segunda-feira, 11 de maio de 2009

SEXO: SAGRADO OU PROFANO (final)


“Algumas mulheres do harém, quando apaixonadas entre elas, praticam nos respectivos “yones” (clitóris) os atos da boca, e alguns homens fazem o mesmo com as mulheres. A maneira de fazê-lo (isto é, beijar o “yone”) deve ser distinta do beijo na boca. Quando um homem e uma mulher se deitam em ordem inversa, ou seja, a cabeça de um lado dos pés do outro, e empenham-se nesse congresso, temos o congresso do corvo.”

À primeira vista, parece-nos uma narração banal de sexo entre as mulheres de algum harém ou que “o congresso do corvo” seja uma nova denominação para o sessenta e nove, o popular “meia-nove”. Ilusão de ótica. O texto acima é um versículo do Kama Sutra, ou o “Aforismo Sobre o Amor”, temática obrigatória no currículo dos cursos de Teologia hindu.

Apesar de a cunilíngua ser uma relação sexual condenada e proibida pelos brâmanes, por se tratar de prática dos eunucos e membros das castas inferiores, Vatsyayana, o compilador dos Kama Sutra, faz o seguinte comentário a respeito do sucesso do atual “meia-nove” entre as mulheres das castas superiores:

“Por tais práticas, as cortesãs abandonam homens possuidores de boas qualidades, liberais e inteligentes, e sentem-se atraídas por pessoas baixas, tais como, os servos e os tratadores de elefantes.”

Tal comentário passaria despercebido nessa época do pós-modernismo, em que pais ultramodernos oferecem suas camas para as filhas dormir com os namorados, se não fosse o responsável pela publicação um modesto estudante hindu de Religião e remontasse tal observação a quase dois mil anos atrás, época em que Mallinaga de Vatsyayana reuniu antigos textos, cujos autores os receberam diretamente dos deuses, e os condensou no livro “Os Kama Sutra”.

Na minha crônica anterior, discorri sobre o sexo no Velho Testamento: dos amores de Dalila que levaram Sansão ao esgotamento físico, das farras salomônicas de Salomão com a rainha de Sabá, e do estupro praticado por benjaministas contra uma jovem esposa de um levita, culminando em guerra sangrenta entre judeus. Há mais histórias de sexo bíblico de fazer corar qualquer sacristão, porém, hoje, vou me ater em outras religiões, onde, também, o sexo é tratado sem tabu nem preconceito, apenas como um segmento natural de perpetuação das espécies.

Assim conta a Lenda Hindu.

O deus mais popular do Hinduísmo é Krishna, a forma humana do deus Vishnu (chamado de “avatar”), que de vez em quando gostava de descer à Terra para fazer traquinagem. Tomando a forma de um pastor de ovelhas, espreitava as pastoras no banhar-se no rio, para cheirar suas peças íntimas. Galante e sedutor, as mulheres suspiravam por ele e à noite abandonavam o marido na cama e iam para a floresta, em busca das carícias de Krishna que, como um deus, se dividia em múltiplos avatares.

Apesar de ser um deus e de ter todas as mulheres aos seus pés, um dia Krishna se apaixonou por uma das suas amantes, de nome Rhadarani, abreviado “Rhada”, que abandonou o marido e foi viver um verdadeiro idílio amoroso com Krishna, na Floresta da Multidão. Quando eles se amavam, as estrelas dançavam, harpas tocavam, passarinhos cantavam e nasciam flores no lugar em que seus corpos rolavam. Metade da Índia ficou florida.

Mas até as paixões dos deuses um dia apagam o fogo e com o garanhão Krishna não poderia ser diferente. Em uma manhã de Primavera, cheia de flores por todos os lados, ele arrumou as malas e partiu sem olhar para trás. Casou-se com oito mulheres. Rhada voltou desconsolada para casa, para os braços do marido, que a aceitou de bom grado, porém ela sucumbiu à saudade das quatro mãos bobas do seu amante Krishna.
Morreu definhando das dores de amores, saudade letal do seu deus-amante.

Também aconteceu no Egito.

Osíris era um rei egípcio que governava com sapiência e justiça e por isso era muito querido pelo povo. Amava profundamente Isis, sua esposa, que a achava inteligente e sensual. Isis também amava Osíris com toda profundidade e sentimento que o coração de uma mulher pode amar um homem. Era um casal feliz.

Seth, irmão de Osíris, nutria uma inveja lúgubre pelo irmão e por isso planejou matá-lo. Mandou fazer uma arca com as medidas do irmão, ornada de ouro e pedras preciosas e numa festa em homenagem a Osíris, Seth pôs em prática o seu plano macabro: inventou que presentearia com a arca aquele cuja estatura coubesse na mesma. Os convidados aceitaram, testaram, porém a arca era muito maior do que eles. Quando Osíris fez o teste, Seth fechou a porta da arca, lacrou e a jogou no Rio Nilo. Depois espalhou a notícia de que Osíris havia desaparecido.

Ao saber do desaparecimento do seu esposo, Isis entrou em desespero. Rasgou as roupas e cobriu o rosto de lama. Depois, mais calma, vestiu luto e saiu à procura do seu amado pelo Egito, vindo a encontrar a arca muito tempo depois.

Em prantos, abriu a arca e se abraçou ao cadáver do marido. Arrastou- a até um pântano e a escondeu até encontrar uma maneira de ressuscitar Osíris. Seth descobriu o seu plano, ficou furioso, foi ao pântano e retalhou o irmão em quatorze pedaços, espalhando por todo o Egito. Isis, persistente, catou os pedaços, um a um, recompôs o corpo, fez uma magia, ressuscitou Osíris por um breve lampejo de tempo, o suficiente para fazerem amor pela última vez. Isis engravidou e teve um filho de Osíris, Hórus, vingador da morte do seu pai, anos depois.

Na África não poderia ser diferente.

Xangô era o “don juan” de Aruanda, o gostosão das tapiocas, mulherengo que só! Não podia ver uma orixá de bobeira que queria rosetar. Um dia passou na metalúrgica de Ogum, o ferreiro, e deu com os olhos na jovem Iansã, esposa de Ogum. Depois de umas insinuadas e piscadelas de olhos, Iansã caiu na lábia de Xangô e foi morar com o orixá da Justiça, depois de uma memorável batalha de espada com seu ex-marido, Ogum.

Iansã também não era flor que se cheirasse. Moderninha, já havia “ficado” com boa parte dos orixás, dos quais havia adquirido vários poderes. Feminista ao extremo, não admitia ordem de ninguém. Audaciosa, roubou as pedras mágicas dos raios de Xangô justamente quando ele entrava em casa. Pega de surpresa, enfiou-as entre as bochechas, porém foi traída pela emoção do reencontro: ao falar “meu amor”, saíram raios e trovões de sua boca, e isso deixou Xangô irado, colérico, e Iansã foi obrigada a fugir para não levar uns catiripapos.

Primeiro bateu à porta de Ogum, tentando uma reconciliação, porém este, magoado, não quis nem abrir a porta. Tentou Oxossi, seu primeiro amor, que também lhe negou guarida. Obaluaiê, comovido com a sua desdita, deu-lhe acolhida e um exército de mortos para lutar contra Xangô. Mas ela não queria guerra com seu amado; queria chamego. Sentia saudades das carícias sensuais do fazedor de trovões. Queria rosetar. Ou “xangozar”.

– Façamos amor, e não a guerra – propôs Xangô, saudoso dos cafunés eletrizantes de Iansã. Também não gostava de defuntos. Armistício em prática, armas ensarilhadas, exército de defuntos dispensado, se amaram como se amam os deuses de Aruanda, principalmente os dos raios e das tempestades: a terra tremeu em ventanias, raios, trovões, tempestades e inundações, por quarenta dias e quarenta noites e até hoje, quando os dois resolvem fazer amor, vemos nos noticiários que alguma parte da Terra foi tomada pelas enchentes.




sábado, 9 de maio de 2009

SEXO: SAGRADO OU PROFANO?


Crônica 1
“Receba eu o beijo da tua boca / porque os teus amores são melhores do que o vinho...”
 “Venha o meu amado para o seu jardim / e coma o fruto das suas macieiras”
“Quão bela são os teus pés / no calçado que trazei, ó filha do príncipe! / as juntas dos teus músculos são como colares / fabricados por mãos de mestres./ teu umbigo é uma taça feita ao torno / que nunca será desprovida de licores / teu ventre é como um monte de trigo cercado de lírios.”
“Os teus dois seios parecem dois cervotinhos / filhos gêmeos de uma gazela.”
“O teu pescoço uma torre de marfim./ Os teus olhos são como as piscinas de Hesebon.”
“Tua estatura é semelhante a uma palmeira / e os teus seios a dois cachos de uva.”

Estes versos e todo seu conteúdo sensual, embora pareçam tentações do Capeta, são versos salomônicos e fazem parte do livro “Cântico dos Cânticos”, da Bíblia Sagrada, usada por católicos, judeus e muçulmanos.

 A obra poética bíblica narra a história de amor de Sulamita, uma ingênua camponesa, e de um jovem pastor, a qual ela é tentada a abandonar a vida simples no campo e levar uma vida faustosa como esposa de Salomão, cuja fama de sedutor extrapolava os limites de Israel. A jovem donzela, porém, fiel à sua paixão, recusou o convite do filho de Davi e continuou sua vidinha de camponesa, ao lado do seu amado, sonhando com o dia de ser possuída por ele.

Ante tal erotismo bíblico, sou tomado pelas reflexões incompreensíveis tentando arrazoar o que se passa na cabeça de certas pessoas quando o assunto é sexo. Tudo bem que algumas citações extravagantes extrapolam a compreensão de alguns e os induzem a se horrorizar ante o que advém do sexo. Mas certos textos ou certas conversas, mesmo na leveza de um erotismo singular, fazem determinadas pessoas ficarem reticentes ou estarrecidas, achando tratar-se de uma indecência libidinosa.

Convenhamos: fazer xixi e defecar são necessidades fisiológicas vitais, pois, sem eliminarmos os excessos de substâncias ingeridas, não conseguiremos viver. O sexo, apesar de não matar, é uma necessidade fisiológica tais quais as citadas acima. Não morremos, porém teremos uma disfunção hormonal e psicológica comprometedora. Olhando sob esta premissa, o sexo, então, é a necessidade fisiológica da mente. Ou latinamente citando Juvenal, o poeta satírico romano: “Mena sana in corpore sano” (mente sã em corpo são). 

 O sexo é um ato sensitivo visível do milagre da perpetuação da vida sem o qual não seria possível a Darwin escrever sua obra revolucionária “A Origem das Espécies”, contrariando o tão polêmico Livro do Gênesis. O Velho Testamento é recheado de histórias de amor, sexo, traições e mortes. Há até incestos, necessários para a continuação da existência humana.

Dalila foi engabelada por Sansão três vezes. Mesmo usando de todo charme e beicinho, Sansão não se deixou enganar e inventou estórias escabrosas para dizer de onde vinha a sua força descomunal. Um dia Dalila radicalizou: trancou-se com Sansão em um quarto e fornicaram por vários dias, até a hora em que ele caiu prostrado. Sem coordenar as idéias, tresvariando, ele capitulou e entregou o ouro ao bandido. Ou melhor: à bandida. E os filisteus fizeram a festa. 
 
Nesse mesmo livro, ou “Juízes”, que naquela época era o mesmo que “chefe militar”, narra a história de um jovem casal levita que se deslocava de Israel para sua casa, nas imediações do Monte Efraim. No meio do caminho o casal parou na cidade de Gabaa, reduto dos filhos de Benjamim, conhecidos como benjaminitas, para o pernoite. Não encontrando quem lhes desse abrigo por serem de outra tribo, sentaram na praça e se puseram a pensar no que fazer. Nisso, apareceu um velho, também de Efraim, que, sabendo de sua história, convidou o casal para pernoitar em sua casa, o que foi aceito. No meio da noite foram acordados violentamente por homens do lugar que queriam enrabar o jovem levita. Diante de tamanha maldade que os benjaminitas queriam fazer ao pobre rapaz, o velho pediu para que eles se satisfizessem na sua jovem esposa. Arrastou-a para fora de casa e a entregou à sua própria sorte. Por toda noite ela foi seviciada, vindo a morrer quando o dia amanheceu. O marido, ao ver a esposa morta, dividiu o corpo em doze pedaços e espalhou pelas doze tribos de Israel, clamando vingança. Assombradas com o acontecido, depois de inteiradas da ocorrência, as tribos de Israel se uniram e marcharam em guerra contra Gabaa, destruindo suas plantações, tocando fogo nas aldeias e cidades, exterminando seus guerreiros, matando a espada o resto da população. Apenas seiscentos benjaminitas homens sobreviveram e fugiram para o deserto. Finda a batalha, os israelitas prometeram que nenhuma de suas filhas se casaria com algum sobrevivente do massacre.

Tempos passados, ânimos esfriados, bateu o arrependimento por terem aniquilados uma das suas tribos. O jeito era repovoar a cidade com os sobreviventes, mas como lhes arranjar esposas se todas as donzelas estavam proibidas de se casar com os benjaminitas? No conselho dos anciãos alguém sugeriu que se atacasse a tribo de Jabes Galaad, que havia se recusado a marchar contra Gabaa. Então se armou um exército que partiu em direção de Jabes Galaad com a missão de matar todo mundo, exceto as mulheres virgens. Findo o extermínio de um povo pacífico, contabilizaram quatrocentas mulheres virgens, que foram entregues aos benjaministas como esposas. Houve um déficit de mulheres e não era justo duzentos homens ficarem à toa, sem se casar. Como resolver o problema? Um ancião se lembrou que haveria a festa dedicada ao Senhor, na cidade de Silo. Então os duzentos benjaministas restantes foram autorizados a se esconder no mato e quando as virgens de Silo se reunissem para dançar, eles deveriam raptá-las e levá-las como esposa para as terras de Gabaa, o que foi feito. 

 Salomão só não foi considerado um tarado porque o povo nutria por ele uma grande estima, principalmente pela sua sabedoria. Mantinha setecentas esposas e trezentas amantes em seu harém. Mesmo assim pulava a cerca. Foi o que aconteceu com a rainha de Sabá em visita a Salomão.

Primeiro ficou impressionado com a riqueza da comitiva da rainha negra, que trazia camelos e camelos carregados de ouro, pedras preciosas, jóias, perfumes exóticos, desconhecidos em Jerusalém. A rainha de Sabá (hoje Iêmen), por sua vez, ao adentrar o palácio, se deslumbrou com tanto luxo e riqueza. Como havia um piso espelhado, ela pensou tratar-se de água e levantou um pouco o vestido para não molhar, coisa discreta, mas o suficiente para Salomão ver suas roliças e negras pernas refletidas no espelho do piso e que o levou ao desespero dos pensamentos libidinosos. 

A rainha de Sabá era uma rainha mística e havia ido a Jerusalém testar a sabedoria de Salomão, que respondeu a todos os seus enigmas, deslumbrando-a de tal maneira que mantiveram longos dias e noites de intensa paixão. Engravidou e retornou para Sabá com os seus criados, onde nasceu o filho em seu castelo, fruto desse idílio real.

 Salomão só conheceu o seu filho árabe, de nome Meneleque, quando o mesmo completou a maioridade e viajou para Jerusalém.

Para aqueles que acham que sexo é uma indecência a ser combatida, sugiro que leiam a Bíblia Sagrada de vez em quando, onde verão que, mesmo não estando explícito, é tratado sem tabu e sem preconceito.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

A HERESIA SAGRADA

Imagem: blog Canção Nova


Quando eu era menino lá no interior da Bahia, minha mãe me exibia orgulhosa para as amigas e falava triunfante:

– Escrevam aí: esse menino, quando crescer, vai ser padre! Um belo padre!

Mais não poderia dizer por que, tendo filho padre, teria comunicação direta com Deus. E estaria eu hoje de batina se no despontar de minha infância não tivesse caído no vício de encostar jega no barranco e descoberto maravilhado que o paraíso é aqui mesmo. Mas minha mãe não desistiu de seu intento e, quando nos mudamos para Alagoinhas, me obrigou a segurar no badalo do padre, como assistente de missa, ou coroinha, como é mais conhecido o garoto que toca o sininho e segura a bandeja na comunhão. A emenda saiu pior do que o soneto, pois angariei mais um vício no meu livro de pecados: o de encher a cara de vinho canônico no vacilo do padre. Descoberto, fui expulso do Clube São Domingos Sávio, o padroeiro dos coroinhas.

O tempo passou e finalmente minha mãe se convenceu de que pau que nasce torto morre torto. Escreveu ao Vaticano pedindo suas escusas ao papa e carinhosamente me expulsou de casa. Dentre suas crenças, uma dizia que todo herege está fadado a ser assado na fogueira santa e ela não queria se envolver com os tribunais eclesiásticos. Sem ter para onde ir, zanzei pelo Baixo Alecrim, a zona da cidade, e fui consolado por mulheres soturnas que bebiam feito esponja e fumavam como condenadas. Senti-me o próprio Salomão e suas quase duas mil mulheres até o dia que o comissariado de menor resolveu pedir minha identidade. Foi o supra-sumo da humilhação: expulsaram-me do pedaço e as mulheres que eu amava passaram a noite no xilindró.

Envergonhado, peguei um pau-de-arara e dei com os costados na Baía de Todos os Santos e por lá fiquei por longos anos a fio a consumir batida de limão e a admirar as belas mulheres da praia do Porto da Barra. Um dia a ressaca bateu forte e, quando dei por mim, era protagonista de um cerimonial de núpcias na igreja do Rio Vermelho. Nesse dia, tornei-me amigo do padre e voltei a freqüentar a sacristia, o que deixou a minha mãe esperançosa, mas depois ela descobriu que as minhas idas diárias à igreja eram apenas para entornar o vinho canônico. Dessa vez, acompanhado do padre, um biriteiro de marca maior. Mas ele não resistiu à sedução das noitadas e sucumbiu aos olhares lascivos de uma de suas beatas: sem pestanejar, largou a batina para se casar e abandonou os amigos da garrafa, vindo a se suicidar tempos depois, talvez, por solidão, conforme está relatado no conto “Carta de Apresentação”. Que bela ironia: enquanto padre, vivia na esbórnia; largou a batina e deixou subjugar-se pela mulher como se fosse boi de canga.

Assim fui consumindo os meus pecados, matando a minha mãe de tristeza, até que no ano passado me convidaram a escrever o prefácio de um livro de conteúdo religioso, com a devida aprovação do bispo da região. Desafio aceito, de repente me vi debruçado na Bíblia Sagrada à procura de fundamentos para a empreitada e acho que dei conta do recado. Dentre todos os textos do livro, o único leigo é o meu, apesar do ceticismo dos amigos e até ironia de alguns, principalmente dos meus irmãos e da minha inestimável consorte. Já a minha mãe, quando recebeu não-sei-quantos exemplares para distribuir nas igrejas de sua cidade, fez questão de levar o primeiro exemplar ao bispo e ainda desdenhou com o orgulho de mãe quando fala do filho pródigo às amigas:

– Tá vendo, Dom Raimundo, meu filho escreveu melhor do que os padres e vocês ficam dizendo que ele é um herege. E agora, como sustentar sua heresia se pode até ser canonizado pelo Papa?

O bispo baixou a cabeça sem dizer nada. Tempos depois me escreveu reticente e cerimonioso, como a escrever ao Papa. Queria a minha intervenção no Vaticano para sua promoção a cardeal.



sábado, 2 de maio de 2009

PAI, AFASTA DE MIM ESSE CÁLICE




Amaram a terra como se tivessem nela seus antepassados descansando em jazigos seculares. Quiseram seu povo como Moisés a caminhar para a Terra Prometida. Plantaram quimera como poetas semeando sonhos na seara das ilusões.

No início pisaram em território minado pela desconfiança de um povo xenófobo, porém de natureza pacífica. Aos poucos, angariaram simpatia e conquistaram a confiança da maioria, chegando ao topo da pirâmide política local: prefeito e primeira-dama. Entretanto quis o Destino presentear-lhes o Cavalo de Tróia, reviver o calvário, onde foram traídos por uns e negados por outros, todos uns Judas que sentaram à sua mesa para beber do seu vinho, comer do seu pão e ainda prometer fidelidade para depois cometerem leviandades. A História se repetindo, como a encenar tragédias gregas.

“O mal é o que sai da boca do homem porque procede do coração, e isso contamina o homem. Porque do coração procedem os maus pensamentos, mortes, adultérios, prostituição, furtos, falsos testemunhos e blasfêmias”, disse Matheus, o santo evangelista. O meu pai, na elegância sutil dos homens honrados, dizia ser a “língua” o maior inimigo do homem. Aquilo que se leva anos construindo, pode ruir com certas palavras maldosas ou colocadas com segundas intenções. Mas o que não é o que parece ser é um caminho de mão dupla e o tiro pode sair pela culatra. O maldoso pode ser o receptor da antiga questão filosófica “caveira, quem te matou?”, cuja resposta, para quem não sabe, é “foi a língua, meu senhor”. E foi o que aconteceu. Deles se disse tantas coisas de ruim, tantas quanto pôde a língua ferina destilar aleivosias, mas daquilo que foi dito, nada se provou de verdade. Entretanto, o dito não ficou pelo não dito por que pesou a ferida da desonra mais que a reparação moral. Felizmente a mentira tem pernas curtas e os seus detratores se viram envolvidos num lamaçal largo e profundo, com provas cabais de suas falcatruas morais e materiais à vista de qualquer cidadão não contaminado pela tiflose partidária. Eram uns cínicos e se diziam os salvadores da pátria, uns espertalhões em busca de tirar proveito de um povo atarantado pela surpresa das suas maldades. Mentiram tanto, e tanto, que chegaram a acreditar ser verdade a acidez de suas cismas e sequer tiveram a comiseração dos ditos cristãos em procissão de penitência.

Dela, recebi o desabafo de quem não consegue esquecer a impiedade humana:

“Me coloco sentada na praça de Sátiro Dias imaginando tudo que você conta....... Estou sentindo até o cheiro de feira da Segunda.......”

São palavras ditas com a alma de quem realmente sente a ausência de algo de valor espiritual, o amor pela terra, pelo povo, como qualquer vivente que deixa sua pátria para viver em exílio. Em vez de mágoas ou ressentimentos, saudades ternas e intensas ao ponto de sentir o cheiro da terra. Como terá palpitado o coração ao subir a Ladeira Grande em marcha lenta e dar o último adeus a um Junco partido pelas desavenças, futricas e ódio de irmão para irmão, como se Caim tivesse marcado seu território naquela cidade dita de cristãos? Por mais que imaginemos esse momento, é difícil se pintar o real quadro de dor na tela mnemônica de quem sonhou um mundo colorido e acordou num pesadelo em preto e branco.


Constrangido, peço desculpas a Tessa Sagot pela minha ausência e impotência em fazer com que todos se calassem ou bebessem do seu próprio veneno.







quinta-feira, 30 de abril de 2009

DIA INTERNACIONAL DO TRABALHO

Imagens: escolaprof.files.wordpress.com/2008/04/1-maio...


Há dias que a gente acorda assim, com uma estranha vontade de trabalhar, mas depois que se levanta, escova os dentes e prepara a marmita do meio-dia, as tele-notícias matutinas informam que é o Dia do Trabalho e, portanto, ninguém deve trabalhar.

Pernas pro ar que ninguém é de ferro.


Chicago, sempre Chicago, e suas manifestações históricas dando exemplo de luta proletária ao mundo. No entanto a propaganda comunista dizia que isso era coisa do marxismo-leninista militante e praticante, e que Chicago era apenas um viés na história. As mulheres proletárias chicaguenses nos legaram o dia internacional da mulher no dia oito de março; a massa proletária de Chicago nos proporcionou um feriado a mais no calendário. Falta agora se celebrar “O Dia do Mafioso”, vez que a máfia italiana não teria progredido se não houvesse Chicago. E os políticos. Quando o então deputado federal Luiz Inácio Lula da Silva disse que havia trezentos picaretas no Congresso Nacional, ele quis dizer exatamente “trezentos mafiosos”. Não que os outros que ficaram de fora fossem bonzinhos, corretos, honestos. É que o deputado Lula não sabia que havia mais duzentos e dois deputados gastando os créditos aéreos com a família e amantes.


As mulheres tecelãs de Chicago foram queimadas vivas porque se sentiam injustiçadas por trabalharem dezesseis horas diárias, cuidar da casa, da cozinha, dos filhos, do marido, do amante e ganharem menos que os homens. Por sua vez, os homens proletários de Chicago se uniram em manifestação gigantesca de protesto e reivindicações no dia primeiro de maio de 1886 e foram reprimidos violentamente pela polícia americana, a mais treinada em matar trabalhadores naquela época, cuja ferocidade serviu de exemplo à polícia brasileira na atualidade. Nos dias de greve que se seguiram, os ânimos se acirraram e o confronto resultou em sete policiais e doze trabalhadores mortos, segundo as informações oficiais da época.


A “Segunda Internacional Comunista”, reunida em Paris três anos depois desse movimento operário, deliberou, votou e aprovou o dia primeiro de maio como o dia internacional do trabalhador, em homenagem à primeira grande manifestação sindical da história. Nesse dia os trabalhadores do mundo todo, pelegos ou não, deveriam se reunir em manifestações reivindicatórias, principalmente pelas oito horas de trabalho. Devo ressaltar que a jornada normal era de treze horas diárias e que o vale-transporte e a licença-maternidade são bandeiras de agora.


É um equívoco se pensar que a Lei Áurea tivera influência da manifestação de Chicago. Essa “abolição” negra só aconteceu porque os fazendeiros estavam quebrados e não tinham como sustentar os escravos e as amantes simultaneamente. Mas isso já é outra história para ser contada no dia 13 por quem estiver interessado.


Não pensem os senhores ou as senhoras que o primeiro de maio é vermelho nas folhinhas do mundo todo ou que o proletariado internacional se reúne unicamente nesse dia. Há países que nem sabem que esse dia existe; outros, sabem, mas ignoram. No Brasil, apesar de se comemorar desde 1895, somente em 1925 é que se tornou oficial pelo decreto presidencial de Artur Bernardes. O feriado veio com o trabalhismo de Getúlio Vargas, que transformou os protestos em festas articuladas, bem acolhidas pela Força Sindical paulista, braço direito do PTB.


Na Bahia de ACM era proibido se falar em dia de trabalhador. Ele alegava ironicamente que o baiano passava o ano todo sem fazer nada e justamente no dia do trabalho ele queria descansar. Talvez tivesse razão, mas estava vermelho na folhinha, então era feriado nacional, com direito a praia e ao caldo de lambreta no Mercado Modelo. O principal lema do baiano é: não faça hoje o que pode ser feito amanhã. Isso é sagrado. À época também havia outro argumento sindical em forma panfletária cuja autoria se credita a Dorival Caymmi: “Se tiver vontade de trabalhar, se deite na rede e espere a vontade passar”. Mas ACM queria quebrar essa regra, unilateralmente, e para isso mandava seus cães e cassetetes reprimir as manifestações à base de gás lacrimogêneo e balas de borracha. Seria mais fácil e menos dolorido se ele mandasse apenas desligar os geradores dos trios elétricos.


Nessa época eu era ativista sindical e em um desses primeiro de maio estava acompanhado do japonês Hiroito, engenheiro estagiário no Pólo Petroquímico de Camaçari que queria conhecer o poder de mobilização dos sindicatos baianos. Depois do entra-em-beco-sai-em-beco correndo dos cães policiais, ele falou ofegante, mais pela fumaça na garganta do que pela carreira:


– Xicago!

– Não, japa! Chicago não. Aqui é Salvador, capital da Bahia, esqueceu?

– Xei qué Xalvador. Querro dixer que xicago. Agorra non! Agorra xicaguei!






segunda-feira, 27 de abril de 2009

CADA DOIDO COM SUA MANIA

O primeiro doido que conheci respondia pela alcunha de Doido Ursino, mas nunca o vi rasgando dinheiro. Pelo contrário, quando caía em suas mãos uns tostões vadios, o mesmo corria para a venda de Josias Cardoso e gastava com doces e pães. Também não jogava pedra nos outros nem ameaçava as criancinhas. Para não dizer que não tinha um comportamento atípico, gostava de soliloquiar. Mas quem, na amplidão daquela solidão, não tinha o hábito de falar sozinho?
Ao contrário dele, Zé Doidinho falava pelos cotovelos quando havia alguém disposto a escutá-lo. Apesar do apelido sugestivo, tinham-no como um sujeito normal. A diferença estava no fato de ser o Doido Ursino um cidadão sem eira nem beira, enquanto Zé Doidinho era herdeiro de algumas dezenas de cabeça de gado.
Neste entretanto Lindemberg de Enoque era um sujeito normal. Trabalhava para o Governo em Alagoinhas e quando tinha folga voltava para o arraial do Junco ao encontro dos pais e amigos da birita e da sinuca. E foi numa noite comum de folga, depois de desarrumar a mala, que ele surtou. Quebrou os móveis da casa e saiu correndo pela rua a jogar pedras nas pessoas. Deu muito trabalho para entrar no Jipe da Prefeitura e seguir viagem para uma clínica especializada em Alagoinhas.
Esses doidos da minha infância em nada se comparam aos doidos cibernéticos que conheço, que surtam de repente e aprontam mil loucuras sob o olhar complacente do monitor. Há os ladrões de identidade, os copiadores de textos, os que encarnam personagens de revistas em quadrinho e aqueles que pensam ser Manuel Bandeira ou Camões. É muita doideira virtual, principalmente nesses sites e grupos de Literatura.
Sexta-feira passada recebi uma mensagem de alguém que se dizia filho de uma dessas amigas virtuais anunciando a sua morte. Sem entrar em detalhes, dizia que a mãe havia se suicidado na noite anterior, que não haveria velório nem enterro. O corpo seria doado para uma faculdade de medicina. A mãe pedira apenas reza. Como bom cristão que sou, procurei uma igreja e mandei rezar missa na intenção de sua alma. A morte, por si só, é algo que nos deixa transtornado. Imagine receber a notícia do suicídio de uma amiga, apesar de virtual, logo cedo da manhã! Mesmo inocente, não há como se evitar certo sentimento de culpa pelo acontecido, principalmente quando se tem consciência de que o ato do suicídio está em envoltório de fatores externos e que falhamos como amigo.
Após dois dias de sofrido pesar, recebi a notícia de que tudo não passara de um surto psicótico da suicida. Ela mesma escrevera a mensagem para ver a reação dos amigos no seu post mortem. Estava vivinha da silva, gozando de plena saude e rindo do desespero das pessoas. Sendo escritora, confundiu-se com os personagens de suas estórias, achando que poderia morrer e ressuscitar quando bem quisesse, sem pensar nas consequências dessa loucura.
Achou magnífico ressurgir das cinzas como se de fato fosse o pássaro mitológico, sem levar em conta aquela estória do menino mentiroso, que no dia que estava se afogando de verdade ninguém o salvou pensando tratar-se de mais uma de suas mentiras. Assim, quando chegar a hora final da nossa Fênix, quem haverá de acreditar e chorar o acontecido? Se bem que, para mim, ela morreu mesmo na quinta-feira, 23.