Recordo aqui o mestre na arte
de fazer amigos, apresentar pessoas umas às outras, de recebê-las em sua bela casa
na Rua Alagoinhas, 33, no bairro do Rio Vermelho, em Salvador da Bahia, e nos
seus endereços do Rio de Janeiro e de Paris. Missivista incansável, ele sempre
dava um jeito de encontrar tempo para ler e responder as cartas que recebia de
todo o mundo, numa disponibilidade impressionante em se tratando de um escritor
com dedicação exclusiva ao seu ofício, e ao mesmo tempo figura pública frequentemente
envolta em múltiplas solicitações. As mais de cem mil páginas guardadas num
acervo isolado na fundação que leva o seu nome, na capital do seu estado natal,
comprovam o quanto ele dialogou intensamente por via postal. Não foram poucos
os ilustres desconhecidos, promissores ou não, que no início de suas carreiras
literárias mereceram dele amáveis palavras de incentivo, a serem guardadas como
um troféu pelos destinatários mais discretos, ou divulgadas triunfalmente –
pelos mais afoitos.
O autor destas linhas foi um desses felizardos. E de
forma tão surpreendente quanto inesquecível, para um voraz leitor de seus
livros, e desde a adolescência, quando um deles lhe caiu às mãos. E que o tinha
na conta de uma figura inatingível, já que se tratava do romancista brasileiro
mais lido, mais traduzido, mais viajado, mais cortejado, mais popular – sua
popularidade jamais fora igualada por qualquer outro escritor brasileiro do seu
tempo, ou de antes dele, ainda que a crítica, sobretudo a acadêmica, lhe
torcesse o nariz. Portanto, este que agora vos escreve não contava com aquele
seu gesto, imprevisível, desprendido, atencioso, melhor dizendo, de uma
generosidade inimaginável.
Eis a história:
Rio de Janeiro, 12 de dezembro de 1972.
Já estava aprontando a mala, para uma rápida viagem a
São Paulo. Motivo: o lançamento do meu primeiro livro lá, programado para a
inauguração de uma livraria no Largo do Arouche, no centro da cidade.
O telefone
tocou. Ao atendê-lo, reconheci a voz de um amigo paulista, que tinha duas
notícias, uma boa e outra ruim.
Pedi-lhe que
começasse pela ruim.
E ele:
- Para o seu
azar, Jorge Amado vai fazer a noite de autógrafos de Tereza Batista cansada de guerra aqui em São Paulo, hoje, no
mesmo horário da sua. Como qualquer lançamento dele dá enchente, o seu pode
ficar às moscas.
Por essa eu
não esperava. A coincidência dos dois lançamentos, no mesmo horário, era mesmo
preocupante. Mas, fazer o que, se estava tudo marcado e, àquela hora, não dava
mais para propor outra data?
- Agora
conta a boa...
- Leia “O
Estado de São Paulo” de hoje.
Claro que,
ao chegar ao aeroporto Santos Dumont, no centro do Rio, corri à livraria para
comprar o “Estadão”. E lá estava, na página 10 do primeiro caderno, uma matéria
de boníssimo tamanho sobre os dois lançamentos, com as capas dos respectivos
livros em destaque, o do baiano universalmente consagrado e o do estreante já
devidamente avisado de que se preparasse para ser esmagado pelo peso do nome do
seu ilustre conterrâneo. No entanto, ao se encaminhar para o avião, o tal
estreante já estava mais otimista, achando que de modo algum aquela seria uma
viagem perdida. A julgar pelo espaço que lhe coubera no poderoso “Estadão”, e
junto logo de quem, a ganhara por antecipação. Só por isso já se sentia no
lucro.
São
Paulo, 12 de dezembro de 1972.
Fim de
tarde.
Chego à
livraria alguns minutos antes da hora marcada e me dirijo ao balcão, para me
apresentar. Um rapaz me cumprimenta, se desmanchando em mesuras. E logo revela
a razão do seu entusiasmo: Jorge Amado acabava de sair dali.
E aí é que vinha a surpresa. Antes de ir
para a livraria onde estaria autografando seu novo romance, dali a pouco, e certamente
para uma multidão, Jorge Amado passara naquela outra, na qual comprara o livro do
estreante, que deixou com o vendedor, pedindo-lhe para enviá-lo ao hotel em que
estava hospedado, devidamente autografado. Como se isso fosse pouco, deixou uma
cartinha com simpáticas saudações ao novo autor, e dando-lhe seu endereço e
telefone, para que o procurasse, quando fosse à Bahia. Seria isso algo normal
no mundo das letras, ou somente em se tratando de um cavalheiro chamado Jorge
Amado? A praxe deveria ser outra: o estreante envidar esforços para descobrir
como enviar seu livro para o escritor consagrado, escrever para ele para saber
se o havia recebido, se tivera tempo de lê-lo, o que achara etc, tentar uma
aproximação através de um amigo que tivesse um amigo que por sua vez era amigo...
Não era mais ou menos assim a via crucis em busca de reconhecimento, por
caminhos mais longos do que no admirável novo mundo-ego inaugurado pela web? Enfim,
para o destinatário daquela cartinha escrita de próprio punho em 12 de dezembro
de 1972, Jorge Amado parecia haver descido do topo da montanha em que fora
colocado pela força da sua obra para dar uma mão a um mocinho sem currículo recém-chegado
à planície das letras.
Ainda ia
haver mais.
Poucos meses
depois, o telefone toca, e era ele próprio no outro lado da linha, convidando
para dois dedos de prosa em seu apartamento em Copacabana, no Rio de Janeiro.
Perguntou se podia convidar também o artista plástico Calazans Neto, seu grande
amigo, capista e ilustrador de alguns dos seus livros. Ora, ora, como não? E lá
me fui. Para conhecê-lo pessoalmente, assim como à sua mulher, a escritora
Zélia Gattai, e o “mestre Calá”, um conviva espirituoso, encantador, cujo senso
de humor preenchia o vazio que ficava na sala toda vez que o telefone tocava e
dona Zélia se levantava para atendê-lo. O que acontecia a todo instante. Eram
ligações dos jornais, das TVs, dos embaixadores dos mais diversos países. Jorge
pedia licença, ia e vinha, se desculpava pelas interrupções à conversa.
- Eu queria mesmo era ficar conversando
contigo. Mas não me deixam. Vá à Bahia. Quem sabe lá dê para a gente conversar?
Doce
ilusão. Baiano, mas vivendo fora do estado desde cedo, finalmente eu iria ser
apresentado a praticamente todo o meio literário local - por Jorge Amado! E
isso em torno dos comes e bebes de um almoço de domingo, com os cheiros, cores
e sabores carregados da sensualidade que impregnavam as suas páginas.
– Chegue
cedo, para a gente poder conversar.
Só que uma
equipe da TV argentina chegou antes, para entrevistá-lo. Sua sala de visitas
estava completamente tomada por câmaras, cabos, refletores, que o seguiam por
quartos, escritório, cozinha, tudo. E a produção pedia-lhe para trocar de roupa,
nas mudanças dos sets de gravação. E ele, tendo nas mãos uma camisa estampada,
de cores vivas, bem ao gosto de turista norte-americano no Hawai: - Zélia, esta
fica bem?
Isso não foi tudo: a campainha tocava o tempo
todo. E lá ia ele para a porta de casa, para ser fotografado, ora por
japoneses, ora por turistas paulistas que chegavam aos bandos, enquanto o
convidado que atendera ao seu pedido de chegar cedo se perguntava como ele
agüentava esse tranco e ainda era capaz de escrever com tanta regularidade.
Voltaria a
visitá-lo, na Bahia, no Rio, em Paris. Às vezes – raras vezes - com sorte de
encontrá-lo sem o desassossego que o acompanhava em toda parte. E não foram
poucas as cartas que recebi dele, enviadas de Salvador, Londres, Lisboa,
Martinica... Ou seja, pela vida afora ele acompanhava com interesse o destino
do escritor estreante que em
São Paulo o levara a fazer um desvio de caminho para comprar
o seu livro, naquele fim de tarde de 12 de dezembro de 1972.
***
Agora
recordo a iniciação de um leitor à obra de Jorge Amado. Foi através do Mar morto, no qual navegaria em duas
noites, para desembarcar ao raiar de um dia com o mesmo arrebatamento com que
já havia lido um célebre vate, e ícone do romantismo no Brasil, o também baiano
Antônio de Castro Alves. De tão poético, o romance de Jorge Amado parecia uma
versão contemporânea, em prosa, da lira flamejante, libertária, daquele que
tanto colocou a sua pena a serviço de um mundo mais justo, comprometida com a
construção de uma nova ordem social, e com a causa republicana e abolicionista,
quanto também arrebatava os corações como o grande poeta do amor e da
melancolia do século XIX. (“Por que Castro Alves e Jorge Amado estão ainda por
merecer estudos analíticos mais amplos e mais profundos”? – pergunta o escritor
e crítico literário Hélio Pólvora, num ensaio intitulado Jorge Amado e o romance do mar. E responde: “Justamente porque
expõem sentimentos comuns, ânsias comuns, esperanças disseminadas. E,
sobretudo, porque são eloquentes: exprimem logo o essencial sem o recurso ao
debate de ideias, dispensam os mistérios do texto. Dizem verdades essenciais –
e isso, como ficou bem dito de Máximo Gorki, é uma arte do coração”). Mar morto seria então uma comprovação
disso, embora não tenham sido poucos os críticos que o combateram, chegando-se
até a acusá-lo de sentimentalismo quase pueril, amontoado de lugares comuns e
banalidades que de modo algum poderiam ser elevadas à categoria de poesia.
O leitor
aqui recordado ainda não lia os críticos. Era um adolescente mais chegado à
poesia do que à prosa. Ainda assim já havia lido com interesse um romance de
Machado de Assis, outro de Graciliano Ramos, alguns contos de Monteiro Lobato,
e de uma série de antologias intitulada Maravilhas
do conto (hispano-americano, russo, norte-americano etc). Mar morto o conquistara definitivamente
para a prosa de ficção. Ponto para o poder de sedução da humaníssima fala
baiana que Jorge Amado tão bem sabia captar para a linguagem escrita, trazendo
à literatura brasileira um colorido encantador, até, ou principalmente, para um
leitorzinho baiano como o que aqui se rememora, pois, sendo natural do interior
do estado e nele ainda vivendo, desconhecia a vida e as lendas do mar, os
cenários míticos amadianos, pintados pelo seu viés sincrético, a retratar uma
deslumbrante visão utópica de mundo.
E a
descoberta desse mundo fabuloso deveu-se a um professor – de Geografia! -, que
chegara, procedente do Rio de Janeiro, para dar aulas no único ginásio da
cidade, surpreendendo os seus alunos com seus vastos conhecimentos de serras,
mares, rios, lagos, pontos culminantes, continentes, capitais, países. Aos
poucos, ele revelaria outros domínios, que abrangiam da Matemática à
Literatura. Esse mestre de nome estranho – chamava-se Carloman, por extenso,
Carloman Carlos Borges -, fora das salas de aulas empenhava-se em falar de
livros e autores jamais falados naquele estabelecimento de ensino, parado no
tempo do Romantismo. Para o professor Carloman, compreenderíamos melhor o país
em que vivíamos, se lêssemos a literatura brasileira moderna, muito bem
representada pelos romancistas do Nordeste, que, com a cearense Rachel de
Queiroz, o alagoano Graciliano Ramos, o paraibano José Lins do Rego e o baiano Jorge
Amado haviam inaugurado o mais poderoso ciclo literário nacional, no século XX,
o do “romance de 30”
– ou seja, da década de 1930. – Para começar a gostar da obra de Jorge Amado,
leia este – ele disse, ao me emprestar o Mar
morto. – Quando se começa a ler Jorge
Amado, não se para mais.
Estávamos
na segunda metade da década de 1950, numa cidade de 50 mil habitantes, luzes
verdes, sonhos dourados, e vida cultural limitada. Nosso imaginário era povoado
pelos personagens interpretados pelos astros e estrelas de Hollywood, e nós, os
rapazes, ora saíamos do cinema andando como um cowboy que acabava de apear do
cavalo, ora iríamos passar horas e horas
diante de um espelho, caprichando num pimpão que nos deixasse parecidos com o
Elvis Presley. Nos bailes, porém, só sabíamos dançar mesmo era o bolero. Aquele
que ousou os primeiros requebros do rock and roll foi aplaudido de pé, como um
herói. Ler Jorge Amado significou descobrir um outro heroísmo.
Começando o Mar morto em tom
de conversa pessoal, íntima, de pé do ouvido, ele seduz o leitor desde a
primeira linha - Agora eu quero contar as
histórias da beira do cais da Bahia -,
e daí por diante leva-o em ondas, deixando-o completamente envolvido pelas
dores das labutas dos seus marinheiros, tanto quanto pelo prazer de um texto
amoroso, memorável: Vinde ouvir estas
histórias e estas canções. Vinde ouvir a história de Guma e Lívia que é a
história da vida e do amor no mar. Uma história de aventura e de liberdade,
de mitos oriundos de tradições culturais tão próximas e tão desconhecidas
daquele leitorzinho interiorano:
Estrela matutina. No cais o velho
Francisco balança a cabeça. Uma vez, quando fez o que nenhum mestre de saveiro
faria, ele viu Iemanjá, a dona do mar. E não é ela quem vai agora de pé no
Paquete Voador? Não é ela? É ela, sim. É Iemanjá quem vai ali. E o velho
Francisco grita para outros no cais:
- Vejam! Vejam! É
Janaína.
Olharam e viram. Dona
Dulce olhou também da janela da escola. Viu uma mulher forte que lutava. A luta
era seu milagre. Começava a se realizar. No cais os marítimos viam Iemanjá, a
dos cinco nomes. O velho Francisco gritava, era a segunda vez que ele a via.
Assim contam na beira do cais.
“De todos
os mitos que sustentam os romances amadianos e lhes dão a profunda ressonância
da fatalidade, nenhum é tão amplamente utilizado quanto o de Iemanjá que
empresta a Mar morto a sua
estrutura, o seu sopro poético e a sua força dramática. A história de Guma é,
em certas ocasiões, tão comovente quanto a de Édipo. O sistema das relações
entre os personagens se reproduz graças à presença mediadora do mito
afro-brasileiro, o velho esquema da ficção grega que nada mais é, talvez, do
que a expressão das relações inerentes a todos os grupos humanos desde sempre”.
Salah,
Jacques. O cenário mítico em Mar morto. In: Colóquio Jorge Amado –
70 anos de Mar morto. Salvador: Casa de Palavras, 2008.
Fim de uma história.
Começo de outra. Com a seguinte epígrafe: Buscaba
el amanecer/ y el amanecer no era. Foi a primeira vez que este leitor bateu
os olhos no nome de Federico Garcia Lorca, que, descoberto via Jorge Amado, um
dia iria lhe inspirar o romance Balada
da infância perdida.
***
Salve,
salve, capitão de longo curso:
Recordo-o
em O país do carnaval: “Fica-se
vivendo a tragédia de fazer ironias”. Pois não deixa de ser irônico que o mundo
acadêmico, que costumava jogá-lo num saco
de gatos, para malhá-lo como a um Judas, esteja fazendo uma reavaliação da
sua obra. Chega a parecer que agora você “era o herói” (copyright para Chico Buarque), o herói popular ao qual alguns
círculos eruditos fazem justiça, ainda que tardia. Seja como for, não custa
recordar que essa virada começou em 2010, quando duas venerandas instituições
do ensino superior, uma de São Paulo e a outra da Bahia, realizaram um
seminário em torno do seu nome, e com auditórios lotados. Agora se descobre que
“ainda há terrenos férteis a serem explorados” em sua obra, como a
homossexualidade em alguns de seus romances, e “o grande potencial da
literatura amadiana para a pesquisa histórica”, conforme avaliação acadêmica
feita em recente edição da bela Revista da Biblioteca Mário de Andrade, também
de São Paulo. Era agora que você iria se perguntar: “Mudou a universidade
brasileira ou mudei eu”? E são tantos os workshops
em torno dos seus livros – e da sua vida - pelo país afora, e tantas as
homenagens a você around the world,
neste seu centenário, que o espaço aqui ficou pequeno para dar conta de tudo,
até porque não poderia encerrar estas mal-traçadas linhas sem repassar um
recado da Bahia. Nosso conterrâneo Aleilton Fonseca, doutor em Letras e
escritor, manda dizer que na sua obra, Jorge, “somos nós que estamos
representados, com a nossa cultura mestiça, nossas marcas étnicas e sociais, e
os diversos aspectos da nossa formação”. E que ela revela “a nossa experiência
particular do mundo”. Assino embaixo. Saudades eternas,
Antônio Torres
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