Você conhece esse Audálio que ninguém conhece e não conhece nosso prefeito que é o melhor prefeito do mundo?! Isso é um absurdo!
Diante de tão sincera indignação, recolhi-me à minha insignificância, peguei meu boné e pedi licença pra me retirar. Realmente: como eu poderia conhecer o Audálio Dantas e não conhecer o prefeito da cidade, o melhor do mundo? Simplesmente um grande ato falho, um absurdo dos absurdos.
Antes de dobrar a esquina olhei para trás e tive a certeza de haver tirado duas pessoas das trevas medievais.
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