quarta-feira, 6 de maio de 2020

Sentimento - Mahmundi

Percepções e sensações do clipe musical Sentimento, música de Marcela Vale e Lux Ferreira. Direção: Pablo Monaquezi. Intérprete: Mahmundi.



          A cantora Mahmudi dá um tom melancólico à sua voz na interpretação da música Sentimento. Seu canto, um lamento nostálgico, e até pesaroso, projeta no ouvinte a imagem sensitiva de alguém que sofre por um amor ausente, distante, mas que ainda persiste a esperança de um possível reencontro onde se revelará o estado permanente dos seus sentimentos, manifestos tacitamente na segunda estrofe: “Guardo tanto tempo em mim / tudo só pra te mostrar / que vai valer a pena de verdade”.

           As artimanhas do amor que o tornam infindável e imutável, eternizam a tristeza e singularizam o seu expressar em modulação de pesar e de sofrimento. 

          As imagens do videoclipe, produzidas com pouca iluminação e quase imobilidade corporal, porém realçando a expressão facial, dão ao corpo um destaque sombrio, harmonizando o lirismo poético da letra da canção com o eu lírico, e revelando o ambiente obscuro e a condição de imobilidade de quem se torna prisioneiro da solidão. A ausência de cor e de luz reflete o estado de espírito de alguém acometido do mal do amor unilateral, sem correspondência, intransitivo e infinito, mergulhado no tenebroso poço da solidão.

           O corpo molhado da chuva nos remete ao poema “Solidão”, do poeta alemão Rainer Maria Rilke: “A solidão é como uma chuva / Ergue-se do mar ao encontro das noites”. Assim, as gotículas de água retidas no corpo como a transpirar ausências, unem-se e escorrem pelo braço como a esvair-se da alma, formando poças rebeldes e “então, a solidão vai com os rios” formar o mar difícil do amor, como diz o primeiro verso da canção: “O amor é um mar difícil”

Ditado chinês

Eu estava com fome e pedi um peixe aos transeuntes. Deram-me um ditado chinês como consolo: me ensinaram a pescar. Só que não me deram a vara, a isca e nem a paciência do pescador. Ademais, os rios estavam poluídos e era época de defeso no mar. Só não morri de fome porque um hippie que nada sabia de ditado chinês dividiu comigo o seu hambúrguer.

terça-feira, 7 de abril de 2020

No Paiaiá é assim: escreveu, não leu, é analfabeto

- Estamos aqui no Paiaiá entrevistando o senhor Teodulo e...
- Olha o acento por favor!
- Obrigado, mas prefiro ficar em pé.
- Falo do acento no meu nome, o circunflex.
- Está bem. Estamos aqui falando com seu Teôdulo e...
- O circunflex, seu burro! Teódulo.
- Ah! Mas aí é agudo!
- Não tem Gudo nenhum! É Teódulo!
- Eu sei, mas o acento...
- Taí, pode se sentar.
- Não, do seu nome.
- O circunflex? Ah! Não sou carro, mas tenho o circunflex.
- Não entendi.
- Você é burro mesmo! Carro circunflex, que usa álcool ou gasolina.
- Ah! Flex.
- Circunflex. O meu é circunflex porque usa gás também.
- Tri fuel!
- O que é isso?
- O seu carro.
- Não. O meu é Volks.
- Falo do motor.
- O que é que tem o motor?
- É tri fuel. 
- Você veio aqui pra me entrevistar ou pra botar defeito no meu carro?! Vou chamar meu compadre Asclepíades para lhe ensinar a respeitar o carro dos outros.
- Quem?
- Asclepíades, irmão do advogado famoso chamado Tonho do Paiaiá.
- Precisa não,seu Teodulo, já...
- Teódulo, olha o circunflex! Você já está me irritando!
- Desculpe, já estou indo embora.
- Mas a entrevista?
- Vou procurar outra pessoa que tenha nome de gente, com ou sem circunflex. Passar bem!







segunda-feira, 30 de março de 2020

Carpe diem quia tempus fugit

(Ou: Abril vem aí)

Aproveite o dia enquanto os seus olhos batem. Haverá um dia que você acordará e verá que não mais respira. Não o oxigênio tão raro em Marte, mas a liberdade que nos foge feito fumaça entre os dedos. Haverá uma manhã que você verá o sol nascer quadrado por um pronunciar de palavras rebeldes que abandonarão seus lábios em busca de ecos para abafar o seu grito torturado. E dará graças ao Divino por ainda saber que em algum lugar o sol resiste. Foi assim no passado que martela sua memória volátil e não pense em encontrar um futuro dessemelhante. A diferença é que, hoje, você está tecendo a corda que irá apertar o seu próprio pescoço.

domingo, 29 de março de 2020

CANTO DO POVO DE UM LUGAR

Uma homenagem aos caboclos da minha terra, em especial a Luiz Eudes, Barrabaz Thrasher, Jorge França e Arizio Torres, com o carinho de sempre.


A borboleta abre as asas em longo voo solitário e pousa no alto do Cruzeiro dos Montes onde assiste ao mais belo e melancólico pôr-do-sol sobre a Terra. O céu cede lentamente o seu brilhante e suave azul-anil à vermelhidão do crepúsculo e todo o horizonte se tinge de carmim até o instante em que a escuridão silenciosa abraça o Infinito e liberta os fantasmas prisioneiros do imaginário popular.

Pirilampos solidários emprestam suas lanternas faiscantes aos andarilhos errantes e fachos tremeluzentes misturam-se ao brilho cintilante das estrelas, diluindo a solidez do breu noturno, aprisionando os zumbis desgarrados de suas falanges e que teimam em atormentar a existência dos viventes notívagos, sugando sua alma pelos ouvidos e devolvendo-a a cada amanhecer, dizem os mais velhos fazendo o sinal da cruz.

Assim, não apenas nasce um novo dia, como também se renova o espírito de um povo que não conhece e nem faz distinção entre as quatro estações, mas que sabe do início da Primavera pelo pouso melancólico da borboleta no Cruzeiro dos Montes.

E então o vaqueiro errante mergulha nas águas ermas das noites de setembro e traz à tona a sua alma inebriada nos vapores trágicos da paixão e a triste constatação de que a roda do Tempo é acionada pela energia dos sentimentos e que o futuro é um mero conceito diluído na presença da mulher amada; sem ela, a Primavera é apenas o prenúncio do Verão e das grandes catástrofes que atormentam e destroem a alma humana.

E a Primavera do sertanejo começa, inexoravelmente, em uma noite de setembro quando as primeiras gotas de orvalho caem sobre o tapete de folhas mortas forrando o caminho em direção do coração de uma mulher.


sexta-feira, 27 de março de 2020

NA NOITE QUE NÃO MORRI

Na noite que não morri
Acendi uma vela para São Luiz,
Outra para São Pedro e São João
E também São Cosme e Damião.
Outra para São Carlos e São Benedito,
E mais uma para Santo Expedito;
E outras e outras e outras e tantas
Para todos os anjos, santos e santas.
Não sei quantas velas acesas,
Queimando em cima da mesa,
Tantos fósforos queimados
(Diria meu pai: dinheiro rasgado!).
Foram feitos pedidos tantos,
Que preferiram todos os santos
Me chamar a confabular no Céu
Antes que se criasse um escarcéu.
Então descobri peremptoriamente
Que morri numa noite, e justamente,
quando jurava que não morri.

domingo, 8 de março de 2020

Eva ou Raimunda?


Mulheres da minha vida, feliz dia das mulheres! Feliz dia de protestos nas ruas e soltem o grito preso na garganta. Libertem a graciosa e delicada beleza sem medo de serem felizes. Minha homenagem na voz da doce e bela amiga Ana Cristina.
Eva ou Raimunda?

Às vezes se sentem lindas
Às vezes se sentem um trapo
Às vezes se sentem desejadas
Às vezes desejam
Às vezes rejeitam
Muitas "às vezes"
Muitas em uma
Mas querem os horizontes inimagináveis
A sinceridade? Sei bem que alguns não gostam da verdade,
não falo isso para te magoar,
o fato é que não gosto de enganar.
Não quero que as pessoas me detestem
Mas quero pelo menos que elas prestem
Atenção naquilo que as tornam de mais ou não.
Só quero o teu desejo encostadinho assim no meu
Que todos os desejos se confundam meus e teus
Pra gente embarcar nessa paixão.


ão.

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Arrependei-vos, Jesus está chegando!

O porteiro do cafofo onde habito me interfonou e disse que Jesus viria me visitar na parte da tarde, que eu o aguardasse de espírito acolhedor. Não só acolhi meu espírito, mas também comprei velas, incenso, pão para distribuir com os pobres, e até fiz doação para o criança esperança. Comprei um galo para cantar de madrugada, mas me disseram que um galo sozinho não tece a manhã cristã. Fiz uma relação dos meus pecados que pediria para serem perdoados ou transformados em penas alternativas e, de lambuja, um adesivo colorido para colocar no meu Camaro conversível com os dizeres: "Presente de Deus". Também preparei uma buchada de bode legítimo, do sertão de Uauá, que é um lugar mais seco que a Palestina. Ele devia gostar dessas comidas exóticas.

O tempo passou, passou, passou e... nada! E eu com fome, querendo comer, e os beatos que fizeram fila na minha porta diziam que seria heresia comer antes d'Ele. Tenha paciência, espere mais um pouco, diziam.

Lá pras tantas a campainha tocou. Aleluia! Era Ele. Só podia ser Ele. Corri para o abraço. Ele recuou uns passos, temeroso. Com razão, depois daquela facada, todo cuidado é pouco. Ele enfeitou seu rosto com o mais lindo sorriso e me entregou um santinho de político. Era Jesus, o borracheiro do bairro, pedindo voto para Renan Calheiros e Collor de Mello.

A minha loucura de todos os dias

Um dia a minha mãe me perguntou:

- Meu filho, quando é que você vai criar juízo?

Olhei para ela com todo o respeito que um filho deve ter à mãe e respondi:

- Minha mãe, se um dia a senhora me vir com juízo, pode me internar que eu estou doido!

Fábula-enredo por uma democracia em farrapos

Cinderela perdeu seu lindo sapatinho de cristal-néon na fuga para a carruagem inglesa em formato de abóbora. No dia seguinte, que em inglês se diz "day after", o gari do palácio o encontrou (ou como se diz na minha terra "encontrou ele") perto da escada e o entregou ao seu chefe imediato. Imediatamente o chefe imediato o passou ao encarregado que se encarregou de fazer um relatório à supervisora. Esta, tremenda puxa-saco real, entregou o sapatinho ao príncipe encantado dizendo que ela havia achado embaixo da escada do palácio e que devia ser de alguma princesa bêbada e irresponsável, pois só uma maluca calçaria sapato de cristal para ir a um baile de carnaval. O príncipe encantado ficou encantado com o brilho da luz néon e deu de presente à sua avó, mãe da rainha, que havia perdido uma perna em acidente da carruagem real. A avó real, por causa do forte cheiro de chulé não real, mandou lavar o sapatinho de cristal-néon. A criada real assustou-se quando a água causou um curto no circuito da luz néon e deixou o sapato cair, fazendo um estrondo de estilhaços de cristais. Então a avó real pegou a sua bengala real de ouro com madrepérolas no cabo e quebrou na cabeça da criada desastrada, causando um sulco entre a fronte e a nuca.
Moral da história: seremos milhões de criadas com a cabeça partida se não cuidarmos do sapatinho de cristal chamado DEMOCRACIA.

sexta-feira, 12 de julho de 2019

O quadrado dos catetos matrimoniais


A minha prima ia se casar com um cara imbecil. Não, imbecil é pouco: uma besta ao cubo. Ou melhor dizendo: um imbecil que se orgulhava de ser uma besta ao cubo. Isso me tornaria primo por osmose de um imbecil que se orgulhava de ser uma besta ao cubo.

Um dia essa minha prima acordou azoretada porque descobriu que as minhocas que ela cultivava no quintal possuíam mais cérebro do que aquele que ela teria que jurar amor e fidelidade até a morte os separar. E se a morte tardasse a chegar? Chorou horrores e sentiu comiseração de si mesma. O tiro de misericórdia aconteceu quando ela pesquisava no Google e descobriu que ele fazia parte do MBL.

- Tudo, menos isso! Em filhinha que mamãe beijou, coxinha não põe a sua mão de anta! – confidenciou à sua melhor amiga, decidida a pôr um ponto final no namoro.
Quando ela me ligou para me avisar do fim do romance, confesso que dei pulos de alegria. Não teria mais um primo imbecil que se orgulhava de ser uma besta ao cubo e ainda por cima fã de carteirinha de Kim Kataguiri. E então eu disse a ele, como consolo:
- A minha prima foi quem perdeu a oportunidade de ter um marido com um QI igual ao QI de um vagão de trem!

Por ser uma besta quadrada, me agradeceu emocionado e me convidou para irmos ao boteco da esquina. Como não bebo, usei essa desculpa para declinar de sua companhia. Depois do resultado da eleição presidencial no ano passado, sou levado a crer que a burrice é por demais contagiosa.

quarta-feira, 12 de junho de 2019

Dia dos namorados modernoso

Dia dos namorados modernoso
- Noooossa, amiga! Arrasou! Pra onde você vai assim tão chiquérrima?
- Para um motel. Afinal, hoje é dia dos namorados.
- Quem é o sortudo? Nem me apresentou!
- Está aqui na bolsa. É o vibrador!

domingo, 9 de junho de 2019

Quem é você na fila do pão?

Mônica Cordeiro.

Na onda do “disk food”, a qualquer hora, de todos os preços e para todos os gostos, prefiro uma padaria. Padaria é uma espécie de templo sagrado do alimento, aqui no interior de Minas. Você se vê num paraíso e cai de joelhos. Tem rosca rainha soberana pra servir, pão sovado com açúcar, pão de mel, pão de queijo, bolo caçarola, de aipim, de cenoura e o mais cotado, pãozinho francês. 

Na fila estava, à espera do atendimento quando, de repente, entra uma figura inusitada, conhecida na cidade pelos exageros estéticos (desde a roupa até o botox), e vai direto ao encontro de uma pessoa que estava também aguardando o atendimento e ralha:

- Quem é você na fila do pão, garota cibernética? Se enxerga! Pra cima de mim não porque nem sou trepadeira. Descola da minha retina, cajuru desbotado! Tem amor à vida não? Lambisgoia. Vem que vou te triturar no mixer. Pensa que todo mundo é poste, sua barata com inseticida estragado, sinto o cheiro de longe, dar energia não é pra qualquer um. Urubu urbano com pé de pomba.

Foi engraçado. A criatividade ali era mato. Olhei para ela como quem esperasse o próximo passo. Parecia não ter fim aquele vocabulário inusitado. Mas ela foi mais longe, descreveu a fila do pão, literalmente:

- Diz aí aprendiz de super poderosa, hamster de laboratório insana, troglodita de asfalto quente, eu rodo as Havaianas sem nenhum pudor, filha. Responde logo, salafrária, quem é você na fila do pão:
* A mãe apressada com o filho encapetado que cutuca todo cliente e derruba os produtos no chão, além de enfiar as mãos no reservatório e ficar testando qual o francês mais torradinho de casca?
*As fofoqueiras que ficam contando histórias do trabalho na padaria enquanto esperam, esperam? Uma vai pra comprar e a outra pra pular corda com a língua;
*Tu tá com cara de idiota apressada que vê a fila grande espertinha pergunta: você está na fila? - Não florzinha! Estou um fila. Daqui a pouco te avanço. Dá vontade de responder.
*Tu é a última apressada, xingando de tudo enquanto é nome, a primeira que bate-papo com a atendente e volta lá no fundo pra pegar o bolo que esqueceu?
*Tá com cara mesmo é daquela que esqueceu o dinheiro em casa e pede pra anotar, e não volta nunca mais, piriguete!
*Bem certo que também é aquela que diz que vai esperar a próxima fornada só pra ver o padeiro “queimar à rosca”;
* A doninha linda do cabelo branco aveludado, tão terna e macia quanto a broa de canjica tu não vai ser nunca! 
* Bem, o policial militar que fila o café pra fazer segurança seria uma boa pedida pra você.

A figura estava possessa, a fila inerte até que, depois de um minuto de silêncio ela vira pra moça e diz: Quer saber filhote de cruz credo, você não é ninguém na fila do pão. Aliás, na fila do pão todo mundo é igual. Não vou perder tempo com pão com margarina querendo ser pão com manteiga. Tu vai pagar bichinha! E nem vou precisar cobrar. Santinha do pau oco. Sonho fake de padaria. 

E saiu como quem tivesse se libertado de um peso ao dizer tudo aquilo. Óculos escuro na face, bolsa do lado, salto alto e um desfile de elegância na padaria embalada pelo cheiro inconfundível de pão assado. Na fila, o zum zum zum dava tom e um cliente alertou quando a vítima saiu, engomada:

- Viu o que acontece quando mexe em gaveta alheia? Calçou a meia, vestiu a cueca e camisa e dormiu na cama quente que é lugar pra chorar depois dessa. Ela chegou de surpresa da viagem ao Chile e deu de cara com essa zinha aí na sua cama. Até foi delicada nos nomes rogados. Pior mesmo foi o marido, ontem a polícia foi chamada para prestar socorro e hoje na capa do correio da cidade: mulher tenta arrancar órgão reprodutor masculino do marido com os dentes. Adivinha quem foi?

A maioria ficou perplexa com a notícia até que um desavisado  atrás da fila gritou:

- Já saiu o biscoito de polvilho?

E a fila andou.

Mônica Cordeiro é escritora mineira e sua graça e beleza literárias podem ser encontradas no link abaixo:

https://www.recantodasletras.com.br/autores/monicacordeiro

Sócrates no Oráculo de Apolo


Dizem que certa vez Sócrates foi consultar a cartomante do Oráculo de Apolo e, chegando lá, a cartomante perguntou:
- O que Sócrates sabe?
- Se eu soubesse de alguma coisa não teria vindo aqui! - respondeu rispidamente.
- Sócrates não sabe de nada porque não vai a uma barbearia. Se fosse, sabia de tudo e mais alguma coisa.

quarta-feira, 15 de maio de 2019

InterRompidos

Poema em parceria com a poetisa mineira Mônica Cordeiro, que não viveu esses tempos de dor, mas conhece a História do Brasil. Obrigado, Mônica!

 


Na vivência da ternura utópica 
Acalorados sonhos e ideais indefinidos.
Quimeras de pétalas de rosas 
Ao vento...
Um estímulo:
Às lavas dos sentidos.

Ao Norte,
clarões de chumbo abreviando a vida.
Ao Sul, 
porões obscuros e choros incontritos.
Ao Centro, 
mãos metafóricas arrancando o grito,
de pálidos rostos e corações aflitos:
- Liberdade!

Nas pontas de lâminas de aço
Vozes sufocadas
Ressurgiram tenazes
Num grito contra a ditadura.
Na multidão,
cerrando os punhos,
Bradando a liberdade 
sem perder sua ternura, ela...

- Hola, mi comandante! - disseste em serena delicadeza.
Abraçou-o ternamente, beijou seus lábios, sorriu.
Ensarilhou ele, as armas naquele infinito instante...
Entre gás de choro, gritos de guerra e dor, ela sumiu.
...

No ardor da batalha travada
Entre bombas e dentes caninos
Foi arrastada para o porão.
Não sentia os braços nem pernas.
Mãos deslizavam nas costas
Delineando as curvas do corpo trêmulo
Os calos arranhavam de modo conjunto
Em toques grosseiros, à força
A resistência era fruto do imaginário
Pois o corpo estava exangue.
Padecia no purgatório entre armas.
Os calibres formavam molduras
Lado a lado empilhados.
Numa sala escura, gotas de água gelada,
Homens de calças arriadas
E sangue!

Corpos violados sob o comando de vozes arbitrárias 
Um sussurro disfarçado 
E o ódio era o bálsamo derramado
Nas entranhas, de forma brutal,
Em movimentos de vai e vem
Sobrepostos por movimentos de entrada e saída.

O suor na pele,
Saliva e cuspe lançados na face,
O olhar de dominação.

Os restos de dor espalhados
Em lágrimas discretas
Sem som...

Silêncio mortal
Na Comissão da Verdade.
Era chegado o fim de sua procura:
As fotos espalhadas em diversos ângulos...
O pau de arara...
A retirada do capuz como oferta de insegurança... 
A tortura, o estupro,
A morte como redenção.