Por Cineas Santos
De Teresina |
No sertão onde nasci, apenas duas datas tinham, efetivamente, algum significado: a sexta-feira da paixão e o primeiro do ano. Na sexta-feira grande, não se podia fazer quase nada. Não se tomava banho, não se tirava a barba, não se ordenhavam as vacas, não se comia carne, não se falava alto. Os mais devotos passavam o dia em completo jejum e alguns até se autoflagelavam . Já no primeiro dia do ano, podia-se quase tudo, inclusive percorrer a pé duas ou três léguas à caça de um forró de latada, mesmo sabendo que o sanfoneiro era ruim, a cachaça estava batizada, as mulheres eram poucas e os arruaceiros, muitos. Não bastasse isso, as escaramuças eram comuns e, por um nadinha, alguém era mandado para o reino da glória...
Quando me transplantaram para a cidade, apresentaram-me a palavra réveillon, que trazia consigo alguns penduricalhos: queima de fogos, roupas brancas, música de gosto duvidoso, espumante ordinário, dor de cabeça e felicidade compulsória. Perdi o interesse pela data. Decididamente, já não se fazem entradas de ano como antigamente. Ganhou-se em barulho; perdeu-se em lirismo.
Este ano, decidi iniciar o ano novo com um programa diferente: passear por ruas, becos e praças da cidade amada. Saí cedo, sozinho e, sem pressa ou roteiro preestabelecido, fui avançando: Monte Castelo, Redenção, Macaúba, Por enquanto, Buenos Aires, Poti Velho, Vila Operária e, finalmente, centro histórico. Sem a torrente de automóveis que entulha ruas e avenidas, Teresina é uma cidade sossegada, encantadora. Lavada pelas chuvas que caíram à noite, a cidade mais parecia uma dessas donas de casa que, de cara limpa, senta-se à porta apenas para olhar o espetáculo da vida na rua. Lembrei-me de um tempo, não muito distante, em que se podia atravessar a cidade inteira, do Poti Velho à Tabuleta, sem risco de ser molestado. Quando muito, era-se abordado por um bêbado tresmalhado que pedia um cigarro ou um trocado para mais um gole de pinga. Os poetas notívagos, capitaneados por William Soares, eram os pastores da noite a perambular por bares e biroscas onde se discutia poesia, falava-se mal da ditadura e campeava-se mulher disponível, mesmo que fosse a do próximo...
Um dia, alguém acometido de megalomania galopante resolveu trocar o rótulo “cidade verde” por “grande Teresina”. Como se movida por uma força estranha, a cidade verticalizou-se, livrou-se dos quintais, ganhou shoppings, edifícios com nomes pomposos, engarrafamentos enervantes e encheu-se de lojas barulhentas, templos evangélicos e motéis. Despiu-se do verde, cercou-se de favelas e nunca mais foi a mesma.
No primeiro dia do ano que se inicia, com as “retinas fatigadas”, olhei minha cidade como quem olha o que já não lhe pertence. Como naquela remota manhã de maio de 65, quando me despejaram na Praça Saraiva, voltei a sentir-me apenas um náufrago...
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