sábado, 22 de outubro de 2011

Edna Lopes / Audálio Dantas - Início da festa / De volta pra casa


De Abertura da V Bienal do Livro de Alagoas

Um evento em torno de livros é festa e trabalho. Uma festa de palavras, de imagens que traduzem visões de mundo, de divulgação de ações e de trabalhos que corporificam o interesse e a paixão pelo livro e seu entorno.

Um evento desse porte e nível não é só oportunidade para que editores façam bons negócios e autores mostrem o que produziram e produzem, mas é oportunidade de encontros e reencontros, de se ouvir quem pesquisa, quem poetisa a vida, quem proseia refletindo o vivido, quem dá a notícia e quem fotografa o cotidiano e o traduz, em prosa e em verso.

Um evento assim é mesmo uma festa. E, para provar, mostro algumas fotos e digo que dá tempo de aparecer por aqui, pois a Bienal começou ontem, 21, e vai até o dia 30.

Segue um texto feito a meu pedido por Audálio Dantas, jornalista e escritor alagoano, patrono da Bienal, para publicação no jornal produzido pelo SINTEAL.


De volta pra casa


Voltar à terra, aos velhos pastos, é sempre um grande prazer. Lembro-me de meu tio Alcebíades, que chamávamos Arcebílio, que transportava cargas de rapaduras de Chã Preta para Canudos (hoje Belém), onde mantinha uma espécie de central de distribuição para abastecimento de feiras vizinhas. Uma delas era a de Tanque d´Arca, que tinha fama de ser boa.

Arcebílio vinha pelo caminho de dentro, que transpunha a serra, um atalho. Se viesse pela rodagem, precisava dar um arrudeio de mais de duas léguas. Valia o esforço de subir e descer ladeiras, mesmo porque quem penava era o burro carregado de rapadura, que vinha tangido pelo dono, este no conforto do cavalo de sela.

Lembro o tio Arcebílio porque ele contava que tanto o burro quanto o cavalo faziam corpo mole na ida pra feira, mas quando voltavam, no final do dia, nem precisavam de relho ou chicote para que trotassem avexadinhos.

No caso do burro, poderia ser pelo alívio da carga, visto que as rapaduras tinham sido vendidas, mas e o cavalo, que voltava com a mesma carga, levando no lombo o mesmo peso da viagem de ida, ou seja, o tio Arcebílio escanchado na sela, todo ancho?
-– Ah – dizia o tio Arcebílio –, é que bicho tem ciência!
E explicava:
– Cavalo – ele dizia carralo – conhece quando tá voltando pro pasto. Fica assim avexado, dana-se até pra correr.

Lembro a historinha porque estou de volta às Alagoas. Faz muito tempo que vim fazer a feira aqui em São Paulo e, sempre que posso, dou um jeito de voltar. Por mais que tenha corrido mundo (já andei por américas, europas, ásias, áfricas, franças e bahias), essas voltas me dão uma gastura boa. Tem vez que até sinto antecipado cheiro de mato, de fruta, de flor de gitirana, umas que davam na beira do caminho de dentro por onde o tio Arcebílio viajava, um caminhozinho todo torto que pulava as aguinhas dos riachos da serra (digo isso porque vi, admirei, num dia em que ele me levou na garupa do cavalo).

Pois é, daqui a uns dias estarei de volta a esses velhos pastos. Será uma volta diferente de muitas outras. Gente amiga, importante, aí da terra, decidiu me prestar homenagem. De repente, virei um alagoano ilustre. Tanto que me honraram com o título de patrono da V Bienal Internacional do Livro de Alagoas. Fiquei até meio abestado com a honraria.

Não é pouca coisa. Já vi uma dessas bienais, a quarta, e fiquei impressionado com o capricho com que foi organizada. Patrocinado pela Universidade Federal de Alagoas, o evento nada fica a dever a outros do gênero, bem mais antigos, que se fazem no País. Seu sucesso se deve ao empenho da Reitoria da Ufal, conduzida pela profª Ana Deise, e à teimosia da profª Sheila Maluf, que é da espécie de gente que enquanto descansa carrega pedras.

Pois estarei aí de volta, no dia 21, quando a Bienal será inaugurada. Vou todo ancho, cheio de "patronice".


domingo, 16 de outubro de 2011

Dedicatória de grego

Ela não era a Amélia de verdade. Não nos termos imortalizados nos versos de Mário Lago e Ataulfo Alves, a Amélia paciente, contrita e asceta, que passava fome e ainda achava engraçado não ter o que comer.

Essa Amélia da qual vos falo vivia longe do burburinho do samba, não era anoréxica e nunca me disse “Meu filho, que se há de fazer?” quando me via contrariado. Para ser sincero, ela nunca me viu acabrunhado com apreensões temporais; não porque eu viva no mundo da Lua, sem preocupações aparentes nem dívidas a pagar, mas pelo simples e único motivo dos nossos caminhos nunca terem se cruzado. Mas nem de longe essa Amélia é uma figura de linguagem ou uma retórica sentimental.

A existência de Amélia é tão certa quanto o amanhecer do dia a cada manhã. Ela entrou na minha vida pela dedicatória de um livro de poesias de um autor amazonense, cujo nome me dou o direito de não declinar para não ser motivo de crime passional, vez que, pelo escrito na noite de autógrafo, a paixão era forte e o “tesão” mais ainda, porém, pelo andar da carruagem, tudo leva a crer que o romance foi desfeito e a tal musa inspiradora colocou sua preciosa prenda à venda em um balaio na porta de um sebo em Manaus. 

Já li tantos livros depois que deixei de ser analfabeto que às vezes confundo as obras do Mestre Picasso com outra coisa e, por esse motivo, meus cinco leitores haverão de perdoar o meu lapso de memória momentâneo: um cronista das minhas preferências juvenis uma vez escreveu sobre o achado nas prateleiras de um sebo. Ele era daqueles que tinham a mania de vasculhar os sebos da sua cidade e em um deles encontrou um livro seu com a dedicatória a alguém de suas relações pessoais. Comprou o dito cujo e reenviou ao amigo com um bilhetinho preso à capa dizendo compreender a necessidade financeira que o mesmo passou a ponto de precisar vender seu presente e que, por causa disso, arrematava o livro e devolvia ao seu legítimo dono. Ou coisa mais ou menos assim e que já faz tantos anos que li essa crônica que me admiro de ainda me lembrar da história.

Edna, a minha cara-metade que jamais venderia um livro a um sebo, com ou sem dedicatória, foi quem trouxe o livro de Manaus e a especulação devida sobre os motivos da Amélia ter se desfeito de tão preciosa prenda. Será que ela se zangou pelo “tesão” explícito da dedicatória porque ela era uma mulher comprometida e não podia se expor numa vitrine qualquer ou simplesmente o tal tesão dispersou-se nas águas escuras do Rio Negro?

Pelo sim, pelo não, Amélia deve ter gostado da dedicatória, mesmo sendo ela uma convicta evangélica, dessas que não depilam as pernas e só fazem sexo apenas para procriar, tal qual escrito nas Sagradas Escrituras. Mas, cutucando a vaidade feminina com vara curta, qual mulher não gosta de se achar um tesão ante o olhar masculino, ainda mais na terra em que o boto impera e reina nas mil e umas noites? 

Por outro lado, como o autor escreveu “tesão” com “z”, e somente Tânia, Tereza, Tiana, Tainá ou qualquer outra principiada com “tê” poderão ser “Tezão”, Amélia pode ter se desgostado com o erro crasso de Português logo na única página em branco dedicada a ela e temeu encarar o que estava por vir entre as páginas mal traçadas daquele livro. Como toda mulher de caráter, decidiu que não leu e não gostou daquele livro e deu uma destinação nada honrosa àquele que não soube discernir entre um “tê” grande e os tais desejos sexuais.

O livro, tecendo loas às frutas amazonenses, não frutificou no relacionamento amoroso entre o poeta e a musa que não tem nome de fruta e que, talvez por esse motivo, deixou de ser desfrutável. 

Apesar do imenso rio margeando a cidade de Manaus, já dizia a minha avó: quem nasce para lagartixa nunca chega a jacaré.


sábado, 15 de outubro de 2011

Cineas Santos - Sinal fechado

Avenida Maranhão ao meio-dia: sol de cozinhar o quengo. O trânsito lerdo como uma lesma estropiada. Para evitar a tentação de repetir “Um dia de fúria”, liguei o som e fiquei ouvindo Joe Henderson redesenhando, no sax, as melodias sofisticadas de Tom Jobim. De repente, fecha-se o semáforo. Ao meu lado, para um automóvel com uma jovem senhora à direção. Com se já me conhecesse desde a eternidade, esboça um sorriso e dispara: “Vi o senhor e fiquei me perguntando: como pode um homem com tamanha inteligência continuar pobre?”. Antes de engendrar uma resposta qualquer, pensei: meu Deus, minha pobreza tornou-se acintosa, já é visível a distância. A cidadã continuou: “Em nosso país, inteligência não tem valor nenhum. Veja esses jogadores de futebol, esses cantores bregas, todos milionários, e um homem como o senhor, com a sua competência, pobre, pobre...” O sinal abriu e a cidadã se foi, queixando-se da minha incômoda pobreza. Lembrei-me de uma velha canção na voz nasalada do Miltinho: “Cara de palhaço/pinta de palhaço/roupa de palhaço/Foi o que arranjei pra mim”. É fato: tenho cara de pobre.

Acho que minha pobreza sempre foi visível, eu é que não me dava conta disso. Certa feita, atendendo a convite de uma empresária emergente, entrei numa loja chique onde se vendiam artigos de luxo. Eufórica, a proprietária me mostrava cada detalhe da decoração como um guia turístico mostra os afrescos da Capela Cistina a turistas de primeira viagem. Numa das seções, uma placa anunciava: “À vista: 20% de desconto.” “À prazo: em 4X sem juros”. Na saída, a cidadã me perguntou: “Gostou, professor?”. Respondi: Sim, minha senhora, e mais gostara não fosse o acento indicador da crase antes da palavra prazo... A empresária não se fez de rogada: “O senhor é pobre mesmo, professor! Entra numa loja de primeiro mundo e fica procurando erro de crase!”. Repeti a máxima do filósofo Edison do Ministério de Nossa Senhora: “Cada um para o que nasce”. E mais não disse.

Quando a cidadã do automóvel se foi, pensei comigo: não estaria aquela jovem senhora projetando em mim suas queixas e ressentimentos? Até onde me lembro, nunca deleguei a ninguém o direito de queixar-se ou indignar-se em meu nome. Sou pobre desde sempre e não faço disto pretexto para odiar os ricos do mundo. Está escrito: “Pobres, sempre os tereis convosco” (João 12, 1-11).

Em outra oportunidade, eu teria dito: minha senhora, para quem nasceu no sertão do Caracol onde não havia água nem livros, até que fiz boa colheita. Hoje, se o desejasse, poderia afogar-me com a água de que disponho. Quanto aos livros que tenho, precisaria de pelo menos três reencarnações para lê-los. Não persegui a fortuna, não atropelei ninguém, não vendi a alma ao diabo, não tenho sido pesado a ninguém. Ao longo da vida, conquistei a estima de alguns e o respeito de muitos. Para um homem do meu tope, basta.


sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Antonio Cândido fala sobre os 75 anos de "Angústia"

Caros leitores:

Enquanto me refaço da viagem, vejam essa belíssima entrevista do grande crítico literário Antonio Cândido no programa Entrelinhas e seu depoimento no simpósio Graciliano Ramos. 



sábado, 8 de outubro de 2011

Maurício Melo Júnior - Andar com fé

Bebíamos cerveja e falávamos de poesia, dois belos exercício para quem mora na aridez do cerrado, sob a sombra imensa dos edifícios feitos de concreto armado e modernidade. Naqueles idos o poeta Cassiano Nunes ainda se dava ao direito de degustar seu campari sem máculas. E ali estávamos entre goles e versos.

Um moço, desses que se equilibram nas desigualdades sociais de uma cidade qualquer, como quem nasce das sombras entra no bar e nos brinda com pequenos panfletos ordinários. Cassiano foi quem deu atenção ao papelzinho, a propaganda de uma brilhante cartomante capaz de desvendar todos os mistérios de nosso futuro e nos guiar para infalíveis dias melhores. “Não posso acreditar numa coisa dessas”, sentenciou o poeta, e nos contou o porquê.

Ele morava ao lado da casa de uma dessas videntes. A moça vivia à tripa forra, com carro de luxo e alto bem-estar social. Lendo na varanda, deitado em sua rede, o poeta, já aposentado como professor universitário, podia ver a romaria cotidiana à casa da vizinha. Isso de segunda a sexta, posto que, nos finais de semana, funcionária metódica, ela se dedicava às lidas domésticas e ao descanso. E foi num desses dias que ela pôs para secar nas grades de sua casa um imenso tapete. Fim de tarde, finda a faxina percebeu que alguém mais experto levara seu tapete. E Cassiano nos lembrava: “Se ela é capaz de adivinhar o futuro, como não previu que um ladrão passaria em sua porta?”

Verdade. Talvez o ofício destas moças seja mesmo o de se valer da ilusão alheia, da fé que transporta tanta gente, como Nazaré, uma doméstica que arrumava a bagunça de nosso tempo de estudante no Recife. Morávamos em Afogados em uma casa de muro baixo, como então era comum. Voltando do colégio, com relógio batendo quase uma da tarde, encontrei a moça conversando com alguém no portão. Atarantado com o excesso de livros que carregava, sempre uma cota bem além do que me exigia os professores, entrei formulando os cumprimentos de praxe. Fui tomar banho e sai do banheiro com os gritos escandalosos de minha irmã: “Como você fez uma besteira dessa?” Nazaré dera todo seu salário à mulher que prometia tirar dela um encosto que a estava levando a se envolver com um homem casado, o que desgraçaria de vez a sua vida.

Os pressupostos da fé sempre a dominar a esperança.

Outros encontros tive com estes mistérios.

Jornalista de ofício, cobria a movimentação de uma feira de livro em Brasília. Num almoço com os autores convidados, a poeta Hilda Hilst confessou-me que justo naquele dia da semana ela, como de praxe, precisava consultar um desses oráculos. E, claro, queria minha ajuda, já que não conhecia nenhum mago da cidade, a mesma situação em que me encontrava. Apelei para uma amiga que escrevia uma coluna esotérica no jornal e que me passou o telefone de uma certa Tia. Liguei do restaurante mesmo e deixei tudo acertado para o encontro. E Hilda me faz mais um apelo: “Você vai comigo?” Fui.

Pelo caminho a poeta contou-me de sua pouca intimidade com a fortuna. Nascera numa família de posses, mas o tempo se encarregou de levar tudo, inclusive sua intensa beleza física. Foi uma moça longilínea, elegante, de riso largo e olhar marcante, vivo. Belíssima, recebeu incontáveis propostas de casamento, mas dedicou-se aos namorados, como Vinícius de Moraes e o ator Dean Martin. E em Paris, solitária em um bar, foi assediada por um senhor de modos determinantes. Convencido do insucesso de suas investidas, o homem quebrou o copo em que bebia uísque, pagou a conta e se foi para sempre. Era Howard Hughes, então o homem mais rico do mundo. 

Minha amiga não tinha intimidades com a fortuna, e por isso estávamos ali, na morada da Tia, um apartamento pequeno e recheado de coisas, uma atmosfera pesada, opressiva. Fiquei na sala enquanto Hilda foi se consultar no quarto. Saiu impressionada. E aí a vidente se volta para mim: “Preciso lhe dar um passe.” Desconversei, mas novamente não resisti aos apelos da poetisa. E então fui banhado com um perfume fortíssimo e de cheiro terrível. No final recebi a sentença: “Você está destinado a um futuro brilhante, mas há um problema em sua vida. Sua mulher. Você precisa se separar para cumprir seu destino de sucesso.” Mas naquele instante meu único interesse era chegar em casa e tomar um bom banho.

Impressiona-me a capacidade de manipulação de vidas dessas videntes, dessas pessoas que simplesmente brincam de dados com o cabedal de crenças de cada um.

Há toda uma indústria de vendas de esperanças, sobretudo nestes espaços milenaristas em que vivemos. Depois de um século tecnológico, onde as máquinas ditaram o ritmo das vidas, ficamos carentes de mistérios. E daí a enxurrada de magos e videntes.

É certo que a fé ajuda a sustentar os homens nos seus princípios éticos. “A fé não costuma faiá”, nos diz Gilberto Gil. Pena que todos os seus benefícios sejam esquecidos e sua força seja usada para manipular vidas e rechear bolsos espertos. 

Como não creio que qualquer homem possa saber do futuro de outro e também tenho por princípio cuidar de minha própria vida, não me separei até hoje, contrariando a sugestão da Tia. Não sei se fiz certo ou errado, certeza mesmo é que me sinto muito feliz com minha escolha. Não foi desta vez que me roubaram o tapete. E assim prossigo, com fé na vida.


quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Cineas Santos - Tempo quente

Dileta amiga, sempre atenta às questões ambientais, postou no facebook uma pergunta que, de tão óbvia, dispensaria comentários. “Teresina está mais quente do que nunca?”. A resposta até as pedras sabem. A despeito disso, choveram comentários curiosos. Alguém sugeriu que a solução seria mudar-se para a serra, “Viçosa, talvez”. Um outro argumentou que “o problema se chama Suzano”. Não faltou quem apelasse para o humor: “Não sei responder porque o calor cozinhou meu cérebro”. Até aí, nada de extraordinário: o face é o local onde se descascam abobrinhas sem medo do ridículo. A questão é outra. Nenhum dos “comentaristas” nem sequer tocou na questão essencial: a destruição da cobertura vegetal da cidade. Consta que, ao sobrevoar Teresina na década de 30, o escritor Coelho Neto, impressionado com a exuberância do verde, teria agraciado a cidade com o título de “Cidade Verde”. Os teresinenses tomaram o elogio como ofensa e resolveram reduzir tudo a cinza. “Progresso se faz com trabalho e concreto”, afirmou um prócer da urbe.

Ainda não se fez um levantamento do número de árvores que se cortam diariamente em Teresina. Posso assegurar-lhes que é algo impressionante. Eliminam-se as árvores sob os mais diversos pretextos: “sujam os quintais” , “racham as calçadas”, “encobrem as fachadas”... É preciso que se diga: os gestores têm grande parcela de culpa nisso tudo. Até hoje não se fez um projeto sério de arborização da cidade. O que tivemos, até agora, foram “tendências”. Assim, houve o momento das algarobeiras, das acácias, do algodoeiro, do fícus. Agora, é vez do neen. Ora, o verde de Teresina sempre esteve concentrado nos quintais que, como era de se esperar, não resistiram à gula da especulação imobiliária. Onde ontem existia um quintal (recoberto de mangueiras e cajueiros), hoje rebrilha um edifício de linhas modernosas ou se esparrama um supermercado como nome chamativo. Na periferia da cidade, o chamado “cinturão verde” foi engolido pelas favelas, rebatizadas com o nome de “vilas”. A equação é simples: menos árvores, mais calor.

Para piorar a situação, a Prefeitura resolveu investir pesado no asfaltamento das ruas, notadamente na zona leste onde, supostamente, moram os “formadores de opinião”. Acrescente-se a isso o volume de veículos trafegando nas ruas, os aparelhos de ar-condicionado, as queimadas... 

Sem querer ser pessimista, recorro ao velho Millôr para deixar uma sugestão à dileta amiga que se queixa do calor de Teresina: “Se está ruim, aproveite; amanhã, pode estar pior”.


segunda-feira, 3 de outubro de 2011

O matador do matador de aluguel - A revanche de Luís Pimentel

A PEDRA NO CAMINHO
(Cordel de uma peleja)

Se o papel aceita qualquer coisa,
cada um escreve o que bem quer.
Falcatrua, parolas, coisa e lousa,
e até mexerico de muier.
Mas daqui do ninho onde a verdade pousa,
só conto história como a história é.

Eu estava mesmo na porta do estádio
vendendo uma a uma minhas laranjinhas,
quando chegou gritando pelo rádio
o bando feroz de Alagoinhas.
Se em campo o Touro do Sertão gemeu,
fora dele foi a Feira de Santana que tremeu.

Hoje digo ao amigo Seu Tom das Quebradas,
que fiquei de fora naquela algaravia.
Não fui o autor da bíblica pedrada,
pois eu sou até torcedor do Bahia!
Mas mesmo reconhecendo que são pedras passadas,
acho que o alagoinhense de então merecia (pela ousadia).

Agora, ao reencontrar o bravo atleticano,
mandando chover nas águas das Alagoas,
proseando, cantando e flimareando,
levando a vida assim tão numa boa,
me pergunto para que ficar lembrando
de uma pedrinha no caminho (ou na cabeça) tão à toa?

Eu festejo no entanto é o reencontro
que me deu de verdade tanta emoção.
Que sensibilizou ponto a ponto
esse filho distante de Gavião.
Que acertou no Tom, sem desconto,
e ganhou mais um verdadeiro irmão.


domingo, 2 de outubro de 2011

Salgado Maranhão - Outdoor

Do Velho Ancião (Cineas Santos) recebi abaixo:

"Irmãos e irmãzinhas: é uma alegria ver a face de um poeta estampada num outdoor, onde normalmente se anunciam bens de consumo, nem sempre recomendáveis. A alegria é ainda maior se o poeta for Salgado Maranhão, uma das vozes mais lúcidas da moderna poesia brasileira. Viva Caxias, que ama os poetas que tem. Uma semana luminosa para todos.

LUNAR

A cara da lua
está partida ao meio,
feito um queijo ruído;
meu coração também
vive partido
- à míngua:
de amar como quem se afoga,
de amar como quem se vinga.

(Salgado Maranhão - A Cor da Palavra - Ed. Imago - BN)"



sábado, 1 de outubro de 2011

O matador do matador de aluguel


Não gosto de comentar livro e música porque gosto e mau gosto cada um tem o seu. Por exemplo: meus vizinhos me acham um chato porque não vejo mérito artístico nem qualidade musical na dupla Ximbinho-Joelma, os tais Colapsos, digo, Calypsos, mas que fazer se quando eles cantam os meus ouvidos doem?

Entretanto, não posso deixar passar em brancas nuvens o último livro de crônicas de Luís Pimentel, chamado “O matador de aluguel”, título bem alagoano, embora seja o autor um autêntico baiano, mas esbarro no seguinte dilema: se eu falar bem, algum dos meus seis leitores irá dizer que assim só procedo porque Luís Pimentel é meu amigo, fomos vizinhos de bairro quando adolescentes e até insinuará maldosamente que andamos trocando pelas ruas de Feira de Santana. Calúnia. Pura calúnia. 

Por outro lado, se eu descer a ripa no livro do cronista feirense, o povo de Feira de Santana dirá que falo mal por puro despeito ou para me vingar da pedrada que ele me deu na saída do Estádio Joia da Princesa, num jogo mal acabado entre o Atlético de Alagoinhas e o Fluminense de Feira de Santana, numa era que ninguém sonhava com torcida organizada. Para quem não sabe ou não se lembra, o time feirense reinou absoluto no futebol do interior da Bahia até a chegada do time alagoinhense, em 1971. No ano seguinte, não só o Atlético estava consolidado, como uma partida entre esses dois times se tornara clássico interiorano, com a mesma paixão de um Ba-Vi.

Em 1972 o Atlético foi jogar pelo campeonato baiano em Feira de Santana. Era o chamado “jogo de ida” e o time de Alagoinhas resolveu ganhar o jogo. Quando o juiz deu a partida por encerrada, a torcida do Atlético ficou encurralada no estádio, sob uma enxurrada de paus e pedras. Todos os carros com a placa de Alagoinhas foram depredados e muitos torcedores saíram do estádio direto para o pronto-socorro, depois que a polícia chegou e baixou o sarrafo na torcida agitada do Fluminense.

Eu estava lá, inocentemente vestido de torcedor do Atlético, e ainda me causa arrepios o impacto da pedra na testa e o gosto de sangue na boca. Fixei-me no agressor, um garoto vendedor de laranja, que eu o reconheci como o mesmo garoto morador de Queimadinha, chefe de uma gangue-mirim e que vivia procurando encrenca no bairro vizinho, Cidade Nova. Isso em 1971, quando morei lá, na Cidade Nova. Certa vez estávamos numa festa de aniversário de um amigo, no Queimadinha, e fomos sumariamente expulsos por essa gangue a golpes de pau e pedra, pra desespero do dono da festa. Só não sabia que o projeto de Al Capone vendia laranja na porta do estádio em dia de jogos.

No primeiro momento ele se mostrou surpreso. Só não sei se por ter me reconhecido como ex-vizinho de bairro ou pela precisão da pedrada. Passei várias semanas de cara inchada, olho torto, bebendo água por canudo, e até a minha namorada me deu o vale em caráter irrevogável. Não podia nem apelar pra temporariedade do trauma porque a boca não balbuciava palavras e ainda tive que engolir calado a insinuação maldosa de que Frankenstein havia ressuscitado. 

Esse era o meu quadro clínico depois de um domingo de lazer em Feira de Santana. Daria tudo na vida pra pegar aquele vendedor de laranja no jogo de volta. Vingança é um prato que se come frio, mas os torcedores do Fluminense, mais conhecido como “Touros do Sertão”, não apareceram. Amarelaram. No fundo, no fundo, eram umas vacas! 

Mas certas horas a gente se dá conta de que esse mundo é muito pequeno. Ou “dá muitas voltas”, como dizia o meu pai. Em reminiscências ao sabor da brisa marinha da praia do Mirante da Sereia, descobri que o vendedor de laranja que me levou a nocaute era o hoje pai do matador de aluguel, Luís Pimentel. Um abraço fraterno foi a minha mais cruel vingança, que degustamos com água de coco, misturando lágrimas com cachaça. Boas lembranças, cujos ressentimentos ficaram enterrados nos escombros da juventude. 

Não sou bom em resenhas literárias ou coisas que tais, mas há certos livros que a gente lê que fica atravessado na garganta querendo falar deles pra todo mundo. É o caso do Matador de Aluguel. O livro é muito divertido e com algumas histórias curiosas de certas personalidades musicais. Vale a pena investir alguns reais na aquisição do mesmo. Só não sei quanto custa, por que o que tenho aqui foi presente do autor para o meu filho Vinícius e fica chato se procurar o preço de um presente. Mas deve custar menos que um sanduba da Mac Donalds.

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Cineas Santos - E o Pedro partiu...

Não fosse lugar-comum, eu diria: a vida perdeu Pedro José de Sousa, mais conhecido como Pedro Macaquinho. Direi apenas: os sertanejos do sul do Piauí perdemos muito da nossa alegria com a partida do Pedro. Macaquinho e eu nascemos na mesma aldeia: Lagoa dos Tubis, mais tarde rebatizada com o pomposo nome de Campo Formoso. Ali faltava quase tudo, até o essencial: água. Menino ainda, Pedro descobriu que tinha a alma encharcada de música. Por falta de um instrumento à mão, fez-se “tocador de sovaco”. Onde houvesse plateia, lá estava o garoto entanguido, meio zarolho, mão esquerda sob o braço direito, marcando o ritmo do xote “O Cheiro da Carolina”, de Luiz Gonzaga. Tantas fez que acabou agraciado com o apelido de Macaquinho. Mais tarde, para fugir da fome, da sede e do rabo da enxada, mudou-se para o Canto do Buriti onde se fez zabumbeiro do Mané Vicente. O mais é do conhecimento geral: Pedro Macaquinho tornou-se o showman do sertão. Tocava, cantava, dançava, contava piadas e, principalmente, pedia. Pedia até que lhe pingassem colírio nos olhos. Certa feita, para me comover, engendrou um expediente inimaginável: “Meu bichim, tô sem obrar há três dias”, afirmou. Rebati de bate-pronto: Tome um purgante de óleo de rícino, Macaquinho. É tiro e queda. Pedro voltou à carga: “Meu bichim, tu num tá entendendo nada. Tô sem obrar porque num tô comendo nadinha, nadinha...”. Impossível resistir a um apelo desse naipe.

Há uns três anos, Pedro vinha lutando bravamente contra um câncer de próstata. Já muito doente, encontrou alento para gravar um CD que, de tão popular, chegou a ser pirateado em Canto do Buriti. O título não poderia ser mais adequado: The Best of Pedro Macaquinho. Este ano, fiz questão de trazê-lo para o Salão do Livro do Piauí, no início de junho. Pedro chegou visivelmente abatido, com a respiração sincopada e dor no peito. Mal me avistou, disparou: “Meu bichim, me dá um caché pra dor nos peitos, que eu tô que não me aguento”. Graças à pronta intervenção do Dr. Gisleno Feitosa, Pedro Macaquinho pôde apresentar-se para alegria do público. Em agosto, realizamos o Primeiro Festival de Sanfona de São Raimundo Nonato. O Macaquinho não marcou presença. Desconfiei que alguma coisa estivesse errada: os festejos de agosto, em S. Raimundo Nonato, sem a presença do Macaquinho não têm o mesmo brilho, a mesma alegria.

Na semana passada, recebi a triste notícia: o Macaquinho se fora sem tempo de ver o documentário que estou produzindo com ele e outros sanfoneiros da região. Parafraseando Bandeira, imagino Macaquinho entrando no céu: “- Xarazinho, me arranja aí um tiquinho de comida, que a viagem foi puxada”. E São Pedro, bonachão, “- Entra, Pedro, que isso aqui tá uma leseira só. Trouxe a sanfona?”. E o céu nunca mais será o mesmo...


quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Era Sarney: Origem ou Continuidade do Caos?

Coisa que nunca saberemos: se o Maranhão era pior ou melhor antes da era Sarney. Pior seria impossível vez que o estado continua na rabeira de todos os indicadores sociais. O filme foi encomendado por Sarney a Glauber Rocha, para ser usado como propaganda de governo, mas o Imperador do Maranhão não imaginou que o Glauber focaria sua lente pra outros objetivos. Como disse o Nelson Motta: "Glauber dizia que o artista também tem de ser um profeta; mas a sua obrigação é de profetizar, não de que as suas profecias se realizem. O discurso de Sarney e as imagens de Maranhão 66 são os mesmos do Maranhão 2011, num filme trágico, cômico, e, 46 anos depois, profético".

Veja o vídeo antes que o vate maranhense faça valer sua autoridade.

Tempestade de Ideias Nº 1: Antonio Torres

"Com o prosaico nome de Tempestade de Ideias, que veio do manjado “Brainstorm”, estreia a mais nova minissérie da TV Cronópios. O programa número um traz o registro de um encontro com o grande escritor Antônio Torres, autor de Essa Terra, O cachorro e o lobo, Pelo fundo da agulha e muitos outros títulos premiadíssimos.

A convite de Marcos Ferraz, Diretor de Criação em publicidade e fundador da Escola de Redatores (www.escoladeredatores.com.br) em São Paulo, a TV Cronópios teve o privilégio de gravar o encontro dos dois para os cronopianos. Antônio Torres é um dos nossos monstros sagrados da Literatura. E você vai ver e ouvir porque, assistindo a este vídeo exclusivo.

Estamos namorando essa parceria com o Marcos Ferraz e a Escola de Redatores para registrar outros encontros especiais como este. Aguarde os novos Tempestade de Ideias."

Texto e vídeo copiados do portal http://www.cronopios.com.br/site/artigos.asp?id=5176


Encontro com Antônio Torres from TV Cronopios on Vimeo.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Pausa para a poesia: Eduardo Galeano

Luís Pimentel - Quando o Chico Viola morreu

“Chora Estácio, Salgueiro e Mangueira/
Todo o Brasil emudeceu/
Chora o mundo inteiro/
O Chico Viola morreu/
Na voz do seu plangente violão/
Ele deixou seu coração/
Partiu, disse adeus, foi pro céu/
Foi fazer, foi fazer/
Companhia a Noel.”
(Chico Viola, de Wilson Batista e Nássara)


“Até a lua do Rio/
Num céu tranqüilo e vazio/
Não inspira mais amor/
O violão desafina/
Porque chora em cada esquina/
A falta do seu cantor...”
(Francisco Alves, de Herivelto Martins e David Nasser)

Ele morreu há 59 anos, no dia 27 de setembro. Foi considerado por muitos o maior cantor do Brasil de todos os tempos (para outros, este título pertencia a Orlando Silva). Foi considerado também um comprador de sambas, carregando a fama de exigir seu nome nos créditos da canção alheia para poder gravá-la. Consta que Cartola e Ismael Silva tiveram que ceder inúmeros sambas para ele, em troca da gravação e de alguns caraminguás para o conhaque. Mas Francisco Alves foi também um artista muito querido por seus pares e amigos. O que provam, por exemplo, as duas homenagens póstumas acima prestadas por compositores do prestígio de Wilson Batista, Nássara, Herivelto Martins e David Nasser. As opiniões se dividiam quando o assunto era o caráter do Chico Viola (pseudônimo com qual assinou algumas autorias), mas quanto a um tema não existia controvérsia: era o rei da voz, dono de um gogó admirável.
O maior cantor do Brasil (insisto: para alguns, João Gilberto entre eles, esse título sempre pertenceu a Orlando Silva) foi também o que mais gravou. Em 33 anos de carreira (1919-1952) colocou na praça 525 discos em 78 rotações. Foram 983 gravações que serviram para revelar os nomes de compositores como Ary Barroso, Cartola, Ismael Silva e Lamartine Babo, além de cantores como Mário Reis, Dalva de Oliveira e Carmem Miranda, que com ele dividiram o microfone.
Francisco de Moraes Alves nasceu no Rio de Janeiro, no século retrasado, dia 19 de agosto de 1898. Era filho de imigrantes portugueses e começou a trabalhar aos 18 anos de idade, em uma fábrica de chapéus. Ainda na juventude flertou com o teatro, fazendo parte da Companhia de Espetáculos João de Deus Martins Chaves. Descoberto pelo compositor Sinhô (José Barbosa da Silva, 1888-1930), em 1919 gravou três sambas dele que fizeram muito sucesso no carnaval do ano seguinte: O pé de anjo, Fala meu louro e Alivia estes olhos.
Uma coisa jamais se contestou na carreira de Chico Viola: a versatilidade. Colocou sua voz a serviço de quase todos os gêneros musicais. Gravou sambas, marchas, canções românticas, toadas, maxixes, paródias, hinos, o que caiu em suas mãos. Também deu seus pitacos como instrumentista, tendo feito alguns discos em dueto de violões com o craque do instrumento Rogério Guimarães.
Francisco Alves jamais esquentou banco nas gravadoras. Passou por praticamente todas elas, principalmente as grandes. Gravou na Odeon (242 discos, de 1927 a 1934), Parlophon (57 discos, de 1928 a 1931), R.C.A (48 discos, de 1934 a 1937), Odeon novamente (26 discos, de 1937 a 1939), Colúmbia (15 discos, de 1939 a 1941) e outras.
Reconhecido pelos brasileiros como o maior nome do rádio e dos estúdios de gravação durante toda a sua trajetória artística, Francisco Alves teve a carreira interrompida no auge do sucesso, em 24 de setembro de 1952, por um acidente de carro. O Buick de sua propriedade chocou-se com um caminhão, na Via Dutra, e o artista morreu na hora. O país parou para chorar, por vários dias, a perda do grande ídolo.
Por ter trabalhado tanto, Francisco Alves gravou quase tudo o que se ouviu em sua época. Canções de qualidade e outras que foram ao disco apenas para cumprir tabela com as gravadoras. Mas algumas gravações marcaram profundamente os seus admiradores. Chuá-Chuá, Não quero saber mais dela, A malandragem, Deixa essa mulher chorar, Nem é bom falar e O que será de mim? (“Se eu precisar algum dia/De ir pro batente/Não sei o que será/Pois vivo na malandragem/E vida melhor não há...”).