terça-feira, 2 de março de 2010

O PRETO NO BRANCO

De Cabocla


Recentemente fui tachado de preconceituoso por afirmar, em meu livro, que não havia o elemento negro na miscigenação do Arraial do Junco, como se isso fosse uma afirmação leviana do autor, e não um legado genuinamente histórico.

Quem parar um instante para estudar a etnia brasileira, verá que a presença do negro no povoamento do sertão nordestino é pouca ou quase nenhuma, devido a vários fatores, sendo que o principal deles é o fator econômico. Era mais fácil e mais barato escravizar o índio nativo, acostumado à agressividade sertaneja, do que trazer o negro para dentro do mato e mantê-lo a ferro e a fogo em uma vasta extensão territorial de mata inóspita e desconhecida, sem nenhum cercado que pudesse impedir a sua fuga.

O negro era escravo quase exclusivo dos senhores de engenho na costa brasileira, custava caro e tinha outro custo adicional para mantê-lo sob o jugo: a vigilância. Mesmo assim, em engenhos fortemente vigiados, havia fugas e mais fugas de negros para os quilombos ou mesmo para viver a esmo, aprendendo capoeira com os índios.

Negros e índios eram litisconsorte na sanha assassina dos capitães-do-mato e dos bandeirantes, também chamados de sertanistas, e, por causa dessa desdita, uniam forças em auto-defesa. O que se acreditava ser uma luta de senzala, vinda da África negra, a capoeira é um esporte (ou luta) genuinamente brasileiro, levado para os quilombos através da recaptura dos negros fujões que tiveram contato com os índios e aprenderam a ginga de ataque e defesa.

A palavra capoeira é de origem Tupi, que significa “pequeno mato”, ou arbusto, local em que os índios e negros quilombolas se escondiam da caçada humana e, quando eram descobertos, desarmavam os sertanistas dando golpes de pernas e de mãos. Nas senzalas, para disfarçar a prática da luta – ou os exercícios diários –, usavam instrumentos de percussão e, quando o senhor de engenho chegava, transformavam a luta em uma dança chamada de barrigada, que depois se transformou em batuque e daí nasceu o samba.

Mas voltemos ao Arraial do Junco, cidade nascida nos estertores da escravidão negra e índia, fundada por um descendente de português e índio, o famoso mestiço, e mais por sua parentada; tios, primos, irmãos, cunhados, chegados ou não de Portugal, todos devidamente casados com índias, solamente com índias ou com seus parentes próximos, ou seja, mestiço com mestiço, gerando o curiboca, ou, em outras palavras, o caboclo, que também quer dizer “originário do branco”.

O bisavô de minha mãe veio em uma expedição financiada pelo Império. Era um nobre da Corte portuguesa, falido, fodido e mal pago e as suas esperanças de renascer financeiramente estavam em terras brasilis, mais propriamente nos inexplorados sertões. Chegando aqui, se casou com uma índia e teve vários filhos, sendo que um deles se casou com a neta do fundador da cidade e se tornou genro de um caboclo que era casado com uma índia. Desse casamento, nasceram muitos filhos, dos quais um é o meu avô, que era casado com uma cabocla, descendente de português com índio. O meu avô teve muitos filhos, entre eles, a minha mãe, claro.

O meu escanchavô paterno, ou seja, o avô do meu avô, o fundador da cidade, era filho de português com índia. Como naquelas terras rudes não havia mulher branca nem negra, se casou, claro, com uma índia, e teve vários filhos, que também se casaram com índias ou com as próprias primas e na descendência um pouco mais para cá para baixo, nasceu o meu pai, filho de caboclo com cabocla. O meu pai se casou com a minha mãe e tiveram onze filhos, entre eles, eu. Ou alguém tem alguma dúvida?!

Quisera eu ter descendência africana. Ao contrário dos portugueses que povoaram estas terras – nobreza falida, perseguidos ou condenados da justiça, proxenetas, cáftens, ladrões, assassinos, etc. – os africanos traficados para o Brasil eram, em sua maioria, perseguidos políticos, reis e rainhas destronados, príncipes usurpados da herança real e guerreiros capturados em combate ou traídos por seus comandantes. Mas, infelizmente, as minhas origens não dependem de mim e, em vez de ter a altivez personalizada de um príncipe negro, fico aqui lamentando a minha condição de nobre marginal, sem eira nem beira e sem lugar garantido nos Campos Elíseos para descansar a minha alma aristocrática de araque.

E ainda me chamam de racista por escancarar a minha vergonha.

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