sábado, 24 de janeiro de 2009

ESCRITORES DO ARRAIAL DO JUNCO

Hoje abro espaço para a poetisa Cristiana Alves, publicando dois poemas do seu livro “Coração a Esmo” (Editora Taba Cultural, Rio de Janeiro, 2007).


Cristiana Alves é graduada em Letras e pós-graduada em Estudos Literários, na UNEB de Alagoinhas. Atualmente é professora do Colégio Estadual Profº Edgard Santos, em Sátiro Dias.


E-mail: crisalvespoeta@yahoo.com.br




PORTO DO ADEUS





Estórias que se perderam

Quando na praia naufragou

Os versos do capitão

Que por uma sereia se apaixonou.

No céu as estrelas desmaiaram

E se lançaram sobre o mar;

Na terra as mulheres choraram

Com a Lua solitária

Que não podia fazer a noite estrelada

E pediam a luz do dia

Que não chegava,

Pois a dor se espalhara

E o Sol, do capitão, com saudade,

Numa nuvem chorara,

Enquanto no porto,

Solitário, o amor esperava.



NO PALCO DA VIDA





A vida é uma novela.

É um palco de teatro,

É um filme de cinema.

A novela real,

O teatro sofrível,

O cinema vivo.

Não é ficção,

Não é conto.

É a dura, e às vezes, divertida

Realidade.

É pena que não possamos

Rever as cenas ,

Cortar os erros

E tornar tudo perfeito.



quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

PRECE IRLANDESA



Da minha grande amiga Maria Helena Bandeira, do Rio de Janeiro, recebi esse trecho de uma lindíssima e antiga prece irlandesa por ocasião do meu primeiro aniversário. Reparto-a com os amigos leitores deste blog, gente que, em sua maioria, precisa da bênção da terra e da dádiva da chuva.




Que a benção da luz seja contigo
- a luz exterior e a luz interior.


Que a santa luz do sol brilhe sobre ti
e aqueça teu coração
até que ele resplandeça como um grande fogo de turfa
e assim o forasteiro possa vir e nele se aquecer,
como também o amigo.

Que a luz brilhe de dentro de teus olhos,
como candeia colocada na janela de uma casa,
oferecendo ao peregrino um refugio na tormenta.

E que a benção da chuva,
da chuva suave e boa,
seja contigo.

Que ela tombe sobre tua alma
para que as pequenas flores todas possam surgir
e derramar suavidade na brisa.

Que a benção das grandes chuvas seja contigo,
caindo em tua alma para lavá-la bem lavada,
nela deixando muitas poças reluzentes
onde o azul do céu possa brilhar
e, às vezes, uma estrela.

E que a benção da terra,
da grande terra redonda,
seja contigo.



segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Carta de apresentação

Sou Ronaldo Antonio por obra e graça de Maricas Coxeba, a escrivã do arraial do Junco, e do meu irmão mais velho, na época, jornalista do Jornal da Bahia, que um dia resolveu matar a saudade da roça e se arrepiou quando soube o meu nome:

- Mamãe, não tá vendo que Toninho não pode se chamar Tonho de Lisboa?! Isso é uma ofensa a qualquer cristão.

- Foi uma promessa que fiz, pra Santo Antonio de Lisboa, porque ele nasceu muito feio e fiquei com medo do seu pai fazer alguma maldade a ele pensando tratar-se de um monstro.

- Mas a senhora não sabe que é melhor ser feio com nome bonito do que bonito com nome feio?!

Dito isso, ganhou o caminho da cidade, o pequeno arraial do Junco, um amontoado de casas a desafiar a poeira, a seca e a solidão do sertão nordestino. Voltou quando a vermelhidão do crepúsculo cedia ao azeviche noturno. Trazia novidades:

- Conversei com Maricas Coxeba. Ela concordou em mudar o nome de Toninho. Tonho de Lisboa é coisa do passado. O nome dele agora é Antonio Ronaldo. “Antonio”, do seu santo, e “Ronaldo”, em homenagem a um grande amigo meu.

Maricas Coxeba, a escrivã, podia tudo. Ganhou esse nome por causa de um defeito na perna direita, que a deixava com o andar capenga, coxo. Achava-a ranzinza, implicante, metida a besta. Com o passar do tempo compreendi que era instinto de autodefesa. Vivia só, entre homens rudes, e a falta de companhia devia lhe consumir o espírito solitário. E a solitude da terra contagiava. As noites no arraial do Junco são tão silenciosas e melancólicas que até se ouve densamente as conversas dos fantasmas errantes que povoam a solidão noturna.

Ela teve a chance de me ferrar em duas oportunidades, porém não tomou nenhuma atitude hostil. Uma, foi quando descobriu dois sapinhos no leite que eu lhe entregava, mal o sol raiava, trazido da roça no lombo de um jegue. Era o truque de multiplicar o leite no tanque de Zeca Vieira, localizado no caminho entre a roça e a cidade. Em vez de contar para o meu pai, preferiu me pregar um sermão memorável, citando todos os preceitos morais, éticos, espirituais e religiosos que norteiam a vida do cidadão. Duas horas e meia de falatório. A outra, a qual lhe devo eterno agradecimento, foi ter me livrado do estigma de Tonho de Lisboa. Antonio Ronaldo, este sim, é que é nome!

Sendo Tonho de Lisboa de batismo e Antonio Ronaldo de registro, não senti nada mudar. Afora a professora Serafina que me chamava de Antonio, o resto da população me chamava de Toninho. Um ano depois nos mudamos para Alagoinhas e as professoras preferiram me chamar pelo sobrenome Torres. Os novos colegas acompanharam as mestras. Quando concluí o quinto ano primário, foi preciso me inscrever pro exame de admissão ao ginásio, uma espécie de vestibular de acesso ao ensino ginasial. Tive uma surpresa na hora de anexar a certidão de nascimento aos documentos exigidos: Antonio Ronaldo era mera fantasia.

A partir de então passei a existir, oficialmente, com o mesmo nome que trago até hoje. Nascido em 21 de fevereiro de 1956, sob o signo de Peixes, fui registrado em 21 de janeiro do mesmo ano, sob a regência de Aquário. Antes de ser, eu já existia. Sobrou a vantagem de poder escolher o signo de Aquário quando a maré não estiver pra Peixes. Ou vice-versa.

Em 1977, quando precisei do batistério pra me casar, tinha Ronaldo Antonio por nome oficial e Tonho de Lisboa por de batismo. A Igreja relutava em aceitar as minhas alegações da troca de nome. “Você é um meliante, um falsário, um transgressor das Leis e merece ser preso por falsidade ideológica”, me disse um bispo de Salvador. No meu caso, não valia a máxima: “Quem não tem a quem reclamar, reclama ao bispo”. Recorri ao padre Machado - que não cortava pau, porém estava na iminência de quebrar um grande galho - na paróquia do Rio Vermelho, companheiro de copo nas farras homéricas no bar de Diolino, que, depois de duas talagadas da batida de tamarindo mais famosa da Bahia, mandou o bispo às favas, ignorou os severos regulamentos eclesiais e autorizou a minha entrada na igreja de Nossa Senhora Santana de terno e gravata, protagonizando o cortejo nupcial. Tinha pressa. Muita pressa. A protuberância do ventre da noiva aumentava em proporcionalidade direta ao tempo e o meu sogro ameaçava desengavetar o trabuco, a bem da honra e dos bons costumes.

Por castigo divino, o meu amigo Machado se apaixonou por uma beata, abandonou a batina, a cachaça, os amigos de farra, amarrou a trouxa e foi morar com ela. Perderam: os fiéis, um padre bom de missa; perderam: os bêbados errantes, seu padre confessor. Anos depois, deprimido pela falta do vinho canônico e do bate-papo mesclado a fumo e a álcool das noites boêmias do Rio Vermelho, o meu amigo não resistiu à pressão interna da psicopatologia e se enforcou. Não deixou testamento nem carta de despedida, porém houve muita cachaça no seu velório.

“Seria essa a sua última vontade”, nos disse, entre soluços, a viúva. Alguém se lembrou de erguer um brinde fúnebre ao ausente Kléber, morto um mês antes. Não seguiu o exemplo do ex-padre, contudo bebia feito um condenado. Morreu de cirrose hepática antes de completar os trinta anos. Lembrei-me da teoria do meu irmão, nos primórdios dos tempos. Talvez ele tivesse razão. Kléber era um sujeito feio, horrendo, todavia tinha um nome bonito. E por causa do seu nome ninguém dava importância à sua feiúra.

Intimamente agradeci a Maricas Coxeba e ao meu irmão. Sem a conspiração dos dois, quem seria eu afinal? Qual patrão daria emprego a um Tonho de Lisboa? Qual mulher dormiria, em sã consciência, com um Tonho de Lisboa? Que igreja daria guarida a um Tonho de Lisboa? Pedi silêncio aos presentes no velório para um breve discurso de despedida, a elegia final:

- Meus amigos, peço-lhes que façamos um brinde ao meu irmão mais velho e a Maricas Coxeba, a escrivã de minha terra. Devo a eles a dádiva de poder estar aqui, hoje, com vocês. Sem a intervenção dos dois, eu seria um suicida em potencial, provavelmente um morto-vivo. Ergamos os copos para o céu e digamos amém!

Ninguém entendeu nada do que falei, mas brindaram assim mesmo. Quando estamos diante de um morto, estar vivo é um bom motivo para se comemorar.

domingo, 11 de janeiro de 2009

AS TRAÇAS DA BIBLIOTECA ANTONIO TORRES


Uma das grandes obras do governo Robério foi a criação da Biblioteca Pública Antonio Torres, um sonho do grande amigo e primo Luiz Eudes. Cidade pobre, sem muita opção de lazer ou de leitura, a biblioteca era um caminho para se tirar as crianças, os jovens e adultos da ociosidade mental. Hoje, até nas cidades bem situadas economicamente, há diversas bibliotecas de acesso gratuito ao público, inclusive em entidades privadas. E as salas de leitura ficam cheias de estudantes, pesquisadores e até mesmo de simples leitores. Devo lembrar que uma das obras que imortalizaram Ptolomeu II, foi justamente a construção de uma biblioteca, a de Alexandria, no século III, AC.


Robério não teve a pretensão de Ptolomeu II, mas, certamente, sentiu o orgulho dos antigos egípcios. Era um inovador. Um pioneiro na construção de um bem abstrato e que de concreto só lhe renderia elogios. Lembro-me da solicitude de dona Nice, a primeira-dama, que respondia pela Biblioteca, me mostrando o acervo e fazendo questão que eu visse todos os livros doados, inclusive a obra completa do escritor da terra, Antonio Torres. Mostrou também a organização da sala de leitura, onde vários estudantes da região liam ou faziam pesquisas. O seu orgulho era visível, escancarado.


Já se disse muito a respeito do livro, mas não se disse tudo. O benefício que a leitura de um livro traz ao leitor é imensurável, incalculável, mas, infelizmente, não são palpáveis como numa boa transação comercial e por isso alguns governantes ignaros, adeptos do atraso intelectual do povo, fazem nada no sentido de levar a luz do conhecimento à sua juventude sedenta do saber.


Quanto mais ignorante o povo, mais os corruptos se locupletam. A leitura instrui, abre a mente, incita o leitor a pensar. E a questionar. Mas o lampejo visionário que teve o prefeito Robério, parece que feneceu na mesquinharia do poder pelo poder. O acervo da biblioteca se esvaiu, os livros foram surrupiados ladinamente, e até mesmo os do escritor-patrono, Antonio Torres, sumiram das prateleiras. Roubaram o direito da leitura das crianças, dos jovens e adultos e todo mundo fica calado, como se nada acontecesse ou que se fosse normal doações feitas pela benevolência alheia, conhecida ou não, parar em mãos inescrupulosas e escrotas que, pela sua ignorância dissimulada e mesquinharia escancarada, deve usar os livros apenas como papel higiênico.


Se Robério teve a magnanimidade dos grandes administradores, pequena se fez a administração carangueja ao permitir que o patrimônio público fosse devorado pelas traças humanas ou que escoasse pelo ralo da incompetência gerencial. Cadê o Ministério Público que não viu isso? Afinal ele existe, também, para fiscalizar a lisura e competência administrativa das prefeituras, pois a inabilidade no trato da coisa pública, traz incalculáveis prejuízos à população. Quando escrevi o livro “arraial do Junco”, em 2004, havia no acervo cinco mil livros. Hoje, passados cinco anos, há pouco mais de mil livros. Onde foi parar o restante, inclusive as doações feitas ao longo desses anos?


Vamos torcer (e cobrar) para que Joaquim Neto dê especial atenção à Biblioteca, promovendo concurso público para bibliotecário, conforme manda a Lei. Quem tem que cuidar do patrimônio público são funcionários qualificados na função em caráter permanente e estável, imunes ao troca-troca de prefeitos e a pressões políticas, e que possam ser responsabilizados na falta de zelo ou omissão.



quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

O NATAL E OS PARQUES DE DIVERSÕES




Gosto dos festejos natalinos mais pelas lembranças que me trazem do que propriamente pelo evento embutido. Mesmo porque Jota Cristo não nasceu nessa data. A Igreja mercenária pegou carona na saturnália e brunária, as festas pagãs comemoradas em dezembro em homenagem ao deus Sol, e instituiu a Natividade nessa data, em tentativa de purificar alguns costumes pagãos que rolavam com maior intensidade nesses dias, tendo o seu auge justamente no dia 25, quando funcionava o “liberou geral” para cachaça e orgia. Um mil e quinhentos anos depois do decreto papal transformar o vinho em água, tudo que conseguiu foi enriquecer os comerciantes. A saturnália e a brunária seguem rolando soltas.

Apesar da invencionice cristã e da consternação do tema musical, não deixa de ser dezembro um mês em que ensarilhamos o nosso espírito e nos tornamos mais alegres e mais humanos. Em que pese haver gente questionando a brevidade da nossa solidariedade fraterna, ao menos uma vez ao ano é melhor do que vez nenhuma. Até os rigores da Lei abrandam nessa época, quando prevêem o indulto de Natal aos excluídos do convívio social.

Na minha curta infância no arraial do Junco não havia jingle bells nem papai-noel. O pinheiro de natal era um mandacaru e as pessoas se confraternizavam doando presentes para o leilão da igreja e arrematando outros, para ajudar na festa da Padroeira, que aconteceria um mês depois. Eu gostava porque havia o parque de diversão e a atração dos seus brinquedos, uma novidade naquele fim de mundo. Anos depois meu deslumbramento se deu com o tamanho da roda gigante e com o trem fantasma, em Alagoinhas. O parque era imenso e no ano seguinte trouxe mais novidade: montanha-russa. Os moradores se confraternizavam ao redor dos brinquedos ou das barracas armadas ao longo do parque.

Formiga de asa passa o tempo todo sem ninguém saber que ela existe. Quando chove, vira praga. Assim são os parques de diversão. Durante todo o ano a gente não vê um; quando chega dezembro, não há cidade que não tenha o seu. Onde será que eles ficam recolhidos durante todo o ano? E o que mais me impressiona é quer seja o daqui, o de Salvador, o de Alagoinhas ou o do arraial do Junco, todos têm a mesma mulher-macaco de nome Monga. Impressionante.
Parque que se prezava tinha seu serviço de alto-falante funcionando a todo vapor, tocando os últimos sucessos de Roberto Carlos e praticando serviço de utilidade pública, como chamar os pais de crianças perdidas. Hoje está tudo mudado: o sucesso da vez é a Banda Calypso, aquela cuja cantora soluça mais do que canta, e os pimpolhos perdidos carregam chips e podem ser localizados por satélite.

O locutor da rádio-alto-falante também fazia a vez de Cupido, ao dedicar a chamada “página musical” a alguma garota, a pedido d’algum casanova, geralmente a troco de cerveja. Lembro-me de um caso interessante, contado por um locutor de minhas relações. Por três vezes ele anunciou aos quatro ventos que sopravam no parque:

– Atenção dona Maria! Ouça essa páagina musical que quem manda é O. X.! – e colocava na agulha Lindomar Castilho cantando “Você é doida demais, doida, muito doida, você é doida demais!” No quarto pedido, a curiosidade bateu mais forte:

– Quem é O. X.? – perguntou o locutor.
– O. X. sou eu, seu criado! – respondeu o paquerador.
– E o que significa O. X.?
– O. X. são as iniciais do meu nome: Ontonho Xofé.