quinta-feira, 16 de junho de 2011

Nossos heróis de cada dia


De A Legião dos Suicidas

Apesar de na adolescência transitar no fumacê da onda hippie, meus heróis não morreram de overdose. Ao contrário, a maioria ainda vive, e um deles, que eu pensava já morto, ressuscitou nesses encaminhamentos de e-mail da vida virtual.

Na infância, meu primeiro herói foi Pedro Malazartes (ou Malasartes), o malandro das mil e uma artes, que singrou os sete mares e aportou nas noites estreladas do arraial do Junco. Era um malandro do bem, um Robin Hood brasileiro, um Zé Carioca caipira, irmão mais velho de Macunaíma e primo-irmão de João Grilo. Não se sabe ao certo a sua origem nem se veio na Expedição Tomé de Sousa, mas o fato é que esse personagem folclórico chegou aqui com os colonizadores trazendo sua mala de artes para embalar os sonhos de justiça da gente simples do Sertão. 

Mas, perdido o encantamento da infância, outro personagem também singrou os sete mares em busca de sua mala de artes e quando retornou à sua terra foi recebido como herói e como herói permaneceu no meu entendimento juvenil: o meu irmão mais velho. Depois de passar alguns anos na Europa, retornou cheio de histórias a contar e com uma arte pronta na bendita mala: um livro escrito por ele. Como morava em outro estado, só aparecia em casa de caju em caju para tomar a bênção aos pais e prosear com os irmãos mais velhos e seus amigos de infância. Era uma festa. Devido à importância do personagem, a minha mãe tirava da cristaleira seus melhores utensílios de mesa guardados a sete chaves para ocasiões especiais. Como o almoço era um banquete aos deuses em agradecimento ao retorno do filho pródigo, crianças e pré-adolescentes não se sentavam à mesa com os adultos e só nos sobravam as rebarbas das conversas, sem direito a sobremesa. 

Foi ele quem me apresentou a Tom Sawyer, Pedrinho e Narizinho, Irmãos Dalton, Bonnie e Clyde, Asterix, Alice, Macondo e tantos e tantos que tomei tamanho gosto pela leitura que virou vício e por causa desse vício pude conviver pacificamente com a geração “paz e amor, bicho” sem a necessidade de enrolar um baseado nem participar das sessões fumacê que rolavam nos encontros dos cabeludos.

Mas ele só me presenteava a prosa juvenil. A poesia era acessada apenas nos livros de leitura ou na biblioteca da escola. Os poetas românticos eram os preferidos, porém no final de 1972 aconteceu um evento que mudou o curso da história: outro irmão foi a São Paulo e quando retornou me presenteou um livro de Celso Japiassu, um poeta paraibano, chamado A Legião dos Suicidas. Eram poemas que fugiam da lógica metrificada e açucarada de se rimar amor com ou sem dor. Alguns versos são tão contundentes que dão a impressão de tirar sangue da alma. E como são atuais...

“IV

Aqui, nos sentamos
E assistimos:
Uma vertente de caos,
Um soco,
Três estampidos.

Mas há um grito nesta rua,
Embora não se divulgue.
Em que poste, casa, líquido
Ou garagem.

Mas há um grito na rua.
Sabemos que vai gritar,
Porque são duas da tarde
E há um medo na cara
De quem se encontra a olhar.

Tem um cão que espreita a rua,
Um velho sentado ao sol,
Uma criança chorando
E três que ainda vão chorar.”

In: Quatro Ângulos Agudos

Fiquei fascinado pelo livro de tal maneira que o tenho guardado até hoje e de vez em quando faço uma releitura que tem o sabor de uma viagem de retorno no túnel do tempo até o dia que o li pela primeira vez e decidi que queria ser um poeta tal qual aquele que assinava o livro. 

Celso Japiassu nasceu e viveu a adolescência em João Pessoa, na Paraíba, concluiu o curso Clássico em Recife, se formou em Direito em Belo Horizonte, mas nunca exerceu esta profissão. Mudou-se em 1967 para o Rio de Janeiro onde vive até hoje e exerce a profissão de jornalista (e só esta semana fiquei sabendo disto, inclusive, para dar testemunho de que ainda reina no mundo dos vivos, se tornou seguidor deste blog). 

O livro que tenho em mãos é o terceiro de sete, contendo 13 poemas que nos envolvem na agudeza dos seus versos e escancaram as nossas vísceras morais. Para ler mais de Celso Japiassu, click no nome e será redirecionado ao blog dele, que também está lincado  aqui.

Seus livros:

* O Texto e a Palha (Edições MP 1965)
* Processo Penal (Artenova 1969)
* A Legião dos Suicidas (Artenova 1972)
* A Região dos Mitos (Folhetim 1975)
* O Itinerário dos Emigrantes (Massao Ohno 1980)
* O Último Número (Alhambra 1986)
* Dezessete Poemas Noturno (Alhambra 1992)


“A Legião dos Suicidas”:

“De noite, a esta cidade
Chegam sons que em sua fúria
Mastigam seus ruídos.

Na tarde, além dos partos,
Os crimes esperados
E a legião dos suicidas.

A pé, de ônibus, em táxis amarelos,
Aproximaram seu hálito
De cuspe e de cachaça.

Aqui abandonaram corpos
Que entre nós apodreceram
Afetando o ar que se respira

Instalaram-se à margem das calçadas
E abraçaram as crianças que ali passam,
Transmitindo seu cheiro e sua nódoa.”


Ah! sim: quanto a ser poeta, continuo a sonhar. 


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