Seu Liberato era um sertanejo atípico: não fazia o menor esforço para esconder a delicadeza, o lirismo e a ternura que o animavam. A violência não encontrava agasalho em seu juízo: não batia nem em jegue, bicho ronceiro e sestroso. Fazia tudo para agradar os filhos. No final do dia, trazia-nos da roça uma pororoca de melancia, uma bananinha de coroatá, uma resina de angico, um favo de enxuí, uma simples flor de caruá ou de rabo-de-raposa... Era lento, sossegado, paciente e excelente contador de causos. As histórias eram as mesmas, mas sempre acrescidas de detalhes que lhes conferiam sabor de novidade. Se tivesse de defini-lo com uma metáfora, não me ocorre outra: um juazeiro, só sombra.
Dona Purcina, ao contrário, era agitada, enérgica, autoritária. Não admitia contestação, desrespeito, desobediência. Partidária da pedagogia da pancada, não hesitava em aplicar corretivos severos e rigorosos nos filhos, afilhados, agregados e afins. Afirmava, sem rodeios: “Quem não faz o filho chorar chora por ele”. Estava sempre atenta a tudo. Nada se lhe escapava ao olhar de águia. Quando alguém lhe questionava uma ordem com o argumento: “não vai dar certo”, ela retrucava na hora: “Você já tentou?”. Nascida e criada no sertão do Caracol, tinha um sonho recorrente: migrar para uma cidade grande, onde “corra dinheiro, saia água das torneiras e tenha escola de graça”.
Com temperamentos tão distintos, ela e seu Liberato nunca brigavam. A canga do trabalho os unia. Quando ele percebeu a vocação dela para o matriarcado, abdicou do poder de mando: deixou que ela o exercesse plenamente. À proporção que envelhecia, fazia-se mais brando, mais suave, mas companheiro dos filhos. Às vezes, no auge das nossas reinações, ouvíamos dele a advertência providencial: “Cuidado com a onça!” ou: “A onça está por perto!”. Serenos e sossegados, esperávamos a fera afastar-se para reiniciar as traquinagens. Aos 75 anos, seu Liberato perdeu completamente a visão. Nunca se ouviu dele uma queixa, uma imprecação. Dir-se-ia ter nascido cego. Fez sua última viagem no dia 1º de maio de 1984, sem saber que aquela data era consagrada ao trabalhador. Era um sertanejo íntegro, um homem exato.
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Este fragmento de prosa integra o livro A Matriarca dos Loucos, que pretendo lançar brevemente.
Um comentário:
Maravilha! Adorei a história do Seu Liberato e Dona Onça. O livro deve ficar ótimo, gostoso de ler.
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