domingo, 19 de dezembro de 2010

Cineas Santos - A insólita poesia

Depois de uma tarde de chumbo, dessas que entorpecem a alma, a noite chegou acenando com a promessa de “chuvas amorosas”, como diria o Dobal. E a chuva veio: breve, mas intensa como costumam ser as boas coisas da vida. É incrível o poder que a chuva tem de mudar os ares de Teresina. Hoje (terça, dia 7), a cidade acordou de cara lavada; dir-se-ia uma mulher recém-saída do banho, com os cabelos gotejantes e cheirando a lavanda, uma mulher pedindo para ser amada...

Um dia propício para teresinar, no dizer de A.Tito Filho, de saudosa memória. Com o pretexto de ir ao centro, fiz o percurso mais longo. Por volta das dez horas, na Av. Duque de Caxias, parei um instante para ver mais uma cicatriz no ventre da cidade: um novo supermercado engoliu uma fatia significativa de área verde. Num ritmo alucinante, homens e máquinas trabalham para construir, no menor espaço de tempo, mais um templo destinado ao deus-consumo. Num gesto de “boa vontade”, preservaram um ipê amarelo, prova de que “o capitalismo tem alma”.

De repente, contrastando com a agitação do canteiro de obras, a insólita poesia: um adolescente negro, magro, não teria mais de 17 anos, com a camisa no ombro, percorria lentamente uma das ciclovias, puxando um prosaico carrinho de lata, desses que outrora fascinavam os meninos pobres da periferia. Um carrinho velho, amassado, amarelo. No para- choque do carro, um fiapo de linha, presa a um pedaço de madeira. Às vezes, as rodas do veículo prendiam-se num obstáculo qualquer. O rapaz parava e, pacientemente, contornava o obstáculo, com o cuidado de um manobrista experiente e responsável. Os raros ciclistas que usavam a ciclovia desviavam-se do moço sem importuná-lo. E ele, indiferente ao rugir dos automóveis, prosseguia, atento ao preceito zen: “Jornada longa, passos curtos”.

Aos olhos dos que só veem as coisas rentáveis, a presença daquele moço com seu brinquedo de lata não passava de uma cena patética. Aos olhos do velho cronista, a poesia em estado puro. Por um instante, transportei-me aos longes da minha aldeia onde, por falta de recursos, éramos obrigados a construir nossos brinquedos, usando como matéria- prima latas de sardinha, caixas de fósforos, carretéis de linha... Eram brinquedos pobres, simples, rústicos, mas que se enchiam de beleza e vida com o adubo da nossa imaginação. Era um tempo em que brincar não tinha nenhuma relação com o ato de consumir. Mais uma vez recorro ao Poeta: não nos ardia o desespero de ser donos de nada. Viver bastava.




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