Blues para Cortázar
(E para o saxofonista Rodolfo Novaes)
Ele não foi um garoto que amava os Beatles e os Rolling Stones. Pertencia a outra geração. Adorava mesmo era Duke Ellington, Louis Armstrong, os velhos cantores de blues. E podia ficar horas a fio falando de Thelonious Monk. Isso desde que ouviu no rádio, pela primeira vez, uma estranha música ainda desconhecida nas suas bandas.
Não custou a perceber que o que o encantava nessa música era o fenômeno maravilhoso que constitui a sua essência: a improvisação. Mas, no começo desta história, o garoto tornou-se apenas um chato, aos ouvidos da família. Porque ele só sintonizava o rádio num programa que tocava a tal música. O que dava sempre em briga. Seus pais detestavam aquela coisa de negros. Queriam ouvir mesmo era um tango, música de brancos. Afinal, estavam na Argentina.
O garoto cresceu, foi embora e se tornou um dos escritores mais importantes do mundo. E nunca perdeu a sua paixão pelo jazz. Sorte dos seus leitores. Uma de suas melhores histórias é uma viagem em torno do coração e mente, corpo e alma de um saxofonista drogado – e genial. Que soprava o seu instrumento como se quisesse querendo arrebentar o mundo, a música – toda a música havida antes dele – e a si mesmo.
O conto se chama O perseguidor. Nele, Júlio Cortázar mergulha em águas pouco navegadas até o fundo da esquizofrenia de um artista de gênio, a apostar corrida com a loucura e a morte. Era mais um daqueles negros fantásticos que enchiam de calor as noites de Paris. Só que este tinha toda a pinta de um Charlie Parker, a quem a história é dedicada. Logo, não era apenas mais um.
Tudo isto vem a propósito de um livro publicado no Brasil pela Editora José Olympio, em tradução de Eric Nepomuceno. Trata-se de O fascínio das palavras, que reúne entrevistas de Júlio Cortázar ao uruguaio Omar Prego. Para este leitor, o livro se torna ainda mais fascinante quando ele fala de jazz, da sua relação com a literatura, aquela coisa da escrita automática, de improvisação da escrita, do jazz como o equivalente ao surrealismo nas letras, do swing que pode dar ritmo a uma frase capaz de entrar no leitor por via subliminar, atingindo sua inteligência sem que ele perceba. E mais: um conto tem que chegar ao fim como chega ao fim uma grande improvisação de jazz ou uma sinfonia de Mozart. E assim o contista vencerá o leitor por nocaute.
Por essas e outras é que achei que havia qualquer coisa de O perseguidor no filme Round midnight (Por volta da meia noite), do franco-suíço Bertrand Tavernier. Tanto quanto senti a falta desse conto no filme Bird, de Clint Eastwood, que conta a história de Charlie Parker.
Júlio Cortázar não chegou a vê-los. Ele morreu em 1984. E perdeu dois bons momentos de jazz no cinema. Mas muitos de seus leitores ainda continuam por aqui. Nem que seja para ouvir um blues em sua homenagem.
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