segunda-feira, 9 de novembro de 2009

História, o enredo gosta é de briga - Raimundo Carrero




De Chuva - A história e o enredo - Raimundo Carrero


Narrativa e conflito têm conceitos diferentes embora gerados no mesmo ventre.

Quase sempre a história é confundida com enredo. Ou sempre. Mas são manifestações artísticas bem diferentes. O escritor – iniciante ou não – deve distinguir isso muito bem, de forma a conquistar um aliado técnico, tanto na estrutura interna da intriga, quando na escolha dos capítulos, cenas e cenários. E, é claro, até mesmo nos diálogos. Sempre com muita atenção. As diversas formas de diálogo têm função e efeito.

Uma história não aprofunda os questionamentos nem tem conflitos. Lembra muito o argumento. Alguns autores chegam mesmo a chamá-la de argumento, o que quase não fazemos, porque não acreditamos neles. De cara, entramos nos textos que já queremos definitivos. Não é bem assim. Uma história ajuda a criar enredos, estes, sim, possuidores de confrontos, conflitos, questionamentos, estranhamento, cenas e cenários. Na maioria das vezes significam intriga.

Então podemos dizer, com certeza que:

a) História é uma narrativa linear, sem conflitos, ou sem aprofundamentos de conflitos e confrontos; às vezes com divergências.

b) Enredo é uma narrativa em que os personagens estão sempre em oposição, o que gera conflitos, confrontos, questionamentos.

Exemplo de história:

a) Naquela noite, Maria foi ao cinema mesmo enfrentando uma chuva forte. Podia deixar para outro dia, é claro, mas gostava do barulho da água no teto – ainda era um daqueles antigos e resistentes cinemas de bairro - e por isso saiu decidida. Além disso, sentia-se bem vestindo um pulôver, o que nem sempre fazia, porque morava numa cidade quente. Imitava as heroínas que andavam nos bairros românticos, com os braços cruzados, sonhadoras, quem sabe não surgia na esquina, na próxima esquina, o primeiro namorado? Não havia filas para a compra de ingressos e ela aproveitou para comprar batatinhas. Como estava no intervalo, escolheu, sem pressa, uma cadeira em lugar privilegiado. O ar deixava a sala ainda mais fria. Cochilando, nem percebeu quando o antigo namorada se sentou a seu lado. Tanto que gostaria de beijos e abraços, como nas outras vezes. Levantou-se e saiu. Se ele a acompanhasse, quem sabe, não é? Ainda olhou para trás e não ninguém. Só a rua quieta, solitária.

Exemplo de enredo:

b) Naquela noite, Maria teve que discutir com a mãe, a ponto de chamá-la de velhota retardada, para ir ao cinema, mas a mulher temia um resfriado ou, dramática: até mesmo uma pneumonia, e que a levaria, quem sabe, ao leito de um hospital. Tudo por causa da chuva. Não, não podia ir outro dia e era até bom ouvir o barulho da água no teto, aproveitando o cinema antigo, ultrapassado, um raro exemplo de resistência. Uma sombrinha? Uma sombrinha nada, a chuva ainda era pouca, bastava um pulôver, que era charmoso e quase nunca usava-o, por causa do calor da cidade interiorana. De braços cruzados, viu quando o primeiro namorado cruzou a esquina, talvez pudesse encontrá-lo no cinema, para aquecer um pouco a sala fria. Depois de comprar o ingresso e a batatinha, escolheu um lugar bem discreto, onde eles se sentavam nos bons tempos. Nem percebeu quando o rapaz se sentou ao seu lado. Amor, ouviu, a palavra e pensou que fosse um sonho. Mas não deixou de sentir a mão que passava sobre seu ombro. Acordou no meio da fita. Percebeu que estava sendo amada, aos beijos e abraços. Não faça isso, ela disse. Bobagem, sempre foi assim. Ela se levantou. E saiu. Em casa, reconheceu que a mãe tinha razão. Não por causa da chuva. O perigo estava nas mãos sem luvas. Bateu na porta várias vezes. A mãe não parecia disposta a abri-la. Será? Já na sala, a mãe riu e foi dormir. Incrível: cheia de rancores. Mas não deixou de acrescentar que ela devia se comportar melhor da próxima vez.

No Brasil é fácil encontra “Uma vida em segredo”, de Autran Dourado. Ou no filme de Suzana Amaral. Aliás, Autran tem muita preocupação com isso. Ele diz que enquanto o leitor está distraído com o enredo, o autor lhe bate a carteira. Pensam também na relação entre Charles e Madame Bovary – entre os dois não acontece nada, nenhum conflito Mesmo quando Emma desdenha da imagem de Charles. Entre os dois só há história. E, às vezes, nem isso.

Percebe-se, claramente, a diferença. O motivo da narrativa é o mesmo, mas a história cedeu espaço ao enredo. Quem não sabe que o enredo gosta mesmo é de briga? É preciso que apareçam os conflitos, os confrontos, a oposição entre personagens. “Um coração simples”, de Flaubert, tem história mas não tem enredo, mesmo quando Felicidade sofre uma decepção. Por quê? Porque a decepção é apenas um incidente rápido, não alcança o nível de conflito, ou de confronto, sobretudo do conflito dramático. É, quando muito, um problema – algo que perde a importância logo depois. Aparecem fatos, muitos fatos, que se sucedem e não complicam. Podemos apontar até mesmo esses incidentes, que se revelam banais na estrutura da história. Alguns deles são:

a) O esforço de Felicidade no trabalho;
b) A força de Teodoro e a tentativa de estupro;
c) A fuga de Teodoro;
d) Os filhos da dona da casa;
e) A morte do papagaio, etc.

Por isso, não raras vezes, Flaubert era acusado de ser apenas um autor da epopéia dos comuns. Basta dar uma olhada no ensaio que Henry James escreveu sobre ele. E “A morte de Ivan Illich”, de Tolstoi, é história ou enredo. História, com certeza. Porque o enredo some, restava a situação dramática do personagem. E só. Acontece o mesmo com “O Velho e o Mar”, de Hemingway. É possível dizer o mesmo de “Abril Despedaçado”, de Kadaré? A vida de Gjorg é um intenso drama cheio de conflitos mentais e reais. É brilhante a abertura do romance com o ser ou não ser, preparando a morte do inimigo. Ainda que ocorra uma aproximação com Shakeaspeare.

Não quer dizer, jamais, que uma história é menor ou superior ao enredo. Nem que o enredo é superior à história. De forma alguma. Trata-se, apenas, de uma técnica que o escritor escolhe sobretudo para se exercitar. Isso, para se exercitar. Um escritor precisa se exercitar sempre e nunca esmorecer. Devemos nos lembrar da velha frase de Flaubert, em carta a Louise Collet, depois de trabalhar muito e não conseguir os efeitos desejados: “Hoje sofri muitas decepções comigo mesmo”. Algumas pessoas deixam de escrever porque se decepcionam com o que narram. Logo perdem o ânimo. A coragem. A determinação.

Mas sem nunca esquecer: história revela-se pela linearidade; enredo só quer briga, com várias linhas narrativas, curvas, e sinuosidade.

É claro que tudo isso pode ser mudado. Pode ser alterado. Enfim, o autor tem completa liberdade para escrever a sua obra, ainda que não considere as técnicas. Sempre e sempre: a intuição está sempre em primeiro lugar, depois é que vêm as técnicas. Às vezes, a técnica intuitiva.
Cada autor com sua liberdade e sua ousadia. Mas custa estudar, custa?

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