quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

CARTA ABERTA A UM VELHO RANZINZA


Por Cineas Santos


Prezado Noel:

É escusado dizer o quanto me custou antepor o adjetivo prezado ao seu nome. Como é do seu conhecimento, eu não o prezo,e a recíproca deve ser verdadeira. Quanto à carta aberta, não tome o meu gesto como indiscrição ou exibicionismo. Quis tão-somente poupá-lo do trabalho ingente de localizá-la em meio à avalanche de cartas que, nesta época do ano, ameaça soterrá-lo. Nada além.

Mas vamos ao que (me)interessa: a primeira vez que ouvi falar do seu nome, eu ainda morava nos cafundós do Caracol. Como qualquer moleque do meu tope, campeava nuvens, conversava com o vento e não me ardia o desespero de ser dono de nada, como diria o poeta Dobal. Eis que, numa manhã qualquer de dezembro, minha mãe, que acabara de chegar da cidade, me entregou um balãozinho vermelho, desses que os moleques de hoje se comprazem em estourar com pés nas festinhas de aniversário. Limitou-se a dizer: “Foi o Papai Noel que mandou”.Ressabiado, mas curioso, aceitei o presente e tratei de inflá-lo para atiçar a inveja dos companheiros de traquinagens. Tamanho foi o meu entusiasmo que o balãozinho, depois de um pluft, desfez-se em tirinhas de borracha sem qualquer serventia. Creio ter sido aquela a minha primeira decepção. Chorei tudo o que tinha direito e prometi a mim mesmo que jamais voltaria a chorar por algo perdido ou não conquistado. Assim tem sido. Jurei também odiá-lo para todo o sempre.

Mais tarde, já em São Raimundo Nonato, na véspera do Natal, encontrei, num canteiro mal cuidado, uma pequena imagem de Nossa Senhora de Fátima. Coberta de poeira, abandonada e triste, parecia ter sido jogada ali por alguém que perdera a fé. Encarei o fato como uma mensagem sua: uma tentativa de reconciliação. Prontamente, aceitei-a. Limpei a imagem da fralda da camisa e voltei correndo para casa. Dona Purcina, precisa como um tiro de lazarina, não se comoveu com a minha versão. ”Quem acha o que não perdeu não é o dono”, limitou-se a dizer e me obrigou a devolver a imagem ao canteiro onde a encontrei. Não podendo odiar minha mãe por razões de ordem prática : medo de taca, descarreguei todo o meu ódio em você. Jurei que, um dia, ainda lhe arrancaria todos os fios da barba com um alicate enferrujado.

Na adolescência, perdidamente apaixonado por uma fulaninha, passei-lhe uma cantada em regra (sou do tempo em que se cantava mulher). Com ensaiada timidez, ela me prometeu a resposta para a noite de Natal. Estávamos em outubro. Foram dois meses de expectativas, sonhos, pesadelos, febres, poluções noturnas e outras coisinhas impublicáveis. Na noite aprazada, coração aos pulos, fui procurá-la. Sem se despedir, a moça deixara a cidade com a família. Chorei, chorei, “até ficar com dó de mim”, como naquela canção do Chico. Jurei que jamais voltaria a chorar por mulher alguma, jura que não cumpri...

Cresci, envelheci, e muitos natais se passaram sem que nada de extraordinário acontecesse. Para ser franco, meu ódio arrefeceu. Cheguei mesmo a ignorá-lo. Como diria um amigo cruel: “Papai Noel é só um velho senil, acompanhado de veados, que se presta ao papel de camelô de ilusões a serviço do capitalismo selvagem”...

Eis que, na semana passada, um autodoor de uma fábrica de sapatos mexeu comigo. Nele, vê-se uma perna linda, fornida, generosa, enrolada com fitas coloridas, pronta para ser comida (com os olhos), permita-me a liberdade de expressão. Foi aí que me ocorreu a ideia de lhe fazer uma proposta. Já que é final de ano, tempo de paz, por não aproveitamos a oportunidade para fazermos as pazes? É simples: você me manda a dona daquela soberba perna (pode ser zarolha, dentuça ou corcunda) e eu esquecerei todas as nossas divergências pretéritas. De quebra, para mostrar que não guardo ressentimento, passarei a tratá-lo por Papai Noel, com fazem as pessoas normais.

PS: não precisa trazê-la: irei buscá-la pessoalmente.

Fraternalmente, velho Ancião

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