domingo, 10 de julho de 2011

Maurício Melo Júnior - A invasão da Terra

Somente agora consegui entender um filme de Mel Gibson, Sinais, já meio antigo. A inteligência é fraca, reconheço, pois o enredo é bem besta. Um fazendeiro americano, viúvo, cria sozinho os filhos menores até que encontra o milharal esmagado em imensos círculos. Daí decorrem os suspenses e as emoções até que se descobre o motivo de toda confusão: extraterrestres invadiram a Terra. Mais um bocado de suspense, mais outro tanto de emoção e o fazendeiro galã percebe que os alienígenas, como os franceses, não simpatizavam com banhos e passa a matá-los com altas doses de água. Pronto a Terra está salva.

Até aí entendi tudo direitinho, o que me incomodava era uma determinada cena. Como a invasão era mundial o Brasil não poderia ficar de fora e, vendo televisão, Mel Gibson é informado que um extraterrestre passeia pelas ruas de Passo Fundo, no Rio Grande do Sul. Por que essa escolha já que tudo por aqui acontece no Rio ou em São Paulo? Conheço a cidade e quase fui expulso de lá por conta de minhas limitações culturais. Declarei num artigo que a comunidade está implantada no pampa gaúcho. Levei um puxão de orelhas: “Ficamos no Planalto Médio. Até Teixeirinha diz isso numa música.” Quem mandou não escutar o bardo gaúcho nem estudar geografia?

Fora este deslize, e apesar do frio, me dou muito bem por lá. Freqüentemente sou convidado para ciscar naquele terreiro e fiz muito boas amizades ali. Apesar do frio. Acostumado com o clima ameno de Garanhuns e congelando aos quinze graus, suportei com garbo e elegância os nove graus que costumeiramente baixa na cidade. Num dessas noites geladas, torcendo moderadamente, assisti o Sport vencer o Grêmio. E tudo sem fazer um inimigo, afinal estava cercado por solidários torcedores do Internacional.

Claro que não foi o futebol, muito menos o frio, que me levou a Passo Fundo. Sob um circo armado no campus da universidade, na companhia de cinco mil pessoas, por toda uma semana passei todo o dia e parte da noite a escutar outros mortais falarem de suas obras e suas criações. Perdemos a noção do tempo e embevecidos gastamos nossas horas enquanto lá fora o mundo corria com seus encantos. Manhãs de sol, crianças nas ruas, velhos nas praças, carneiros pastando, bovinos e muares sob as serras. E nós enfurnados em tendas, protegidos do vento e da vida, a discutir palavras.

Somos uma estranha trupe e nos encontramos em todos os lugares que nos permitem a falta de lucidez. Anualmente invadimos Paraty. O mar está próximo, mas também ali somos fustigados pelo frio. Ele nos avisa que aquela não é a nossa praia, que a cidade carece de belas moças semi-nuas a quarar sob o sol tropical. Teimosamente, no entanto, vestimos pesados casacos de couro, nos cobrimos de lã e pisamos as pedras seculares que nos dá um eterno andar de bêbado. Novamente buscamos o abrigo de tendas e, aborígenes modernos, voltamos aos nossos debates, ao exercício perdulário de gastar palavras, palavras, palavras.

Quando chega a noite, fechadas as tendas, reforçamos nossas vestes, nos abrigamos nos bares, pagamos caro por bebidas e petiscos – a conspiração que nos combate usa todas as armas – e voltamos ao mundo das palavras. Distribuímos elogios e patadas, brigamos sempre, nunca chegamos à conclusão nenhuma, fugimos das todas as unanimidades e amamos seres patológicos que passam a eternidade entre quatro paredes sonhando com mundos paralelos e irreais, enquanto pelas praias caminha a sensualidade despida de um país tropical que dispensa o peso das lãs e dos couros.

Teimosamente também conspiramos e espalhamos nossos vícios por todos os recantos. Bravamente enfrentamos o sol e o calor da marinha Alagoas. Em Marechal Deodoro tiramos os turistas da praia do Francês e os atiramos, junto conosco, num auditório climatizado por ar-condicionado e parolamos, parolamos, parolamos. Nossa prosa infinda invade as águas da lagoa de Manguaba, navega a placidez de Mundaú e chega a Maceió. Desabitamos a Ponta Verde e os corpos bronzeados, solares, nos olham indiferentes e seguem para a vida que margeia os canaviais e se reinventa nas engrenagens da usina.

Nem assim nos entregamos. À noite, de volta aos paralelepípedos de Marechal, subimos ladeiras cantando antigas canções. Somos felizes e as vezes fechamos parceria com a vida escutando um sax melancólico na escuridão, sob o luar, e dançamos tangos, boleros, frevos. Este mundo é meu, este mundo é meu.

Um dia a umidade pegajosa da Amazônia envolveu nossa turma em Manaus. Como as calçadas desenhadas do teatro eram amplas e a vastidão do Amazonas nos assustava, trancamos jovens estudantes no ambiente art nouveau de um vetusto salão e desandamos a falar sobre um certo bruxo que morava num lugar distante e viveu marcado pela epilepsia a inventar vidas e dúvidas.

Haja frio ou calor nossa luta cotidiana nunca cessa. E de nada valerão os truques do cinema americano. Enfrentamos tempestades, torrentes, vulcões. Heroicamente nos apossamos de redes, espreguiçadeiras, ônibus e aviões. Somos soberanos em nossas obsessões e vamos ainda dominar a terra.

Somos uma trupe estranha e dela participa o extraterrestre combatido por Mel Gibson, pois agora tenho certeza de que ele foi a Passo Fundo, a convite de Tânia Rösing, participar da Jornada Literária. Isso ninguém me tira da cabeça.


sábado, 9 de julho de 2011

Cineas Santos - Um sonho em curso

De Prof. Cineas Santos

Corria o ano da graça de 1977 e, apesar da ditadura, imperava entre nós a crença na “salvação do planeta”, na iminência de uma luminosa revolução cultural e, principalmente, na construção de um mundo mais justo e mais fraterno. Sonhos juvenis, irrealizáveis, mas necessários. Movido por esse desejo de mudanças, juntei um grupo de jovens – Paulo Machado, Fernando Costa, Alcide Filho, Rogério Newton e Margarete Coelho – e decidimos construir uma ponte cultural entre Teresina e o sertão do Piauí. Amontoados num velho fusca verde-sonho, iniciamos nossa peregrinação por São Raimundo Nonato onde, anualmente, realizava-se uma semana universitária. Levamos uma bela exposição do pintor Fernando Costa que, sozinha, falava mais que a nossa arenga de pregadores. Animados com os resultados, fomos a Oeiras, Floriano e já nos preparávamos para ir a Corrente, quando a gasolina do fusca acabou. Como não éramos financiados por ninguém, encerramos nossa errática aventura na vizinha cidade de José de Freitas. 

Esta história é sabida e consabida. A aventura durou pouco, mas as sementes foram lançadas em terreno fértil, e o projeto A Cara Alegre do Piauí, 34 anos depois, continua mais vivo do que nunca. Agora, por exemplo, estou escrevendo de Pio IX, onde, com um punhado de trabalhadores culturais, estamos fazendo o de sempre: ensinando, aprendendo, compartilhando experiências e vivências. Com a chancela da Universidade Aberta do Brasil, da UESPI e da UFPI, sob a batuta da professora Rosa Melo, nada menos de 500 pessoas (professores, alunos, gente do povo) estão participando dos cursos e oficinas oferecidos por nós na sede do município. É gratificante participar de um projeto que, entre outras atividades, semeia alegria. Mais do que nunca, estou convencido de que a ponte cultural entre a capital e o interior do estado precisa ser construída com a maior urgência para que se mantenha aceso o diálogo enriquecedor entre os que fazem cultura em qualquer parte, mesmo em condições adversas. É ocioso afirmar que um projeto de tal magnitude não poderá ser mantido apenas por um punhado de esforçados trabalhadores. Urge que o Estado faça a sua parte, fomentando políticas culturais capazes de gerar emprego, inclusão social e, acima de tudo, de elevar a autoestima do nosso povo.

            O Cara Alegre, com a experiência dos que já vêm fazendo há mais de 30 anos , está disposto a colaborar com qualquer iniciativa que tenha como objetivo promover a inclusão cultural e estimular o intercâmbio entre a capital e os municípios do Piauí. 


quarta-feira, 6 de julho de 2011

Maurício Melo Júnior - Viver é arriscoso

Riobaldo Tartarana, o brilhante jagunço maquinado por João Rosa, tinha medo da vida, mesmo assim trocou tiros com Hermógenes, amou loucamente e sobreviveu por muitos anos, um tempo suficiente para contar suas aventuras a um ouvinte desconhecido. Sobreviveu agarrado em suas crenças e no desespero de não poder concretizar os desejos do peito. Quando pensava em religião, variava, bebia água de todos os rios, quando devotava seu amor via Diadorim como uma neblina.

Um homem sábio temente a Deus e ao diabo.

Contra esta corda bamba permanente que é a vida, não há muito remédio senão viver, e viver intensamente, como fez Riobaldo.

Um tio meu bem criativo, maquinando uma vida segura, projetou uma casa onde seria possível morar livre de todos os riscos. Desenhou quadrados, estabeleceu espaços, pensou soluções para todos os problemas, previu todas as brechas possíveis para a insegurança e, enfim, fechou o projeto de seus sonhos: um imóvel sem portas ou janelas. “Ninguém vai conseguir entrar nesta casa”, constatavam os céticos. “Nem mesmos ladrões ou homicidas”, rebatia meu engenhoso tio que, infelizmente, não encontrou pedreiros ou mestre-de-obras capazes de concretizar seus sonhos de segurança. Hoje vive no décimo segundo andar de um edifício comum. Aparentemente livre de perigos.

Isso enquanto fica em casa, pois nas saídas há sempre um trânsito cada dia mais difícil. Embora não morando na mesma cidade que este meu tio, vejo o quanto tem se tornado arriscado andar nas ruas das grandes e pequenas cidades. Vai longe o tempo em que uma modesta batida de carros sem vítimas, fatais ou não, era assunto por toda uma semana em Palmares ou Matriz de Camaragibe. Discutíamos o prejuízo dos infelizes proprietários e os possíveis lucros dos mecânicos escolhidos para reparar os estragos. E isso tomava dias de nossas vidas até que nova batida ou, mais comum, as notícias de um novo adultério aumentavam nosso repertório de prosa boêmia.

Os tempos mudam e a vida se torna cada vez mais arriscada, parece uma bolsa de valores onde apenas se negociam ações de massas falidas.

Frequentemente escuto notícias de sequestros relâmpagos, novos golpes na praça, balas perdidas, agressões no trânsito e busco encontrar um outro lado da vida. Nunca consigo chegar ao excessivo grau de otimismo daquele personagem do Roberto Benigni, o Guido, de A Vida é Bela, mas acredito que estamos num tempo de bonança. Talvez isso se deva ao fato de vir de outros tempos, não tão remotos, é certo.

Basta dizer que outro dia, no Recife, tomei conhecimento, um noivo enlouquecido matou um dos padrinhos de seu casamento, a noiva e depois se suicidou. Um fato tão absurdo que nem mesmo Nelson Rodrigues conseguiu imaginar.

Vivi no Recife num tempo em que nosso maior medo, quando rondávamos suas ruas vazias, nas madrugadas vadias, era encontra a Perna-Cabeluda, uma lenda urbana, um ser misterioso com mais de dois metros de altura que chutava corruptos e outros cidadãos menos perigosos. Como éramos boêmios inveterados, temíamos uma vingança mandada pelos céus.

Da terra o perigo era mais real. Galeguinho do Coque vivia nos noticiários e em nosso imaginário. Era cruel, perverso, roubava e judiava de suas vítimas. Um dia foi preso e comemoramos como altas doses de rum, única bebida acessível aos nossos modestos bolsos. E, surpresos, sem comemorações, lemos nos jornais a conversão do famoso bandido ao protestantismo. O mundo estava salvo e podíamos voltar, nas altas da noite, dos bairros distantes, onde os preços eram mais justos e as noites mais felizes. No entanto, confirmando minha tese jurídica de que a ocasião faz o furto, já que o ladrão nasce feito, lamentamos a volta de Galeguinho à prisão: fora flagrado roubando os cofres de sua igreja. Na Idade Média seria queimado por heresia, o malandro.

Isso se deu no Recife, uma cidade cruel, inóspita para quem não se adequa aos seus caprichos. Vítima disso foi o doce Mané Antônio, mecânico estabelecido em Catende. Homem pacato enquanto não lhe envolvia um súbito e costumeiro surto de loucura. E aí subia no primeiro banco da primeira praça que encontrava e desandava seu mais vibrante discurso com a maior de suas frustrações.

Certa feita, desembarcando na Estação Central, foi acometido pelo surto em plena Praça Joaquim Nabuco. Vivia-se os tumultuados idos de abril de 1964. Mané subiu ao banco e abriu o verbo: “Exército, Marinha e Aeronáutica, toda nação, fode e eu não. Por quê?” Os olheiros de plantão não perdoaram e até descobrirem que focinho de porco não era tomada o pobre mecânico exemplar sofreu pelos cárceres da repressão.

Corre-se mais riscos em tempos de exceção, é fato.

Ascenso Ferreira, pelo que me consta, foi dos pouco a escapar com bom humor desta fatalidade. Nos mesmos idos de 1964, no sentido de neutralizar a tendência de esquerda dos artistas pernambucanos, circulou o boato da existência de uma indecente lista apontando os poetas veados, boiolas, homossexuais, enfim, eram tempos em que tal prática não tinha nenhum glamour. O fato é que foi uma avalanche de acusações. Os poetas já não podiam circular em paz sem serem apontados como membro da desabonadora lista. Até que todos os dedos apontaram para o imenso Ascenso. E sem outra saída mais convincente ele gritou para os quatro ventos: “Eu não posso. Eu tenho hemorróidas.”

Viver é arriscoso, mas como vale a pena correr este risco.


domingo, 3 de julho de 2011

Cineas Santos - Pérola na lixeira


Há quem afirme, com uma pontinha de maldade, que a internet é uma espécie de cloaca da civilização ocidental onde cabe tudo: de pedofilia a passaporte para o céu, em módicas prestações mensais. Ainda assim, basta buscar com cuidado para encontar pérolas à disposição de todos. Ademais, não se pode culpar uma estrada pelo simples fato de nela, acidentalmente, transitarem salteadores. Um amigo me mandou esta bela história que, comovido, repasso a vocês.

UBUNTU

A jornalista e filósofa Lia Diskin, no Festival Mundial da Paz, em Floripa (2006), nos presenteou com um caso de uma tribo na África chamada Ubuntu.

Ela contou que um antropólogo estava estudando os usos e costumes da tribo e, quando terminou seu trabalho, teve que esperar pelo transporte que o levaria até o aeroporto de volta pra casa. Sobrava muito tempo, mas ele não queria catequizar os membros da tribo; então, propôs uma brincadeira pras crianças, que achou ser inofensiva.

Comprou uma porção de doces e guloseimas na cidade, botou tudo num cesto bem bonito com laço de fita e tudo e colocou debaixo de uma árvore. Aí ele chamou as crianças e combinou que quando ele dissesse "já!", elas deveriam sair correndo até o cesto, e a que chegasse primeiro ganharia todos os doces que estavam lá dentro.

As crianças se posicionaram na linha demarcatória que ele desenhou no chão e esperaram pelo sinal combinado. Quando ele disse "Já!", instantaneamente todas as crianças se deram as mãos e saíram correndo em direção à árvore com o cesto. Chegando lá, começaram a distribuir os doces entre si e a comerem felizes.

O antropólogo foi ao encontro delas e perguntou porque elas tinham ido todas juntas se uma só poderia ficar com tudo que havia no cesto e, assim, ganhar muito mais doces.

Elas simplesmente responderam: "Ubuntu, tio. Como uma de nós poderia ficar feliz se todas as outras estivessem tristes?" 
Ele ficou desconcertado! Meses e meses trabalhando nisso, estudando a tribo, e ainda não havia compreendido, de verdade,a essência daquele povo. Ou jamais teria proposto uma competição, certo?

Ubuntu significa: "Sou quem sou, porque somos todos nós!"
Atente para o detalhe: porque SOMOS, não pelo que temos...


sexta-feira, 1 de julho de 2011

Edna Lopes - O forró daqui é melhor do que o seu?

Encerrando a página de junho, mês de festejos do primeiro ao último dia em várias cidades do nordeste, constato que, pela primeira vez em muitos anos, sinto-me devedora em relação a minha contribuição na festa.

Por compromissos de trabalho não recebi amigos em casa no dia de Santo Antônio e meu dia de celebrar a vida, mas prometi ao Santo que o farei em dia e hora a combinar com ele e com minha agenda. Por questões de saúde descansei mais que festejei o S. João e o S. Pedro abrindo exceções aqui e ali quando o corpo permitiu.

Do visto e vivido, a sensação de que cada vez mais nos distanciamos dos festejos da forma mais saudável, das tradições que sustentou ao longo da história, nossa identidade cultural. Há quem mate e morra pelas disputas das quadrilhas estilizadas que, como espetáculo, tem seu brilho e valor, mas não me convencem como expressão do jeito de ser e viver do nordestino.

Sou chata. Atrações contratadas a peso de ouro com dinheiro público, deveriam no mínimo, obedecer ao critério, cuja apresentação devesse conter elementos que ressaltassem a cultura, ressaltassem valores éticos e de civilidade, mas, salvo exceções, muitas dessas “atrações” seriam apropriadas para um circo dos horrores, com mulheres seminuas em coreografias de sentido no mínimo duvidoso, músicas que incitam a violência e promovem o mau gosto, a baixaria. Nada contra a quem canta o que quiser e lhe aprouver, ou quem gosta de ouvir, mas com dinheiro PÚBLICO acho um acinte!

Minha chatice reconhece acertos.Pude ver e sentir que nas cidades do interior (não todas, é claro) ainda se luta bravamente para se manter algumas tradições como as quadrilhas matutas, o degustar das comidas típicas da época, a contratação de atrações ligadas aos festejos juninos, a festa nas casas das famílias, a decoração mais característica, entre outras.
Para minha alegria, visitei amigos no S. João e mesmo não tão bem de saúde, aproveitei esse clima de genuína alegria.

De volta a casa, fui ao show de Alcymar Monteiro e me emocionei com as músicas que fazem sucesso há muito tempo e os aboios cantados por ele e seus fãs a plenos pulmões...Gente simples, com filhos pequenos e talvez netos. Gente que como eu, não nega sua raiz. Minha alegria se completou quando na despedida Alcymar lembrou: “Podem trazer seus filhos ao meu show, aqui não se canta baixaria”. Nem preciso dizer o quanto foi aplaudido.

Também quero parabenizar o gol de placa que foi a festa de rua dos SERESTEIROS DA PITANGUINHA no dia 28, um grupo que ao longo de 16 anos faz resistência cultural aqui em Alagoas. Das caras festas para privilégio de poucos ao arraial com milhares de pessoas festejando, vestidas a caráter, maravilhadas com as atrações que destacavam a fina flor da música nordestina foi um salto e tanto. Além dos próprios Seresteiros, a animação ficou por conta de Chau do Pife, da cantora Wilma Araújo e de Tião Marcolino, numa canja especial. Encerrar a noite ouvindo a beleza da voz de Khristal, uma potiguar que encanta com sua apresentação personalíssima, foi um privilégio que precisamos repetir ano que vem.

Para encerrar os festejos e comemorações juninas, fui à procissão de S. Pedro na paróquia do Pontal da Barra, na tarde do dia 29. Organizada pela colônia de pescadores, já fazia alguns anos que não era realizada e mesmo na simplicidade, foi bonito ver a expressão da fé e do respeito às tradições daquela comunidade às margens da lagoa Mundaú.

Tenho plena consciência que o forró daqui NÃO é melhor do que o seu, mas a ideia de festejar de forma saudável e respeitosa as nossas tradições e costumes nas festas juninas é a minha bandeira e certamente a de muitos e muitas que, como eu, sabem que, para além da diversão, o que está em jogo numa festa dessa magnitude é a sobrevivência da nossa identidade como povo nordestino, cujas raízes rurais são fonte de inspiração para praticamente todas as expressões da arte que se faz nesse país.

O forró daqui NÃO é melhor do que o seu, mas quem sabe não chega perto?


quinta-feira, 30 de junho de 2011

A volta dos que não foram


De O blogueiro e o artista



Finalmente de volta pro aconchego. E já não era sem tempo, resmungou a cara-metade que não pôde me acompanhar nessa turnê etílica junina. Uma semana e mais alguns dias de pleno arrasta-pé pelo interior da Bahia, e mais uma parada na capital baiana pra rever os amigos. Aliás, poucos, porque a maioria, se não estava de ressaca, estendia as festas até São Pedro.

São Pedro é santo de viúva, dizia a minha mãe. E nunca acendeu uma fogueira para o porteiro do Céu, nem mesmo depois que ficou viúva. Também é padroeiro dos pescadores, mas, de onde viemos, achar água já era difícil, imagine ter pescador em procissão. A ladainha lá era rezada pra outro santo ou santa, o das chuvas, que não sei quem é.

Nos anos 60, antes de Inocêncio Oliveira se dizer o dono dele, o DNOCS andou mostrando serviço por lá e encanou a água de poço artesiano até as casas do povo. Um milagre de Nossa Senhora do Amparo, a padroeira da terra, que se transformou em muitos votos para os políticos da UDN.  Mas os gestores público nunca fizeram manutenção nos poços e agora a água está salobra e o povo, em vez de matar a sede com um copo d'água cristalina, está se suicidando em câmera lenta com o excesso de sal acumulado no sangue. Não é à toa que o alcaide está se dando bem e expandido seu negócio de hemodiálise pelo sertão baiano.

Mas deixemos a água de lado que no São João o negócio é licor, de preferência, jenipapo. Infelizmente as festas juninas  no Nordeste estão perdendo a tradição graças à contratação das duplas sertanejas e das estrelas da axé music. Em vez de um pau de porteira, dança-se na boquinha da garrafa. Uma cidade baiana contratou a grande estrela forrozeira Adriana Calcanhoto para animar a festa. Voz e violão. São João, o santo mesmo, deve ter feito calo nos pés de tanto dançar.

O prefeito do Junco não fica atrás e tem verdadeira adoração por essas duplas sertanejas e dos pagodes da vida. Por ele, toda festa teria Victor e Léo de dia, e Xande, de noite. Mas este ano a banda tocou diferente. Graças a uma campanha deflagrada nessas comunidades cibernéticas que retumbou nas grotas junquesas, ele foi obrigado a se render à vontade popular e fez o São João dentro dos conformes tradicionais.

E o som da sanfona ecoou de 22 a 25 de junho, reunindo o povo no mais autêntico forró pé de serra. Coube a Dominguinhos, o maior sanfoneiro vivo do Brasil, encerrar com chave de ouro a festa na Praça, no dia 24. Aliás, minto: a surpresa ficou na canja que ele deu a uma cantora local, que fez muito sucesso nos anos setenta e oitenta cantando em banda de baile do marido e cunhados: Lia de Bispão. A multidão vibrou ao ouvir sua voz ecoar na Praça interpretando “De volta pro aconchego”, acompanhada pelo próprio autor da música, e vi muitos olhos lacrimejarem porque uma grande parte dos expectadores era de gente de volta pro aconchego da terra. 

O dia 25 foi dia de concurso de quadrilha junina, mas aí eu já estava com o pé na estrada. 

E o prefeito, depois de elogiado até por alguns da oposição, descobriu que algumas coisas boas nem sempre estão no plim-plim Global.



segunda-feira, 20 de junho de 2011

Recesso temporário do blogueiro



Comunico aos leitores deste blog que o blogueiro, depois de ler a crônica de Luís Pimentel falando do são joão na terrinha, não resistiu à tentação e,nos próximos dias, estará em turnê etílica licoreira pela Bahia e provavelmente não haverá novas postagens no blog até o dia 30 deste.

Como se diz lá na minha terra, nessa época: VIVA SÃO JOÃO!

Inté a volta.

Cineas Santos - O Homo Faber do Sertão

Num gesto de pura generosidade, a jornalista Cláudia Brandão, com a cumplicidade de Zózimo Tavares, publicou, no Diário do Povo (12/06/11), uma crônica – “O Midas do sertão” – na qual me atribui qualidades e importância que efetivamente não tenho. Comovido, agradeço-lhe o carinho, mas a verdade deve prevalecer sempre. Em relação ao Salão do Livro do Piauí, por exemplo, a iniciativa não foi minha. Na década de 80, eu realizava, praticamente sozinho, o seminário Língua Viva, tentativa de propiciar aos professores piauienses o necessário diálogo com os gramáticos e linguistas do país. Por minha conta e risco, trouxe a Teresina, entre outros, Celso Cunha, Evanildo Bechara, Celso Pedro Luft, Napoleão Mendes de Almeida e José de Nicola Neto. Cansado de malhar em ferro frio, resolvi parar. Foi aí que apareceram os professores Wellington Soares, Luís Romero e Nilson Ferreira e me propuseram a realização do SALIPI. “Emprestei-lhes” o meu nome e autorizei-os a utilizá-lo onde pudesse ter alguma utilidade. Os rapazes foram à luta e, em 2003, nasceu o Salão. Não sou, portanto, o pai da ideia. Sou,quando muito, um avô afetuoso. Além disso, o SALIPI só se mantém vivo graças ao apoio de muitos parceiros, entre eles, o governo do Piauí e a Prefeitura de Teresina, para citar apenas dois. Trata-se de um trabalho coletivo.

A Cláudia acertou em cheio quando falou da minha paixão pelos livros, pela educação, pela cultura. Não respiro bem onde não exista efervescência cultural. Creio que o título da crônica estaria mais adequado se fosse O homem faber do sertão. Ao longo da vida, tenho sido apenas isto: um fazedor. Sofro de uma saudável inquietação que me impele a fazer sempre, independentemente das dificuldades a serem enfrentadas. Em 1969, quatro anos após chegar a Teresina, eu já estava à frente de um magro grupo de teatro, mambembando pelos sertões do Piauí e do Maranhão. Desde então, como professor, editor e produtor cultural, tenho realizado muitas atividades, coisas pequenas, mas que, no conjunto, constituem um lastro de certa expressão. Entre as realizações, faço questão de destacar a criação do grupo A Cara Alegre do Piauí que, há 34 anos, presta serviços onde for solicitado. Na próxima semana, por exemplo, estaremos ensinando, aprendendo e compartilhando experiências com professores e alunos de Pio IX. Compartilhar é o meu verbo preferido.

Depois de milhares de aulas ministradas, centenas de palestras proferidas, dezenas de livros editados, todos os dias me surpreendo fazendo a mesma pergunta: o que serei quando crescer? No limiar da senescência, continuo apaixonado por tudo o que faço. Sou um amador, na acepção plena da palavra. O que amealhei? O que não está à venda em nenhum lugar do mundo: o respeito e o carinho de pessoas especiais como a Cláudia Brandão, ex-aluna e sempre amiga. Para um homem do meu tope, basta.


Luís Pimentel - Elza: mulher, negra, estrela e gostosa

Ela já me disse em uma entrevista: “Degustei lágrimas como quem degusta vinho. Sei o gosto que elas têm”. Não foi apenas uma frase de efeito. Quem conhece um pouco de sua história sabe que ela comeu o pão que o diabo amassou, apanhou mais do que boi ladrão. Mas seguiu os ensinamentos do “Che” e não perdeu a ternura, jamais.

Elza Soares, uma das mais brasileiras entre as cantoras brasileiras chega aos 74 anos neste junho de 2011, no dia 23, cantando melhor do que nunca. Possui recursos vocais personalíssimos, arrancando as sílabas da garganta como se quisesse estourar as veias do corpo. Parece que “rói do cóccix ao pescoço”, como no verso da música que Caetano Veloso escreveu para ela e que virou título de um dos seus mais belos CDs.

Outro que homenageou lindamente a garra da cantora, seu som em fúria, foi Chico Buarque. Lembrou o craque dos craques, na canção Dura na queda: “Apanhou à beca, mas pra quem sabe olhar/A flor também é ferida aberta/E não se vê chorar”.

Do velho 78 rotações ao CD, são mais ou menos 100 discos gravados, no Brasil e no exterior. Nos EUA, resolveram examinar sua garganta e concluíram que as cordas vocais eram defeituosas. Um defeito perfeito. “Armstrong ficou deslumbrado quando viu que termino de cantar e falo normalmente, que esse som é puro efeito vocal. Ele me chamava de filha espiritual”. Não vai nesse depoimento nenhum excesso de vaidade. Simples relato.

O sucesso enorme que fez com músicas como Mulata assanhada, Se acaso você chegasse, Língua, Malandro, Cadeira vazia etc., não mudou sua estrada, desde o início para cima: 

– Sou uma poderosa. Vitoriosa quatro vezes: mulher, negra, estrela e gostosa.

Diz o último verso da canção do Chico: “O sol ensolará a estrada dela...”. A estrada sempre esteve ensolarada. Elza Soares é a verdadeira guerreira da luz.



domingo, 19 de junho de 2011

Maurício Melo Jr - O Sequestro de Dom Helder

Parei de rezar há muito tempo. Hoje minha memória não alcança nada além de uma Ave Maria ou um Pai Nosso. Nada mais. A decisão foi voluntária, mas inconsistente. Tenho uma irmã carola de batizar e casar. Se o padre cochila, ela diz até missa. Ou seja, na família já tem reza de sobra, de forma que pude ir cuidar de outras coisas.
E fiz isso com um grande aval.

Numa conversa de mesa de bar ouvi o velho senador Teotônio Vilela contar: “Meu irmão, o cardeal Dom Avelar, era o diabo quando menino. Depois resolveu seguir vida religiosa, de forma que pude continuar endiabrado, e fui cuidar de política.”

Os meus pecados são menores: cuido de literatura.
Bom, voltando à carolice da família, minha irmã segue o exemplo de uma tia, também afeita às práticas do catolicismo. Ouvir a conversa das duas faz de qualquer pecador um homem pio. Eu é que, ouvindo várias dessas conversas, não tomei jeito. Fazer o quê? Como elas mesmas asseveram, são os desígnios de Deus.

Numa dessas conversas minha tia contou, um tanto em êxtase, que encontrou Dom Hélder Câmara, por acaso, no centro do Recife. Naqueles dias, finais dos anos de 1970, o arcebispo circulava sozinho, na companhia de suas crenças, cumprimento e dando atenção a todos que lhe procuravam. Nunca lhe faltou uma palavra de carinho para deixar com quem quer que fosse, uma solidariedade cotidiana.

De minha parte, na cabeceira, deixava um exemplar de O Deserto é Fértil, uma reunião de crônicas que lia por prazer e desejo de conhecimento. Impressionava-me o texto corretor, seguro, prenhe de referências religiosas, mas sem imposições. Os exemplos, Dom Helder arrancava da vida, e ela, a vida, na sua conceituação de injustiças e contradições, era que devia ser mudada. Não interessava aquele homem frágil apenas o paraíso celeste, a terra também podia ser transformada num novo Jardim do Éden, um lugar de bonança, felicidade e harmonia para todos.

Minha tia não cansava de falar da tarde em que caminhou ombreada pelo sacerdote, o interrogando e ele, pacientemente, a lhe falar de Deus e dos homens. E eu ouvia seu relato apanhando os ensinamentos possíveis. Até ganhei fôlego para discutir com um amigo, dias depois, numa ocasião qualquer. Num tempo maniqueísta, onde a isenção se fazia impossível, o amigo, um tanto emprenhado pelo cântico do este-é-um-país-que-vai-prá-frente, disparou: “Dom Hélder foi integralista”.

Parti para a defesa. O integralismo, doutrina inspirada no fascismo, criado por Plínio Salgado, foi o retrato de uma época. Vivia-se um mundo dividido entre duas possibilidades de ditaduras, esquerda ou direita, deixando no meio a democracia americana com todas as suas ambições. O discurso arrebatador de Plínio na defesa de um Estado forte e orientador, definidor de políticas para o caminho do desenvolvimento, encantou verdadeiros gênios, como Câmara Cascudo e Érico Veríssimo, e gerou um clássico da ciência política, O Estado Nacional, escrito por Francisco Campos, um sábio da direita.

Cascudo, Érico e Dom Hélder, a exemplo de vários outros, reviram seus conceitos e passaram a defender a postura de que, mais que o Estado, o homem é que deveria ser fortalecido para defender com as próprias garras sua dignidade, sua vida. E escudado nesta crença o padre partiu para a prática. Admirávamos sua disposição de, ainda nos anos de 1950, como bispo auxiliar do Rio de Janeiro, criar a Cruzada São Sebastião e o Banco da Previdência. Acredito que pela primeira vez, fora dos padrões folclóricos do samba, se revelava o povo invisível da favela.

Essa mania de revelar o invisível, e que tanto desagradava os poderosos de plantão, no Recife, trouxe à tona o povo das pontes, toda uma comunidade que vivia encastelada nos vãos, entre o mangue e o concreto que, com a luz do dia, mendigava pelas ruas. Aquilo era um tapa nas ações eleitoreiras da Campanha Contra o Mocambo, de Agamenon Magalhães.

E minha tia caminhava com este homem de aparência frágil e voz suave a quem os poderosos não podiam afrontar. Agrediam sim, a igreja voltada para o combate à pobreza e a defesa dos direitos humanos. Vários de seus auxiliares mitigaram nos cárceres ou foram assassinados.

Dom Helder não temia. Seguia seu caminho. Tanto que perguntou para minha tia se ela estava de carro. Sim. “Você pode me dar uma carona? Estou indo para casa.” Ela, que morava para os lados do Espinheiros, maravilhada, guiou o próprio guia. E no caminho o indagou. “Dom Helder, o senhor não me conhece e entra em meu carro despreocupado. Não tem medo que eu o sequestre?” Passando a mão na cabeça, respondeu: “Minha filha, eu, quando adolescente, tinha uma cabeleira basta. Aos pouco Deus foi tirando meus cabelos. Assim é a vida, quando Deus quer, tira. E nós somente temos que fazer valer com dignidade o nosso tempo.”

Minha tia não sequestro Dom Helder. Chorou de emoção, apenas, e deixou o arcebispo em casa. E pelas ruas nós chorávamos de revolta a morte de padre Henrique e a prisão de Cajá, de certa forma, dois dos tantos sequestros de que Dom Helder foi vítima.


quinta-feira, 16 de junho de 2011

Nossos heróis de cada dia


De A Legião dos Suicidas

Apesar de na adolescência transitar no fumacê da onda hippie, meus heróis não morreram de overdose. Ao contrário, a maioria ainda vive, e um deles, que eu pensava já morto, ressuscitou nesses encaminhamentos de e-mail da vida virtual.

Na infância, meu primeiro herói foi Pedro Malazartes (ou Malasartes), o malandro das mil e uma artes, que singrou os sete mares e aportou nas noites estreladas do arraial do Junco. Era um malandro do bem, um Robin Hood brasileiro, um Zé Carioca caipira, irmão mais velho de Macunaíma e primo-irmão de João Grilo. Não se sabe ao certo a sua origem nem se veio na Expedição Tomé de Sousa, mas o fato é que esse personagem folclórico chegou aqui com os colonizadores trazendo sua mala de artes para embalar os sonhos de justiça da gente simples do Sertão. 

Mas, perdido o encantamento da infância, outro personagem também singrou os sete mares em busca de sua mala de artes e quando retornou à sua terra foi recebido como herói e como herói permaneceu no meu entendimento juvenil: o meu irmão mais velho. Depois de passar alguns anos na Europa, retornou cheio de histórias a contar e com uma arte pronta na bendita mala: um livro escrito por ele. Como morava em outro estado, só aparecia em casa de caju em caju para tomar a bênção aos pais e prosear com os irmãos mais velhos e seus amigos de infância. Era uma festa. Devido à importância do personagem, a minha mãe tirava da cristaleira seus melhores utensílios de mesa guardados a sete chaves para ocasiões especiais. Como o almoço era um banquete aos deuses em agradecimento ao retorno do filho pródigo, crianças e pré-adolescentes não se sentavam à mesa com os adultos e só nos sobravam as rebarbas das conversas, sem direito a sobremesa. 

Foi ele quem me apresentou a Tom Sawyer, Pedrinho e Narizinho, Irmãos Dalton, Bonnie e Clyde, Asterix, Alice, Macondo e tantos e tantos que tomei tamanho gosto pela leitura que virou vício e por causa desse vício pude conviver pacificamente com a geração “paz e amor, bicho” sem a necessidade de enrolar um baseado nem participar das sessões fumacê que rolavam nos encontros dos cabeludos.

Mas ele só me presenteava a prosa juvenil. A poesia era acessada apenas nos livros de leitura ou na biblioteca da escola. Os poetas românticos eram os preferidos, porém no final de 1972 aconteceu um evento que mudou o curso da história: outro irmão foi a São Paulo e quando retornou me presenteou um livro de Celso Japiassu, um poeta paraibano, chamado A Legião dos Suicidas. Eram poemas que fugiam da lógica metrificada e açucarada de se rimar amor com ou sem dor. Alguns versos são tão contundentes que dão a impressão de tirar sangue da alma. E como são atuais...

“IV

Aqui, nos sentamos
E assistimos:
Uma vertente de caos,
Um soco,
Três estampidos.

Mas há um grito nesta rua,
Embora não se divulgue.
Em que poste, casa, líquido
Ou garagem.

Mas há um grito na rua.
Sabemos que vai gritar,
Porque são duas da tarde
E há um medo na cara
De quem se encontra a olhar.

Tem um cão que espreita a rua,
Um velho sentado ao sol,
Uma criança chorando
E três que ainda vão chorar.”

In: Quatro Ângulos Agudos

Fiquei fascinado pelo livro de tal maneira que o tenho guardado até hoje e de vez em quando faço uma releitura que tem o sabor de uma viagem de retorno no túnel do tempo até o dia que o li pela primeira vez e decidi que queria ser um poeta tal qual aquele que assinava o livro. 

Celso Japiassu nasceu e viveu a adolescência em João Pessoa, na Paraíba, concluiu o curso Clássico em Recife, se formou em Direito em Belo Horizonte, mas nunca exerceu esta profissão. Mudou-se em 1967 para o Rio de Janeiro onde vive até hoje e exerce a profissão de jornalista (e só esta semana fiquei sabendo disto, inclusive, para dar testemunho de que ainda reina no mundo dos vivos, se tornou seguidor deste blog). 

O livro que tenho em mãos é o terceiro de sete, contendo 13 poemas que nos envolvem na agudeza dos seus versos e escancaram as nossas vísceras morais. Para ler mais de Celso Japiassu, click no nome e será redirecionado ao blog dele, que também está lincado  aqui.

Seus livros:

* O Texto e a Palha (Edições MP 1965)
* Processo Penal (Artenova 1969)
* A Legião dos Suicidas (Artenova 1972)
* A Região dos Mitos (Folhetim 1975)
* O Itinerário dos Emigrantes (Massao Ohno 1980)
* O Último Número (Alhambra 1986)
* Dezessete Poemas Noturno (Alhambra 1992)


“A Legião dos Suicidas”:

“De noite, a esta cidade
Chegam sons que em sua fúria
Mastigam seus ruídos.

Na tarde, além dos partos,
Os crimes esperados
E a legião dos suicidas.

A pé, de ônibus, em táxis amarelos,
Aproximaram seu hálito
De cuspe e de cachaça.

Aqui abandonaram corpos
Que entre nós apodreceram
Afetando o ar que se respira

Instalaram-se à margem das calçadas
E abraçaram as crianças que ali passam,
Transmitindo seu cheiro e sua nódoa.”


Ah! sim: quanto a ser poeta, continuo a sonhar. 


quarta-feira, 15 de junho de 2011

O Bê-á-bá de Brasília - Marcelo Torres

Matéria jornalística do SBT na noite de hoje falando sobre o livro de Marcelo Torres. Assim, mais um junquês ganha a mídia nacional.

Na PUC, Antônio Torres critica cultura dos best-sellers

O escritor Antônio Torres, reconhecido no mundo literário pelo conjunto de sua obra com o Prêmio Machado de Assis em 2000, foi o convidado da vez na segunda rodada do ciclo de palestras “De lá para Cátedra”. Organizado pela Cátedra Unesco de Leitura e pelo Departamento de Letras da PUC-Rio, o encontro traz, todo o mês, um dos nomes da literatura brasileira contemporânea. O romance mais conhecido de Torres, Essa terra, é uma obra que gerou uma trilogia com a adição de O cachorro e o lobo e Pelo fundo da agulha. Essa terra, inclusive, foi traduzido para mais de 10 línguas. Segundo o professor Júlio César Valadão, diretor do Departamento de Letras, que acompanhou o autor na mesa promovida pela Cátedra, o escritor, “mais que um brasileiro, é um homem do mundo”.

Durante o evento, o escritor relembrou a dura infância no interior da Bahia e compartilhou suas primeiras memórias sobre o aprendizado da escrita e o amor pela palavra.
– Eu nunca vou esquecer a imagem da minha mãe ao chegar em casa com um objeto não identificado . Ela chamava aquilo de ABC. Quando ela me mostrou aquilo, foi uma imagem da qual eu nunca esqueci, um encantamento – conta o escritor.

Em entrevista ao Portal, Antônio Torres elogiou a internet e os novos escritores que estão surgindo na rede através de blogs, mas criticou os bestsellers. O literato acredita que esse tipo de livro é fruto da globalização e diminui a penetração das obras literárias nacionais no imaginário do leitor brasileiro.

Portal PUC-Rio Digital: Como o senhor analisa o cenário atual da produção literária no Brasil?

Antônio Torres: Hoje há tantos jovens escritores que eu não consigo acompanhar essas publicações, mesmo sendo do ramo. Isso é um fenômeno curioso pois, ao contrário do que se imaginava, o interesse pela literatura aumentou entre os jovens. O interesse de praticá-la, de ser escritor. Não há oficina literária no Brasil que fique sem participantes. Em palestras de escritores, é onde mais se vê, pois tem muita gente querendo escrever, o que é um bem curioso. A internet está por trás disso também, pois todo o jovem escritor tem um blog. O blog é o palanque desse jovem, e ele acaba criando uma comunidade de leitores através desse blog. Esses blogs são tantos e variados quanto as regiões e os estados. Hoje, não sabemos mais quem é o jovem escritor. Ele tem 18 anos? 30? Há vários jovens escritores que têm várias idades. É muito curioso o que está acontecendo. Há o surgimento de um novo escritor, que é muito interessante de se observar e ficar atento para ver até onde eles irão. Muitos desses escritores, inclusive, conseguem quebrar as barreiras da edição e entrar em grandes editoras enquanto outros ficam no universo da internet, o que não significa que não tenham expressão. O momento é bem animador, pois o interesse pela literatura e pela criação literária cresce muito entre os jovens.

Portal: Quando entrevistamos Cristovão Tezza, no último encontro da Cátedra, o escritor ressaltou a proximidade que a internet gera entre o autor e o leitor. O senhor concorda?

A.T: Eu tenho o meu site. Nesse site tem o meu e-mail e meus leitores me enviam muitas perguntas. Muitos deles são estudantes, gente que está estudando meus livros e normalmente eles querem saber sobre alguma obra específica. Como eu viajo muito, faço muitas palestras e participo de oficinas literárias por todo o país. Acabo falando com jovens que querem escrever e pedem conselhos, por exemplo. Eu realmente tenho uma grande relação com os leitores pela internet.

Portal: Qual a sua opinião sobre a influência que os bestsellers têm na nossa cultura? Acredita que eles têm poder de criar novos leitores?

A.T: Essa é uma questão mais complexa. Eu acredito que o fenômeno do bestseller está muito ligado à globalização. São livros que parecem passar por um centro de inteligência que determina que tipo de livro será bestseller no mundo inteiro. Pode ter certeza que o bestseller aqui encontra mercado em todos os lugares. Isso, para as literaturas nacionais, está sendo um problema muito sério, pois o Brasil não está inserido no imaginário global. Corremos risco de, por não estarmos inseridos nesse imaginário, não se inserir no imaginário do leitor brasileiro. Daí a importância do engajamento dos autores, de participar de eventos literários, nas universidades, nas feiras de livros e nas festas literárias. Ainda é muito pequena essa fatia de mercado, ainda estamos dependentes dos professores de português e de literatura brasileira, pois esses são os nossos leitores. São bons leitores e me repassam para seus alunos. Já houve mais interesse pela literatura brasileira. A minha geração toda foi muito bem publicada lá fora: João Ubaldo Pinheiro, Ignácio de Loyola Brandão, Márcio Souza etc. No entanto, há um recuo, nesse sentido, quando entra a globalização. As literaturas de todos os países do mundo estão sofrendo por isso, pois esse produto que se torna bestseller mundial não é, necessariamente, literário, mas um produto de mercado. Ele já vem com uma cara de mercado. Eu tenho a impressão de que a literatura em si, no mundo, está ficando restrita a um grupo bem pequeno. Mas ainda bem que temos esse grupo, pois ele ainda nos sustenta.

Portal: O senhor tem alguma crítica que faria ao ensino de língua portuguesa e de literatura brasileira no Brasil?

A.T: Eu não posso criticar, pois não conheço profundamente qual a situação real. O que eu costumo dizer é que eu gostaria que as escolas tivessem o mesmo empenho das escolas da minha infância. Eu tive uma infância rural, no entanto, minha escola formou meu imaginário e meu mundo de leitura e de escrita. Nessa escola, eu tive uma professora que amava pôr os alunos para ler em voz alta e depois escrever. Eu não sei como acontece hoje, mas eu espero que a escola esteja tendo esse cuidado com os alunos. O estudante, logo que entra na escola, e se habitua a ler em voz alta, passa a descobrir o ritmo e a cor das palavras. Até você descobrir que a palavra tem cor, tem cheiro, tem ritmo, tem imagem, tem som etc. Isso é uma percepção que vai marcar o aluno pelo resto da vida. Isso vai fazê-lo buscar sempre a sonoridade que a poesia e a prosa trazem, vai fazê-lo descobrir o que é estilo literário. Hoje, talvez, esteja havendo uma preocupação maior com a questão da leitura. Houve um vácuo nessa questão, era o país das cruzinhas: bastava fazer uma cruz na pergunta que ela estava respondida, não era preciso escrever a resposta. Curiosamente, acho que a internet está devolvendo a necessidade da escrita. O Brasil é um país ágrafo, em que a comunicação de massa levou as pessoas a se afastarem muito da escrita, essa necessidade retorna via internet. Mesmo que estejamos desenvolvendo um novo dialeto nesse meio, o internetês, não faz mal. O próprio usuário da internet percebe que as coisas mudam quando ele não está na internet, é um ato de instância. Nesse sentido, a evolução da tecnologia tem beneficiado a escrita.

Nota do Blog: Entrevista concedida a Daniel Cavalcanti para o portal da PUC-RJ.

                       

terça-feira, 14 de junho de 2011

Cineas Santos - Se essa rua fosse minha...


Dileto amigo veio visitar-me. Abancou-se, bebemos café forte, conversamos sobre amenidades, rimos um bocado. Na hora da partida, não se conteve: você está no lugar certo. Esta rua é perfeita para acoitar velhos, afirmou. Impossível não concordar com ele. Moro na Lemos Cunha há um quarto de século e posso assegurar que se trata de rua atípica, pelo menos para os padrões teresinenses. Pra começo de conversa, nela não há um bar, uma bodega, uma padaria, uma farmácia, uma birosca onde se possa comprar uma caixa de fósforos, uma maço de velas, um Cibazol. Os muros são altos e as cercas elétricas vendem a ilusão de segurança que todos procuramos. À noite, não fosse um vigilante motorizado com sua cigarra eletrônica, poder-se-ia repetir Quintana: “Dorme... Não há ladrões, eu te asseguro.../Nem guardas para acaso persegui-los...” Comprida, reta, silenciosa, a minha rua não possui nenhum atrativo especial. A nota alegre fica por conta dos passarinhos. Como ainda há árvores nos quintais, os pássaros escorraçados da periferia adonam-se de cada polegada do verde minguante. Livres das baladeiras, bem-te-vis, anuns, rolinhas e pardais cantam livremente. Pelo menos para mim, o canto dos pássaros, em liberdade, é sempre uma “promessa de vida”, como diria o poeta.

Já descrevi a minha rua em outras ocasiões, sempre ressaltando o sossego que a caracteriza. Receio que, a partir de hoje, não voltarei a fazê-lo. Por ordem ou pedido não sei de quem, resolveram asfaltar a Lemos Cunha. Na segunda-feira, acordei com o barulho das máquinas e o inconfundível cheiro de piche. Percebi que alguma coisa estava errada: os pássaros estavam mudos. Abri o portão para conferir a novidade e sondar a reação dos vizinhos. Um deles, visivelmente satisfeito, berrou: finalmente, a prefeitura se lembrou de nós, professor! Contrafeito, esbocei um sorriso chocho e, calado, engoli minha tristeza. Posso estar enganado, mas acredito que os dias (principalmente as noites) de sossego em minha rua acabaram...

Na contramão de tudo, Teresina fez sua opção preferencial pelo automóvel. Num ritmo frenético, alargam-se ruas, rasgam-se novas avenidas, mutilam-se praças, tudo para abrir mais espaço para os carros. Trata-se de uma batalha perdida. Em nenhum lugar do mundo, resolveu-se o problema do transporte urbano aumentando o número de automóveis nas ruas. Hoje, em nossa cidade, é mais fácil comprar um carro do que encontrar espaço para estacioná-lo. Paradoxalmente, a frota de ônibus cresce num ritmo lento, muito lento...

Sem ter a quem recorrer, limito-me a parodiar o poema “A rua diferente”, de Carlos Drummond de Andrade: Minha rua acordou mudada/ Os vizinhos estão satisfeitos/sabem que a vida tem dessas exigências./ Inconformados, só eu e os pássaros mudos...


domingo, 12 de junho de 2011

Luís Pimentel - Folguedo Junino

Nascido e criado no interior nordestino, sempre curti festa junina. Natal, carnaval, as folias santas ou profanas todas ficavam em segundo plano. Era no São João que o meu coração pulava fogueiras, bigodinho feito a lápis, camisa de chita, calça remendada, vomitando na gravatinha de crepom após os tórridos quentões.

Meu primeiro folguedo junino na cidade grande foi duro. Na noite do 23 de junho, lembrando das canjicas, do milho assado e do amendoim cozido preso no dente da primeira namorada (de maquiagem transbordante e pintinhas pretas ao redor dos olhos), peguei um circular na Glória (via Flamengo, Botafogo, Humaitá, Gávea, Leblon, Copacabana) para dar a volta à cidade, sentado ao lado da janela, procurando balões imaginários no céu.

Foi quando a figura se sentou ao meu lado, na altura da Praça do Jóquei. Estranhei quando pressionou a minha perna contra a sua, mas pensei tratar-se apenas de um desajeitado. Desconfiei quando a boca mole, de língua meio presa, balbuciou:

– Adoro São João.

Juro pelo santo: os olhos faziam aquele volteio das borboletas bêbadas. A mão, lânguida feito um calango, descansou sobre o meu ombro. Começou a cantar:

– Meu balãããããooo vai subir lá no céééééu... Vai subir lá no céééééu meu balãããããooo... Meu balãããããooo vai subir lá no céééééu... balãããããooo, balãããããooo, meu balãããããooo...

Fiz sinal em Copacabana, estava precisando de uma caminhada pela praia. A perna sonsa quase não me deu passagem. A boca mole e a língua presa emendavam no repertório:

–  Ai, São Joãããããooo... São Joãããããooo do carneiriiiiiinho... Você é tão bonitiiiiinho...

Onde encontraria uma canjica ou um licorzim de jenipapo, àquela hora?