quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

PRECE IRLANDESA



Da minha grande amiga Maria Helena Bandeira, do Rio de Janeiro, recebi esse trecho de uma lindíssima e antiga prece irlandesa por ocasião do meu primeiro aniversário. Reparto-a com os amigos leitores deste blog, gente que, em sua maioria, precisa da bênção da terra e da dádiva da chuva.




Que a benção da luz seja contigo
- a luz exterior e a luz interior.


Que a santa luz do sol brilhe sobre ti
e aqueça teu coração
até que ele resplandeça como um grande fogo de turfa
e assim o forasteiro possa vir e nele se aquecer,
como também o amigo.

Que a luz brilhe de dentro de teus olhos,
como candeia colocada na janela de uma casa,
oferecendo ao peregrino um refugio na tormenta.

E que a benção da chuva,
da chuva suave e boa,
seja contigo.

Que ela tombe sobre tua alma
para que as pequenas flores todas possam surgir
e derramar suavidade na brisa.

Que a benção das grandes chuvas seja contigo,
caindo em tua alma para lavá-la bem lavada,
nela deixando muitas poças reluzentes
onde o azul do céu possa brilhar
e, às vezes, uma estrela.

E que a benção da terra,
da grande terra redonda,
seja contigo.



segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Carta de apresentação

Sou Ronaldo Antonio por obra e graça de Maricas Coxeba, a escrivã do arraial do Junco, e do meu irmão mais velho, na época, jornalista do Jornal da Bahia, que um dia resolveu matar a saudade da roça e se arrepiou quando soube o meu nome:

- Mamãe, não tá vendo que Toninho não pode se chamar Tonho de Lisboa?! Isso é uma ofensa a qualquer cristão.

- Foi uma promessa que fiz, pra Santo Antonio de Lisboa, porque ele nasceu muito feio e fiquei com medo do seu pai fazer alguma maldade a ele pensando tratar-se de um monstro.

- Mas a senhora não sabe que é melhor ser feio com nome bonito do que bonito com nome feio?!

Dito isso, ganhou o caminho da cidade, o pequeno arraial do Junco, um amontoado de casas a desafiar a poeira, a seca e a solidão do sertão nordestino. Voltou quando a vermelhidão do crepúsculo cedia ao azeviche noturno. Trazia novidades:

- Conversei com Maricas Coxeba. Ela concordou em mudar o nome de Toninho. Tonho de Lisboa é coisa do passado. O nome dele agora é Antonio Ronaldo. “Antonio”, do seu santo, e “Ronaldo”, em homenagem a um grande amigo meu.

Maricas Coxeba, a escrivã, podia tudo. Ganhou esse nome por causa de um defeito na perna direita, que a deixava com o andar capenga, coxo. Achava-a ranzinza, implicante, metida a besta. Com o passar do tempo compreendi que era instinto de autodefesa. Vivia só, entre homens rudes, e a falta de companhia devia lhe consumir o espírito solitário. E a solitude da terra contagiava. As noites no arraial do Junco são tão silenciosas e melancólicas que até se ouve densamente as conversas dos fantasmas errantes que povoam a solidão noturna.

Ela teve a chance de me ferrar em duas oportunidades, porém não tomou nenhuma atitude hostil. Uma, foi quando descobriu dois sapinhos no leite que eu lhe entregava, mal o sol raiava, trazido da roça no lombo de um jegue. Era o truque de multiplicar o leite no tanque de Zeca Vieira, localizado no caminho entre a roça e a cidade. Em vez de contar para o meu pai, preferiu me pregar um sermão memorável, citando todos os preceitos morais, éticos, espirituais e religiosos que norteiam a vida do cidadão. Duas horas e meia de falatório. A outra, a qual lhe devo eterno agradecimento, foi ter me livrado do estigma de Tonho de Lisboa. Antonio Ronaldo, este sim, é que é nome!

Sendo Tonho de Lisboa de batismo e Antonio Ronaldo de registro, não senti nada mudar. Afora a professora Serafina que me chamava de Antonio, o resto da população me chamava de Toninho. Um ano depois nos mudamos para Alagoinhas e as professoras preferiram me chamar pelo sobrenome Torres. Os novos colegas acompanharam as mestras. Quando concluí o quinto ano primário, foi preciso me inscrever pro exame de admissão ao ginásio, uma espécie de vestibular de acesso ao ensino ginasial. Tive uma surpresa na hora de anexar a certidão de nascimento aos documentos exigidos: Antonio Ronaldo era mera fantasia.

A partir de então passei a existir, oficialmente, com o mesmo nome que trago até hoje. Nascido em 21 de fevereiro de 1956, sob o signo de Peixes, fui registrado em 21 de janeiro do mesmo ano, sob a regência de Aquário. Antes de ser, eu já existia. Sobrou a vantagem de poder escolher o signo de Aquário quando a maré não estiver pra Peixes. Ou vice-versa.

Em 1977, quando precisei do batistério pra me casar, tinha Ronaldo Antonio por nome oficial e Tonho de Lisboa por de batismo. A Igreja relutava em aceitar as minhas alegações da troca de nome. “Você é um meliante, um falsário, um transgressor das Leis e merece ser preso por falsidade ideológica”, me disse um bispo de Salvador. No meu caso, não valia a máxima: “Quem não tem a quem reclamar, reclama ao bispo”. Recorri ao padre Machado - que não cortava pau, porém estava na iminência de quebrar um grande galho - na paróquia do Rio Vermelho, companheiro de copo nas farras homéricas no bar de Diolino, que, depois de duas talagadas da batida de tamarindo mais famosa da Bahia, mandou o bispo às favas, ignorou os severos regulamentos eclesiais e autorizou a minha entrada na igreja de Nossa Senhora Santana de terno e gravata, protagonizando o cortejo nupcial. Tinha pressa. Muita pressa. A protuberância do ventre da noiva aumentava em proporcionalidade direta ao tempo e o meu sogro ameaçava desengavetar o trabuco, a bem da honra e dos bons costumes.

Por castigo divino, o meu amigo Machado se apaixonou por uma beata, abandonou a batina, a cachaça, os amigos de farra, amarrou a trouxa e foi morar com ela. Perderam: os fiéis, um padre bom de missa; perderam: os bêbados errantes, seu padre confessor. Anos depois, deprimido pela falta do vinho canônico e do bate-papo mesclado a fumo e a álcool das noites boêmias do Rio Vermelho, o meu amigo não resistiu à pressão interna da psicopatologia e se enforcou. Não deixou testamento nem carta de despedida, porém houve muita cachaça no seu velório.

“Seria essa a sua última vontade”, nos disse, entre soluços, a viúva. Alguém se lembrou de erguer um brinde fúnebre ao ausente Kléber, morto um mês antes. Não seguiu o exemplo do ex-padre, contudo bebia feito um condenado. Morreu de cirrose hepática antes de completar os trinta anos. Lembrei-me da teoria do meu irmão, nos primórdios dos tempos. Talvez ele tivesse razão. Kléber era um sujeito feio, horrendo, todavia tinha um nome bonito. E por causa do seu nome ninguém dava importância à sua feiúra.

Intimamente agradeci a Maricas Coxeba e ao meu irmão. Sem a conspiração dos dois, quem seria eu afinal? Qual patrão daria emprego a um Tonho de Lisboa? Qual mulher dormiria, em sã consciência, com um Tonho de Lisboa? Que igreja daria guarida a um Tonho de Lisboa? Pedi silêncio aos presentes no velório para um breve discurso de despedida, a elegia final:

- Meus amigos, peço-lhes que façamos um brinde ao meu irmão mais velho e a Maricas Coxeba, a escrivã de minha terra. Devo a eles a dádiva de poder estar aqui, hoje, com vocês. Sem a intervenção dos dois, eu seria um suicida em potencial, provavelmente um morto-vivo. Ergamos os copos para o céu e digamos amém!

Ninguém entendeu nada do que falei, mas brindaram assim mesmo. Quando estamos diante de um morto, estar vivo é um bom motivo para se comemorar.

domingo, 11 de janeiro de 2009

AS TRAÇAS DA BIBLIOTECA ANTONIO TORRES


Uma das grandes obras do governo Robério foi a criação da Biblioteca Pública Antonio Torres, um sonho do grande amigo e primo Luiz Eudes. Cidade pobre, sem muita opção de lazer ou de leitura, a biblioteca era um caminho para se tirar as crianças, os jovens e adultos da ociosidade mental. Hoje, até nas cidades bem situadas economicamente, há diversas bibliotecas de acesso gratuito ao público, inclusive em entidades privadas. E as salas de leitura ficam cheias de estudantes, pesquisadores e até mesmo de simples leitores. Devo lembrar que uma das obras que imortalizaram Ptolomeu II, foi justamente a construção de uma biblioteca, a de Alexandria, no século III, AC.


Robério não teve a pretensão de Ptolomeu II, mas, certamente, sentiu o orgulho dos antigos egípcios. Era um inovador. Um pioneiro na construção de um bem abstrato e que de concreto só lhe renderia elogios. Lembro-me da solicitude de dona Nice, a primeira-dama, que respondia pela Biblioteca, me mostrando o acervo e fazendo questão que eu visse todos os livros doados, inclusive a obra completa do escritor da terra, Antonio Torres. Mostrou também a organização da sala de leitura, onde vários estudantes da região liam ou faziam pesquisas. O seu orgulho era visível, escancarado.


Já se disse muito a respeito do livro, mas não se disse tudo. O benefício que a leitura de um livro traz ao leitor é imensurável, incalculável, mas, infelizmente, não são palpáveis como numa boa transação comercial e por isso alguns governantes ignaros, adeptos do atraso intelectual do povo, fazem nada no sentido de levar a luz do conhecimento à sua juventude sedenta do saber.


Quanto mais ignorante o povo, mais os corruptos se locupletam. A leitura instrui, abre a mente, incita o leitor a pensar. E a questionar. Mas o lampejo visionário que teve o prefeito Robério, parece que feneceu na mesquinharia do poder pelo poder. O acervo da biblioteca se esvaiu, os livros foram surrupiados ladinamente, e até mesmo os do escritor-patrono, Antonio Torres, sumiram das prateleiras. Roubaram o direito da leitura das crianças, dos jovens e adultos e todo mundo fica calado, como se nada acontecesse ou que se fosse normal doações feitas pela benevolência alheia, conhecida ou não, parar em mãos inescrupulosas e escrotas que, pela sua ignorância dissimulada e mesquinharia escancarada, deve usar os livros apenas como papel higiênico.


Se Robério teve a magnanimidade dos grandes administradores, pequena se fez a administração carangueja ao permitir que o patrimônio público fosse devorado pelas traças humanas ou que escoasse pelo ralo da incompetência gerencial. Cadê o Ministério Público que não viu isso? Afinal ele existe, também, para fiscalizar a lisura e competência administrativa das prefeituras, pois a inabilidade no trato da coisa pública, traz incalculáveis prejuízos à população. Quando escrevi o livro “arraial do Junco”, em 2004, havia no acervo cinco mil livros. Hoje, passados cinco anos, há pouco mais de mil livros. Onde foi parar o restante, inclusive as doações feitas ao longo desses anos?


Vamos torcer (e cobrar) para que Joaquim Neto dê especial atenção à Biblioteca, promovendo concurso público para bibliotecário, conforme manda a Lei. Quem tem que cuidar do patrimônio público são funcionários qualificados na função em caráter permanente e estável, imunes ao troca-troca de prefeitos e a pressões políticas, e que possam ser responsabilizados na falta de zelo ou omissão.



quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

O NATAL E OS PARQUES DE DIVERSÕES




Gosto dos festejos natalinos mais pelas lembranças que me trazem do que propriamente pelo evento embutido. Mesmo porque Jota Cristo não nasceu nessa data. A Igreja mercenária pegou carona na saturnália e brunária, as festas pagãs comemoradas em dezembro em homenagem ao deus Sol, e instituiu a Natividade nessa data, em tentativa de purificar alguns costumes pagãos que rolavam com maior intensidade nesses dias, tendo o seu auge justamente no dia 25, quando funcionava o “liberou geral” para cachaça e orgia. Um mil e quinhentos anos depois do decreto papal transformar o vinho em água, tudo que conseguiu foi enriquecer os comerciantes. A saturnália e a brunária seguem rolando soltas.

Apesar da invencionice cristã e da consternação do tema musical, não deixa de ser dezembro um mês em que ensarilhamos o nosso espírito e nos tornamos mais alegres e mais humanos. Em que pese haver gente questionando a brevidade da nossa solidariedade fraterna, ao menos uma vez ao ano é melhor do que vez nenhuma. Até os rigores da Lei abrandam nessa época, quando prevêem o indulto de Natal aos excluídos do convívio social.

Na minha curta infância no arraial do Junco não havia jingle bells nem papai-noel. O pinheiro de natal era um mandacaru e as pessoas se confraternizavam doando presentes para o leilão da igreja e arrematando outros, para ajudar na festa da Padroeira, que aconteceria um mês depois. Eu gostava porque havia o parque de diversão e a atração dos seus brinquedos, uma novidade naquele fim de mundo. Anos depois meu deslumbramento se deu com o tamanho da roda gigante e com o trem fantasma, em Alagoinhas. O parque era imenso e no ano seguinte trouxe mais novidade: montanha-russa. Os moradores se confraternizavam ao redor dos brinquedos ou das barracas armadas ao longo do parque.

Formiga de asa passa o tempo todo sem ninguém saber que ela existe. Quando chove, vira praga. Assim são os parques de diversão. Durante todo o ano a gente não vê um; quando chega dezembro, não há cidade que não tenha o seu. Onde será que eles ficam recolhidos durante todo o ano? E o que mais me impressiona é quer seja o daqui, o de Salvador, o de Alagoinhas ou o do arraial do Junco, todos têm a mesma mulher-macaco de nome Monga. Impressionante.
Parque que se prezava tinha seu serviço de alto-falante funcionando a todo vapor, tocando os últimos sucessos de Roberto Carlos e praticando serviço de utilidade pública, como chamar os pais de crianças perdidas. Hoje está tudo mudado: o sucesso da vez é a Banda Calypso, aquela cuja cantora soluça mais do que canta, e os pimpolhos perdidos carregam chips e podem ser localizados por satélite.

O locutor da rádio-alto-falante também fazia a vez de Cupido, ao dedicar a chamada “página musical” a alguma garota, a pedido d’algum casanova, geralmente a troco de cerveja. Lembro-me de um caso interessante, contado por um locutor de minhas relações. Por três vezes ele anunciou aos quatro ventos que sopravam no parque:

– Atenção dona Maria! Ouça essa páagina musical que quem manda é O. X.! – e colocava na agulha Lindomar Castilho cantando “Você é doida demais, doida, muito doida, você é doida demais!” No quarto pedido, a curiosidade bateu mais forte:

– Quem é O. X.? – perguntou o locutor.
– O. X. sou eu, seu criado! – respondeu o paquerador.
– E o que significa O. X.?
– O. X. são as iniciais do meu nome: Ontonho Xofé.



sábado, 6 de dezembro de 2008

MINI-CONTO DE NATAL

De menino

Viera da roça, fugindo da seca e da precisão. Chegara na véspera do Natal e no dia seguinte crianças brincavam na rua, exibindo seus presentes: bolas de futebol, carros, bonecas, bicicletas. Ele observava todo o movimento de sua janela. Um garoto o viu e se aproximou:

– Oi! Sou Mário. Pegue seu presente e venha brincar conosco!

Ele desviou o olhar para o chão. Envergonhado, procurou a mãe.

– Mãe, quem é papai-noel que deu brinquedo a todos os meninos da rua e a mim não?

A mãe não soube responder. De onde vieram, papai-noel se chamava cesta básica e carro-pipa.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

CAMINHANDO SOB AS ESTRELAS


A Dulce e Célia; Armando e Nivaldo
Os dois casais de namorados se encontravam pontualmente às seis horas da noite na porta da igreja. Trocavam algumas palavras e seguiam passeando pela calçada em sentidos opostos e em passos ritmados, de modo que pudessem se encontrar na parte do fundo. Novamente outra parada para conversa a quatro e depois seguiam adiante, até novo encontro no ponto de partida.

As duas eram vizinhas de parede, amigas de infância e cúmplices na paixão aflorada. Recolhiam-se antes que o motor da luz silenciasse, mas continuavam a consumir querosene de candeeiro até os grilos cansarem de sua sinfonia. Seus pais, para a época, eram liberais, porém suas mães se esmeravam no zelo da honra e dos bons costumes: permitiam que elas namorassem além de seus olhos sob a condição de não ficarem paradas na calçada, em chamego de mulher perdida.

Os dois namorados se fizeram amigos nos encontros marcados ao longo da calçada. Um deles era forasteiro, vindo no volante da Petrobrás mudar o conceito econômico do lugar. O outro era nativo, lidava com afazeres agrícolas, e, apesar de passar a maior parte do seu tempo envolvido com a roça, possuía trejeitos citadinos e ares de sincera fidalguia.

Uma das moças era oriunda da roça, mas não deixava trespassar a timidez das mulheres da zona rural. No seu rol de amizades havia mais garotas da cidade e com elas aprendia a desenvoltura dos flertes. A outra moça era professora. No meio de tanta gente ignorante do saber ler, era tratada como um ser superior. Vestia-se elegantemente e nem mesmo para o trabalho abria mão de belos sapatos de salto alto. E eram eles, os sapatos, que marcavam a cadência dos passos na calçada. Às vezes, quando se detinha em delongas com o outro casal ou com outro ser passante e sua mãe não escutava o toc-toc harmônico do salto fino sobre o cimento, ela saía à porta e chamava a filha à responsabilidade. 

As caminhadas que esses casais deram em torno da igreja, se medidos milimetricamente, dariam a volta ao mundo e ainda sobrariam passos. Mas um dia a Petrobrás transferiu o seu motorista para outra cidade e o casamento teve que ser apressado. Depois de casados, se mudaram para muito longe e o outro casal também quis abreviar as caminhadas, trocando alianças aos pés do altar. Neste ínterim, a cidade ganhou luz elétrica vinda diretamente dos gigantescos geradores de Paulo Afonso, silenciando o velho motor a diesel do gerador. A sinfonia noturna do salto do sapato em passos cadenciados no compasso das quimeras, fora substituída pelo fade desarmônico da televisão e pelo diálogo encurtado de jovens apressados sem tempo de escutar o prelúdio das estrelas, visível e audível apenas para os corações apaixonados.




domingo, 30 de novembro de 2008

OS INSTANTES FINAIS DE NELO

Para Antonio Torres
Um grande escritor
Um grande irmão.



Meninos, eu conto!

No momento em que Nelo subiu no cadafalso não sentiu orgulho ou vaidade de sua proeza suicida. Nem pena, queixa ou comiseração por si mesmo. Sentiu apenas o fardo pesado da responsabilidade de não se arrepender quando o nó da corda apertasse, mortalmente, o seu pescoço. Não haveria tempo para retroceder. Antegozava a cara de espanto do seu irmão Totonhim, na manhã seguinte, quando viesse ao seu encontro. E a incredulidade que dominaria a cidade na hora do almoço. As notícias ruins têm asas, voam mais rápidas que o pensamento. E ninguém tem apetite com um cadáver à sua porta, esperando um convite para sentar à mesa. Seria lembrado e comentado por muitos verões.

Sua vida desfilou em flashes consecutivos e, no delírio da loucura, viu caixõesinhos azuis perpassando nas paredes em cortejo fúnebre de cachorro, e o lobo, atordoado, seguia os homens de pés redondos que viajavam de táxi para Viena D’Áustria, ouvindo Amadeus, ou não ouvindo ninguém, ou talvez, ouvindo o apelo das suas vísceras famintas, expostas ao calor inclemente da seca que torra o juízo, e da fome que torna o vivente civilizado em um dublê de canibal.

Na indignidade da vida, seria um morto digno, assim epigrafou a sua carta ao bispo de Alagoinhas, a qual arrazoou a sua atitude extrema, sua vindita fatal. Não queria perdão, réquiem, exéquias ou missa em dó maior. Enquanto vivo, foi explorado pela família, traído pelos amigos e incompreendido pelo irmão. Ninguém nunca lhe perguntou sobre a sua saúde, suas angústias, seu medo ou se precisava de alguma coisa, ao menos, uma palavra de carinho, um conforto, um gesto de solidariedade. Não. O mundo, esse imenso circo, é que lhe devia perdão.

Quando a balada da sua infância perdida ficou pronta, estava mais desnorteado que cego em tiroteio. Na selva de pedra a realidade era outra. O frio, a fome e a solidão eram companheiros constantes. Poderia fazer coro com Luiz Gonzaga e cantar “penei, mas aqui cheguei”, porém seus acordes eram agoniados e lamentosos, mais lembravam um cão uivando para a lua. Seu prólogo no Sul Maravilha foi cheio de sofrimento e exaustão física e mental. Seu prelúdio na vida sentimental foi um amontoado de erros e equívocos. Seu desfecho foi uma tragédia grega.

Haverá os que julgarão prematuro e irresponsável o seu último ato. Outros o chamarão de louco, principalmente aqueles que não mais irão chupar o seu sangue feito sanguessugas. Outros encontrarão motivos suficientes para encher a cara na bodega de Pedro Infante. Porém, nenhum indagará sobre os reais motivos que o levaram a brincar de Deus. Ou sabem e se calam, incomodados pela consciência desnuda, cada um carregando a própria culpa.

Quando Nelo retornou para essa terra, queria apenas ser o centro das desatenções. Achou que o tempo havia mudado o povo e seus interesses mesquinhos, os fuxicos, as fofocas, a ganância e a exploração dos que seguem caminho e conseguem melhorar de vida. Segundo Nego de Roseno, protagonista de uma acirrada disputa por um pé de feijão que levou Nelo a tomar destino do Sul Maravilha, os que fracassam nessa terra não têm hora nem vez no meio dessa gente. São relegados à escória, escorraçados do convívio social. São uns aproveitadores, uns abutres, que se dizem nobres, mas não passam de sequestradores, nobres sequestradores do suor alheio, cujo resgate só será pago no dia de São Nunca.

Tudo isso reviu Nelo, no tênue instante que separou o retesamento da corda e o fim dos seus estertores. E ainda teve tempo de ver a imagem de sua mãe passando a linha pelo buraco da agulha e do seu pai, na sombra do juazeiro, construindo seu caixão. Sem mágoa, angústia ou ressentimento, se despediu:

- Adeus, velho! Cuide bem de Minu, meu gato azul.


N. A. – Nelo é o personagem central do livro “Essa Terra”, e aqui neste conto está citada toda a obra do escritor Antonio Torres, que pode ser conferida em www.antoniotorres.com.br

sábado, 29 de novembro de 2008

CONTO DE NATAL

De Noel

É difícil dizer qual festa era a melhor em Alagoinhas: micareta, São João ou Natal, cada uma com sua peculiaridade, mas posso assegurar que o Natal era uma festa alegre, de participação popular e de muita animação.

O Clube dos Dirigentes Lojistas espalhava vários alto-falantes pelo circuito comercial e o povo era bombardeado ininterruptamente com mensagens e músicas natalinas. Quem ficava em casa, com o rádio ligado, sofria o mesmo bombardeio da emissora de rádio AM, única modalidade de radiodifusão de então; a freqüência modulada (FM) surgiu muitos anos depois.

Impossível não se envolver com o clima e o espírito natalino. Era uma afronta passar a véspera ou o dia do Natal sem provar da simplicidade da ceia dos parentes e amigos. Simples, porém farta. Bebidas a escolher. Comida a enjoar. Nada de nozes, panetone, castanha do Pará, iguarias que nada tinham a ver com a cultura e tradições da terra. Para azar do galináceo gigante, o peru era essencial.

O ápice da festa era o parque de diversões. Ocupando uma imensa área com seus brinquedos endiabrados, divertia mais do que o trio elétrico na micareta. Trem-fantasma, montanha-russa, autorama, roda-gigante, jogos eletrônicos, tiro ao alvo, caça ao pato e a bizarra Monga, a mulher-macaco, a surrealidade fantástica do jogo de espelho. Todo mundo sabia que era mentira, mas não ficava um valente sem correr quando Monga, uma gostosona em trajes sumários, se transformava em gorila e ameaçava abrir a jaula.

Do mesmo jeito assustador era o trem-fantasma. Mesmo sendo aconselhado a não descer do trenzinho sob qualquer circunstância por causa do trilho eletrizado, um infeliz não suportou o medo e pulou fora, na escuridão, vindo a morrer eletrocutado. Deixou um natal triste para a família e o parque com um brinquedo a menos, interditado pela polícia técnica.

Nessa época a urbe alagoinhense girava em torno dos cem mil habitantes. Desse total, metade ficava em casa recebendo os amigos e a outra metade se divertia no parque, normalmente os casais de namorados ou os solteiros em busca de acasalamento. Estes últimos preferiam sentar à mesa dos vários bares improvisados que circundavam os brinquedos. Paquera, bebidas e tira-gostos, pois ninguém era de ferro.

Eu ajudava um tio em um armazém de secos e molhados, um dos maiores da cidade, e, para compensar o tamanho da loja, ganhava um salário de fome. Ele dizia que se fosse para pagar mais, contratava um estranho. Isso me obrigava a fazer malabarismo com o salário, apenas o mínimo do necessário para ter sempre uma reserva para gastar com a namorada, principalmente em época de festa natalina. Além de pagar os bilhetes dos brinquedos da donzela, tinha também que bancar o pirralho do cunhado, o segurador de vela, o atrapalha-amasso. Não sei se era azar ou trabalho feito, mas toda namorada que arranjava tinha um irmão menor a nos acompanhar.

O Juizado de Menores marcava cerrado nas barracas de bebidas alcoólicas. Quando era flagrado menor de idade bebendo, a barraca era fechada e o dono levado para a Delegacia, onde passava a noite no xilindró. A reincidência valia prisão por mais dias e pesadas multas. Ao menor infrator nada acontecia a não ser o constrangimento de ter que sair da mesa sem pagar a conta.

Havia dois amigos maiores de idade: Luiz de Tenô, vindo do arraial do Junco, e Valdevino, companheiro de outros bares. Havia os menores: meu primo Paulo, meu irmão Décio e eu. A gente ia para o parque junto, exceto Valdevino, e, quando chegávamos lá, parávamos na barraca mais movimentada porque chamava menos a atenção para a presença de menor na turma. Barba e bigode despontando, Paulo e eu passávamos despercebidos, dava para enganar a torcida; Décio, o mais novo, bebia apenas refrigerante. Depois que a gente se instalava, fazia a festa: whisky, tira-gosto e cerveja. Muita cerveja. Às vezes juntava mais gente na nossa mesa e o dono alargava o sorriso, sem desconfiar que quase todo mundo estava abaixo da idade das responsabilidades. Queria vender; queria lucrar.

Por volta da meia-noite aparecia Valdevino, trajando um colete do Juizado de Menores. Policiais militares faziam sua segurança. Dirigia-se à nossa mesa, sem demonstrar a menor intimidade conosco. Pedia nossos documentos. Ameaçava prender o dono da barraca por vender bebida alcoólica à menor de idade. Mandava a gente ir embora sem pagar a conta nem olhar para trás. Obedecíamos como cordeirinhos. Antes de sairmos, na maior desfaçatez, aplicava um sermão em Luiz de Tenô, chamando-o de irresponsável e ameaçando prendê-lo também caso reincidisse na infração. No outro dia nos instalávamos em outra barraca e o processo se repetia, inclusive o sermão.

Essa farra durou por alguns natais, até uma noite que Valdevino não compareceu. Ficamos sem saber o que fazer, especulando motivos para a ausência do salvador da pátria. Esperamos até três horas da manhã, o parque foi esvaziando, a barraca também, e colocamos o plano B em operação. Retirada estratégica. Saía um de cada vez para não dar na vista; o último fingia que ia tirar água do joelho e se mandava no meio do povo. O dono da barraca desconfiou e segurou Luiz de Tenô, o último a ficar. Como a conta estava alta e ele com pouco dinheiro, penhorou sua corrente de prata e o relógio banhado a ouro.

No outro dia fizemos uma vaquinha e resgatamos os objetos do Luiz. Passamos na casa de Valdevino para saber do acontecido. Ele estava no hospital, com algumas costelas fraturadas. Segundo seu irmão, fora atropelado quando se dirigia ao parque e o motorista evadira-se do sinistro. Ninguém anotara a placa do carro. Coitado do Valdevino: passaria duas semanas internado, o que nos obrigou a bebermos a conta-gota, pois ainda havia dez dias de festa e diversão pela frente.

No Natal seguinte eu já morava em Salvador. Apesar de haver festa no Largo na Lapinha, parque de diversão em Água de Menino, e amigo comissário do Juizado de Menores, não foi mais possível aplicar o golpe. A cidade era outra, os amigos eram outros e o Tempo havia devorado a minha inocência.