terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Notícias do front carnavalesco


Seu nome era Lourenço da Fonseca Barbosa, porém, dito assim, quase ninguém associa o nome ao homem. Trata-se de Capiba, personagem mais famoso de Surubim, em Pernambuco, conhecido nacionalmente como o Poeta do Frevo, o ritmo alucinante do carnaval pernambucano.

Contou-me a minha amiga Clara Suassuna, que privou da amizade do poeta e compositor pernambucano, que uma vez Capiba foi se apresentar na Europa. Uns amigos de Recife o incumbiram de trazer uma encomenda do velho continente, coisa pequena e leve. No retorno, entregaram-lhe a tal encomenda, um pacotinho do tamanho de uma caixa de chocolate. Quando desceu do navio, no porto de Recife, uma roda de amigos enlutados o aguardava. Um deles perguntou a Capiba:

– Trouxe a encomenda?
– Trouxe, mas na viagem deu muita formiga no doce e eu tive que jogar a caixa fora.
– Doce? Que doce?! Eram as cinzas do nosso avô que antes de morrer pediu pra ser cremado e depois a gente espalhar as cinzas no mar de Pernambuco!

Não sei se Capiba foi cremado quando morreu em 1977, sei que, com ele, foi enterrado o carnaval de Pernambuco que, tal qual o carnaval  de Salvador, hoje faz carnaval para inglês ver. Em Olinda, berço do frevo, o Harmonia do Samba com o bumbum do marido da Carla Perez fez muito sucesso. Em Recife, o bloco puxado pela Banda (Apo)Calypso, aquela que a moça se engasga quando canta, só perdeu em público para o Galo da Madrugada. Lulu Santos, que nunca cantou um frevo na vida, foi quem abriu o carnaval no Marco Zero.

Em Salvador o último dos moicanos foi enterrado: o irreverente bloco Mudança do Garcia. O ponto alto desse bloco eram os cartazes colados em carroças atacando os políticos incompetentes. Não proibiram os cartazes, mas proibiram o andar da carruagem. É a velha Bahia, nunca dantes tão dessemelhante e triste. Um prefeito incompetente e um governador bêbado. Como não se bastassem tantas invenções para se restringir o acesso do cidadão ao carnaval, privatizando a maior parte do espaço público, inventaram agora um tal de “Pop Corn Experience”, nome exótico para acachapar o cidadão: simplesmente isolam as calçadas, com corda, e cobra-se certa quantia para o folião ficar dentro. Como se não bastassem as cordas dos blocos; agora também se amarra o cidadão pagador de suas obrigações tributáveis na máquina da ganância de alguns privilegiados.

Em Maceió, que tem uns garotos fazendo barulho na Pajuçara, não se cobra nada, em compensação, nada se vê. É que no espaço reservado ao carnaval, se esqueceram de colocar iluminação. E no meio do breu, o locutor oficial, pago pelos contribuintes, agradeceu aos guardas da Secretaria Municipal de Trânsito pelo “livre arbítrio dos automóveis”.

Não estranhem que isso é coisa corriqueira nos meio de comunicação aqui e acolá. Um dos mais badalados jornais on line de Alagoas deu em letras garrafais: “Cabo atira em major e mata filho”. Já lá dentro, na notícia, diz que “o sargento foi preso em flagrante”. Como não há espaço para comentário, fiquei sem saber como foi que o cabo foi promovido a sargento depois dos tiros.


segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Cineas Santos - O admirável mundo vitual


De Mudando o status no Facebook

Em 2002, publiquei um arremedo de crônica com o título Crônica da cidade desconhecida. Ano do sesquicentenário de Teresina, a cidade estava em festa. Foi nesse clima de comemoração que uma professora de redação pediu aos alunos da sexta série, de uma escola de ricos, que escrevessem um texto, em prosa, tendo como tema um recanto aprazível da “cidade amada”. Os alunos entreolharam-se abismados como se a tarefa fosse algo absolutamente irrealizável. Desconfiada de que boa parte da turma talvez desconhecesse o sentido do adjetivo aprazível, a professora repropôs: façam a descrição de um local agradável em nossa cidade. Ao contrário do que ela poderia supor, a descrição de um lugar (parque, praça, rua) agradável na capital parecia um desafio extraordinário. Uma meia dúzia, aos tropicões, descreveu as praças de alimentação dos shoppings da cidade. A maioria, nem isso.

Visivelmente preocupada, a professora me procurou para ouvir minha opinião. Expliquei-lhe que o resultado talvez não fosse diferente se se tratasse de adolescentes gaúchos ou acrianos. Na vã tentativa de animá-la, expliquei-lhe que a moçada hoje vive num mundo virtual, governado pelo deus-consumo, povoado de bocas que falam e cantam sandices e de bundas que geram fortunas. Esses rapazes e moças não são instigados a pensar e, como ninguém lhes impõe limites, crescem felizes e viçosos como repolhos em terra adubada. Convidei-a a refletir sobre o dia a dia desses meninos e meninas bem-nascidos: arrancados da cama muito cedo, engolem qualquer coisa (suco de caixinha, refrigerante,iogurte colorido), entram no automóvel, põem um walkman no ouvido ou teclam um daqueles celulares de última geração que, entre as 1001 utilidades, às vezes, até servem para fazer uma ligação. Confinados numa escola de muros altos (em nome da segurança), estudam as disciplinas que interessam aos exames vestibulares e fazem o mesmo percurso de volta até a casa. Nos finais de semana, shopping, festinhas de aniversário, um “fica” e o mais é torpedo, e-mail, Facebook, Twitter, MSN e toda essa parafernália eletrônica disponível na praça. Não há lugar para Teresina na vida deles.

Lembrei-me da velha crônica ao ver o comercial de um automóvel de luxo que, entre os acessórios, possui monitor acoplado aos bancos dianteiros. Segundo o anúncio, “assim, a viagem torna-se mais agradável e proveitosa”. O frêmito da vida não interessa; a paisagem não importa. A criança não pode e nem deve desconectar-se do seu mundinho virtual onde efetivamente vive. Posso estar enganado, mas Aldous Huxley não previu isso no seu Admirável Mundo Novo.

Impossível não dar razão ao professor Jaime Pinsky: “Talvez a grande tragédia da cultura brasileira tenha sido passar, diretamente, da cultura oral para a digital. Quando, finalmente, o Estado passou a considerar essencial a alfabetização de toda a população (com qualidade muito, mas muito discutível mesmo, diga-se de passagem) já era tarde. A internet, com todos os seus produtos (e-mails, redes sociais, Twitter, Facebook), assim como a cultura dos torpedos em celulares, promoveu não apenas uma nova linguagem (até aí, tudo bem), mas um discurso sugestivo em vez de um outro argumentativo, portanto sem coesão ou coerência, sem fluxo narrativo, sem começo, meio e fim”. 

Pobres meninos ricos...


quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Parem o mundo que eu quero descer!


No Bom Dia Alagoas de hoje a eminente secretária da Cultura da Capital da Província (assim ela se diz, apesar de ser uma fundação) falou uma barbaridade que fez corar o mais vil escroto que acaso estivesse vendo o noticiário matutino. Em reportagem sobre o miserê que vive o folclórico bumba-meu-boi alagoano, que tem apresentação oficial no carnaval de Maceió, ela simplesmente apertou a tecla do "dane-se" ao misturar cinismo e desdém para justificar a falta de apoio oficial aos grupos culturais da terrinha. Disse, com todos os efes e erres, que a Cultura é feita pelas comunidades, então elas, as comunidades, é que devem se virar. Eu poderia simplesmente usar a palavra “sic”, mas não revelaria a minha real indignação com esse absurdo dito por quem deveria ser guardiã da Cultura local.

Enquanto falta dinheiro para se financiar os grupos e pontos culturais, os amiguinhos do poder conseguem tirar leite da pedra chamada Fundação Cultural de Maceió, a que dá guarida a esta “secretária”. A Fundação, que deveria cuidar da Cultura com competência e zelo, cuida mesmo é de financiar projetos de interesse particular, como é o caso das belíssimas edições de livros e discos lançados na praça com o selo desta instituição pública. Livros de poesias em edição de luxo, impresso em papel fotográfico; cds com qualidade indiscutível, apesar do conteúdo duvidoso.

Mas desrespeitar valores culturais em Maceió tem sido a regra, naturalizando o “é assim em todo canto e lugar”. No São João, a Prefeitura gasta absurdos com bandas midiáticas para satisfazer o ego de alguns e, no entanto, destina migalhas aos artistas da terra num evento tradicional que mobiliza toda a população local. E ainda acham que se faz muito.

Em relação ao estado, também não é diferente. Quando deram a Fundação Teatro Deodoro para a musa do impeachment usar como casinha de boneca, ela promoveu uma noite do folclore no Teatro Deodoro e deixou de fora, literalmente, um dos maiores folcloristas brasileiro e de Alagoas: o Mestre Pedro Teixeira.

O que não falta é verba pública para se gastar com os apaniguados ou amigos dos amigos do poder. Os secretários de Cultura que vêm ou que vão parecem só entender mesmo de apadrinhamento ou política partidária. Já houve secretário de Cultura em Alagoas que disse só entender de cultura do fumo. E tome fumo no lombo do povo que luta para não deixar morrer nossos valores culturais, como é o caso, hoje, do bumba-meu-boi. Enquanto a Prefeitura de Maceió gastou os tubos na promoção de um baile municipal na semana passada, hoje foi decretado o fim do bumba-meu-boi “Paraná”, o mais tradicional de Alagoas, por falta de míseros dois mil reais.

Enquanto isso, a Prefeitura torra dinheiro do contribuinte com uma fundação com status de secretaria para manter gente que pensa que ópera-bufa é o mesmo que flatulência intestinal.



segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Geraldo Borges - Cineas Santos, rascunho para uma biografia

De Cineas Santos


Todos os sábados eu fazia uma visita à livraria do Nobre. Ali conheci o Cineas Santos.  A fauna de seus freqüentadores era variada e compunha–se de intelectuais, alguns mais assíduos, outros mais temporãos. Entre os assíduos podemos destacar o Lucimar Ochoa, já falecido, Eulino Martins, poeta, ex-combatente da FEB, também falecido, o professor Didácio, professor especialmente de cursinhos, também não mais está entre nós, o Pedro Celestino, idem. Todos eles viraram personagens de ficção. Pois “ Todas as pessoas mortas que conseguem  mesmo continuar existindo na memória  dos outros, tendem a se tornar fictícias... “ E o O. G. Rego de Carvalho, esse, ainda está em nosso meio, Pompílio Santos,  jornalista,  poeta, nunca mais tive noticias dele.

 Quase todos fumavam. A começar pelo vigia, como se chamava Nobre, o dono da livraria. Os únicos que não fumavam eram o OG e o Cineas Santos. Ainda hoje me lembro do cinzeiro do Nobre cheio de tocos de cigarro. De hora em hora ele esvaziava–o.  Mesmo com a fumaça o ambiente era agradável, com muita conversa sobre livros e autores, acompanhada sempre de um bom café. Ainda hoje tenho em minha biblioteca livros comprados em sua livraria. Parece que estou esquecendo o Cineas Santos. Não. Não esqueci.

 Cineas Santos chegava lá, conversava um pouco, e logo ia embora. Às vezes nem sentava. Isso no começo. Depois foi se acostumando e demorava mais. Lembro-me de quando já estávamos mais enturmados fizemos um torneio de versos, uma espécie de embolada.  Cada sábado um trazia a resposta do outro, e declamava para os visitantes da livraria fazer o julgamento.  Nessa brincadeira o Cineas Santos terminou levando a melhor. Ganhou. Sempre foi um grande leitor de romance de cordel.

Cineas Santos chegou em Teresina em 1965, desembarcou vindo de Caracol, sua aldeia natal, na praça Saraiva, a antiga praça Saraiva, que servia de estação rodoviária, e tinha o famoso bar Tetéu,   que não fechava as portas durante toda a noite. Da praça, Cineas Santos partiu para a Casa do Estudante.

 Já em 69 como ele próprio diz: “...já estava metido em um grupo de teatro amador, mambembando pelo interior do Piauí e do Maranhão. À época cheguei a escrever uma peça pretensiosa e ordinária, denominada Uma noite entre os miseráveis. Não podendo encená-la em Teresina (a censura não o permitiria), montamos a peça em Bacabal, com direito a um jantar decente depois da apresentação.”

Formou-se em Direito, e, como muitos outros, desviou-se dessa profissão como o diabo foge da cruz. Escolheu ser professor. E tem dado uma grande contribuição ao magistério piauiense. Mas a sua contribuição maior é no campo da cultura literária. Fundou jornais e revistas, montou livrarias, participou de suplementos literários, editou quase todos os escritores piauienses de expressão, fez palestras. É, sem sombra de dúvida, um marco na literatura piauiense, sempre animou os novos a prosseguir na luta com a palavra.

Teve a coragem de fundar a Oficina da Palavra, um espaço cultural aberto ao povo piauiense, uma franquia para quem quiser se expressar, o espaço contem uma biblioteca, um teatro, salas para estudo, fica na Rua Benjamim Constant,  descendo para o Liceu, depois da antiga residência do professor Pantaleão, celebrado professor de matemática do tempo da minha juventude. Não posso me esquecer também que a Oficina da Palavra é palco do já famoso Sarau literário.

 Cineas Santos é aquele cara que veio do interior - justamente quando Teresina estava começando uma nova perspectiva de urbanização e desenvolvimento, principalmente com o surgimento da Universidade -  e venceu. Criou seu ritmo e estilo. E por isso mesmo, tem os que gostam dele e os que não gostam. Inimigos oculto e declarados. Está sempre apressado como se estivesse esperando mais um desafio pela frente.

Para quem não sabe, ele ganhou um apelido quando freqüentava a Livraria do Nobre. O apelido se encaixou bem no personagem. Foi invenção do pintor Lucimar Ochoa. Chamou-o de Mandacaru, por causa de seus modos ríspidos, no trato com as pessoas, comportamento de que até hoje não abriu mão. Mesmo assim, por incrível que pareça, tem muitos amigos, nesse mundo de hoje. Pois a sua rispidez é só da boca para fora. Mas no tempo da Livraria do Nobre não foi somente o Cineas Santos que ganhou apelido. Ganharam apelidos também, o OG, que era chamado de Sapo, e o Pompílio Santos, que era chamado de dromedário, talvez pelo seu modo de caminhar meio corcunda. Essas brincadeiras não azedavam o ambiente, ao contrário, davam um ar descontraído de boa camaradagem. Quem suscita um apelido, é porque chama a atenção e tem alguma coisa marcante.

Hoje Cineas Santos administra as despesas da velhice após muitos coriscos e invernos pela vida afora. Tornou-se um cidadão respeitável, acumulou toda uma experiência de vida que literalmente podemos chamar de biografia. Em seu livro de crônicas As despesas do envelhecer, o leitor atento encontrará muitas pistas da sua história...

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Ferreira Gullar - Um sonho que acabou

Nenhum defensor do regime cubano desejaria viver num país de onde não se pode sair sem permissão

É com enorme dificuldade que abordo este assunto: mais uma vez -a 19ª- o governo cubano nega permissão a que Yoani Sánchez saia do país. A dificuldade advém da relação afetiva e ideológica que me prende à Revolução Cubana, desde sua origem em 1959. Para todos nós, então jovens e idealistas, convencidos de que o marxismo era o caminho para a sociedade fraterna e justa, a Revolução Cubana dava início a uma grande transformação social da América Latina. Essa certeza incendiava nossa imaginação e nos impelia ao trabalho revolucionário.

Nos primeiros dias de novo regime, muitos foram fuzilados no célebre "paredón", em Havana. Não nos perguntamos se eram inocentes, se haviam sido submetidos a um processo justo, com direito de defesa. Para nós, a justiça revolucionária não podia ser questionada: se os condenara, eles eram culpados.

E nossas certezas ganharam ainda maior consistência, em face das medidas que favoreciam aos mais pobres, dando-lhes enfim o direito a estudar, a se alimentar e a ter atendimento médico de qualidade. É verdade que muitos haviam fugido para Miami, mas era certamente gente reacionária, em geral cheia da grana, que não gozaria mais dos mesmos privilégios na nova Cuba revolucionária.

Sabíamos todos que, além do açúcar e do tabaco, o país não dispunha de muitos outros recursos para construir uma sociedade em que todos tivessem suas necessidades plenamente atendidas. Mas ali estava a União Soviética para ajudá-lo e isso nos parecia mais que natural, mesmo quando pôs na ilha foguetes capazes de portar bombas atômicas e jogá-las sobre Washington e Nova York. A crise provocada por esses foguetes pôs o mundo à beira de uma catástrofe nuclear.

Mas nós culpávamos os norte-americanos, porque eles encarnavam o Mal, e os soviéticos, o Bem. Só me dei conta de que havia algo de errado em tudo isso quando visitei Cuba, muitos anos depois, e levei um susto: Havana me pareceu decadente, com gente malvestida, ônibus e automóveis obsoletos.

Comentei isso com um companheiro que me respondeu, quase irritado: "O importante é que aqui ninguém passa fome e o índice de analfabetismo é zero". Claro, concordei eu, muito embora aquela imagem de país decadente não me saísse da cabeça.

Impressão semelhante -ainda que em menor grau- causaram-me alguns aspectos da vida soviética, durante o tempo que morei em Moscou. O alto progresso tecnológico militar contrastava com a má qualidade dos objetos de uso. O que importava era derrotar o capitalismo e não o bem-estar e o conforto das pessoas. Mas os dirigentes do partido usavam objetos importados e viam os filmes ocidentais a que o povo não tinha acesso.

Se a situação econômica de Cuba era precária, mesmo quando contava com a ajuda da URSS, muito pior ficou depois que o socialismo real desmoronou. É isso que explica as mudanças determinadas agora por Raúl Castro.

Mas, antes delas, já o regime permitira a entrada de capital norte-americano para construir hotéis, que hoje hospedam turistas ianques, outrora acusados de transformar o país num bordel. Agora, o governo estimula o surgimento de empresas capitalistas, como o faz a China. Está certo desde que permita preservar o que foi conquistado, já que a alternativa é o colapso econômico.

Tudo isso está à mostra para todo mundo ver, exceto alguns poucos sectários que se negam a admitir ter sido o comunismo um sonho que acabou. Mas há também os que se negam a admiti-lo por impostura ou conveniência política.

Do contrário, como entender a atitude da presidente Dilma Rousseff que, em recente visita a Cuba, forçada a pronunciar-se sobre a violação dos direitos humanos, preferiu criticar a manutenção pelos americanos de prisioneiros na base aérea de Guantánamo, o que me fez lembrar o seguinte: um norte-americano, em visita ao metrô de Moscou, que, segundo os soviéticos, não atrasava nunca nem um segundo sequer, observou que o trem estava atrasado mais de três minutos. O guia retrucou: "E vocês, que perseguem os negros!".

A verdade é que nem eu nem a Dilma nem nenhum defensor do regime cubano desejaria viver num país de onde não se pode sair sem a permissão do governo.




sábado, 11 de fevereiro de 2012

Cineas Santos - Carlitão de aço - um perfil apressado

A voz pausada e grave anuncia: “Senhoras e senhores, com vocês, Carlitão de aço dos 120 baixos e o conjunto forró macio”. O que se vê em seguida destoa completamente do anunciado. Um velho encarquilhado, mirrado, pernas arqueadas, entra em cena, tropeçando na própria sombra. Já nem consegue conduzir o instrumento que toca. Uma vez aboletado num tamborete de madeira, com a velha Todeschini sobre os joelhos, Carlitos José do Nascimento mostra do que é capaz: sapeca um forró esperto que eletriza a plateia. De posse do microfone, não se faz de rogado: “Boa noite a toda essa populança. Eu tô aqui na responsabilidade de abrir esse festival e vou fazer dentro dos conformes”. E, efetivamente, o fez. A cena descrita aconteceu em agosto de 2011, quando da realização do 1º Festival de Sanfona de São Raimundo Nonato.

Aos 88 anos de idade, mestre Carlitos é o decano dos sanfoneiros dos sertões do Piauí. No linguajar sertanejo, Carlitos é pau-para-toda-obra: lavrador, seringueiro, oleiro, pedreiro, benzedor e sanfoneiro. “O freguês que só tem uma sabença tá perdido. Pra comprar minha primeira sanfona, uma pé-de-bode, trabalhei seis meses furando maniçoba. De dia, labutava com as cobras; de noite, dormia com as onças. Ganhei 500 mil réis e comprei a harmônica por 400. Aprendi a tocar sozinho e, quinze dias depois, toquei uma matinê e ganhei 15 mil réis; um mês depois, toquei uma festa de casamento e embolsei 160. Vi que tinha futuro: a música já estava em mim. Toco sanfona há 66 anos, mas sempre trabalhei noutras coisas”, garante.

A modéstia não é característica mais notável em sua pessoa: “Este apelido de Carlitão de aço eu ganhei na banda das Cambraias. Lá tinha uns plantadores de algodão que gostavam de festança, coisa de muita valia. Apreciavam minha tocada e me levavam pra tocar por lá. Uma vez, toquei seis dias e seis noites sem parar. Uma senhora, depois de ver aqui, falou: ‘ Esse homem só sendo de aço’. Aí o apelido pegou e o mundo inteiro só me chama de Carlitão de aço dos 120 baixos”, afirma sorrindo.

Com a visão comprometida (um olho perdido e o outro com catarata), mestre Carlitos andava meio desacorçoado. Foi quando surgiu o projeto Encantadores do Sertão, coordenado pelo prof. Gonçalo Carvalho, e o velho voltou aos terreiros. Mas, no dia 10 de dezembro do ano passado, furtaram-lhe a velha Todeschini, que o acompanha há 26 anos. O velho desabou: “Só chorei duas vezes na vida: no dia da morte da minha mãe e quando furtaram minha sanfona. Mas quem tem amigo não morre sem vela. Meus camaradas se reuniram todos e fizeram uma trabuzana medonha, botaram nas rádios, na televisão, fizeram campanha pra comprar outra sanfona pra mim. Aí o desalmado se arrependeu e trouxe minha Todeschini de volta no último dia do ano. Vejam como Deus escreve certo por linhas tortas: recobrei minha sanfona e ganhei uma operação no olho, de graça. Tô enxergando mais do que tetéu. Essa ruindade do ordinário só serviu pra aumentar a fama do Carlitão de aço. Agora, é que eu vou amostrar o meu valor”.

Alguém aí duvida?


sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Luís Pimentel - Duas historinhas de carnaval

1.
Foi num Carnaval que passou

O folião chegou no bar Bip-Bip, em Copacabana, e puxou uma cadeira. Arrasado, depois de “três dias de folia e brincadeira” e de se esbaldar no desfile do rancho Flor do Sereno, despejou os cotovelos sobre a mesa e grunhiu:

– Uma cerveja, estupidamente gelada.

Alfredo, dono do estabelecimento, conhecido e aplaudido pelo mau humor, grunhiu mais alto:

– Só tem quente.
– Serve – gemeu o folião, caindo imediatamente num pranto de derrubar encostas. Tão sincero que até o Alfredo se comoveu:
– Que foi, querido?
Acarinhado, o sujeito abriu o verbo:
– Você sabe o que é ter um amor, meu senhor, ter loucura por uma mulher, e depois encontrar esse amor, meu senhor, nos braços de um motorista de ônibus?

Corno em fim de festa é comum, mas plagiando Lupicínio Rodrigues, não é a toda hora que se encontra.
Alfredo tentou ajudar:

– Qual é a linha?
– Nenhuma. Piranha da pior espécie.
– Estou falando do Ricardão. Qual é a linha que ele pilota?
– 571, Glória-Leblon, via Jóquei.
O comerciante enxugou uma lágrima discreta:
– É duro mesmo. Sei o que você está passando.

Começando a se acostumar com o chifre, o amigo recente se animou:

– Você também já levou bola nas costas?

E o Alfredo, olhar distante, pôs mais uma dose de maldade no alfinete de pontinha fina:

– Só levei bola nas costas nos meus tempos de médio-volante do Bangu. Agora, se pelo menos a vadia tivesse escolhido um motorista do 572, que é via Copacabana...


2.
Paixão na avenida

Saio do Sambódromo na madrugada de terça-feira, depois de ver o desfile da última escola de samba da segunda, e me dirijo à estação do Metrô na Praça Onze. Na fila dos bilhetes, o folião me aborda, lata de cerveja na mão e cigarrinho apagado no canto da boca:

– Tu conheces a Doralice?
– Só a do samba: “Doralice, eu bem que te disse, que amar é tolice, é bobagem, é ilusão”.
– Falo sério, meu chapa. Doralice parece mulata do Lan, tu manja? Sorriso lindo, todos os dentes na boca, peitinhos de amora, coxas de italiana, balaio grande...

Estava musicalmente inspirado, atropelei novamente:

“Mexia um balaio grande, muito mais macio que o boto cor-de-rosa do Custeau”.
– E como é que tu sabes?
– Isso é de outro samba. Fala mais de Doralice.
– Conheci domingo, no desfile da Mangueira.
– Como diria o grande Wilson das Neves, “ô, sorte!”.
– E perdi ontem, no embalo da Mocidade.

Adoro essas histórias, desde menino. Vivia pedindo para minha mãe recontar o drama de um corno amigo, que se ajoelhou diante da infiel, aos prantos: “Volta, amor. E traz quem tu quiser contigo”. Quis saber como é que foi:

– Como ganhei ou como perdi?
– As duas. O importante é competir.

O folião não regateou:

– Ganhei de um sambista desatento, que marcou bobeira. E perdi para uma loura de cinema, que encostou no meu patrimônio, como quem não quer nada, e prometeu vaga de rainha de bateria pro ano que vem.
– E Doralice?
– Foi. A essa altura, já deve estar ensaiando com a louraça.


terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Maurício Melo Júnior - Elogio à preguiça

O evento foi armado para incentivar investimentos econômicos na Bahia. O centro de convenções abriu seu salão de exposição e ali era possível desvendar todas as oportunidades, todas as potencialidades agrícolas, industriais, turísticas. Das belezas naturais de Abrolhos, às pedras da Chapada Diamantina, à fronteira produtiva do Oeste, às praias, aos sertões, às infindáveis modalidades de carnaval, tudo reunido e exposto para encantar os olhos e afrouxar os bolsos abastados de empresários paulistas.

Homens pragmáticos e objetivos, eles, os paulistas, chegaram à caráter. Com ternos bem cortados, celulares modernos, faros refinados, desconfianças na ponta dos dedos. Na companhia do então Secretário da Indústria e Comércio, Benito Gama, e com o auxílio luxuoso de belas baianas vestidas a rigor, os empresários e investidores em potencial cortaram a fita e invadiram o recinto com todas as pompas necessárias.

Foi aí que o secretário entrou em pânico. O primeiro estande brindava o turismo local e, bem deitado em sua rede, num retrato colossal, Dorival Caymmi, sorriso aberto, e sua legendária preguiça recebiam os visitantes. Benito quase chora ao ouvir o menos ousado dos convidados lhe perguntar ao ouvido: “Este é o trabalhador que vamos encontrar?”

Todo esforço começava a ir Subaé abaixo.

Os detratores da Bahia podem dar razão aos paulistas, um povo trabalhador, que em bem menos de um século transformou uma vilazinha chinfrim na maior metrópole da América Latina. De minha parte, fico com Caymmi. Tenho certeza que foi a preguiça de andar e carregar peso que fez nossos ancestrais inventarem a roda. E neste ritmo dolente nosso Dorival construiu belezas infindas. Noves anos foram necessários para fechar a saga de João Valentão, e valeu à pena esperar.

O repórter que foi entrevistá-lo em seu apartamento no Rio de Janeiro o encontrou sentado em uma cadeira de balanço de frente para um ventilador. “Mestre, por que não liga o ar-condicionado?”, quis saber o curioso. “Prefiro o vento, meu filho. Veja que foi neste balanço aqui que compus, por exemplo, Milagre – Maurino, Dadá e Zeca…”, cantarolou. E a conversa seguiu. No final da tarde tomou o elevador para levar o repórter até a porta do edifício.

Desceu junto com eles uma menina com sua babá. “Como está na escola, minha mocinha?”, quis saber o poeta. “Tudo bem, tio. Hoje a gente aprendeu música.” “E que música vocês aprenderam?” “Meus companheiros.” “É mesmo? Como é esta música?” “Minha jangada vai sair pro mar / vou trabalhar / meu bem querer. / Se Deus quiser quando eu voltar do mar / um peixe bom / eu vou trazer. / Meu companheiros…”, a menina cantava e os olhos do compositor marejavam de emoção.

Por tudo isso, mais vale sua preguiça, mestre Caymmi, que todos os dias de trabalho do senhor secretário e seus convidados.

Preguiça é bom remédio, há anos sabe bem outro poeta, Orlando Tejo. Com preguiça e criatividade ele fugiu do serviço militar obrigatório. Alegou às autoridades constituídas que não podia servir à pátria por ser arrimo de família. Desconfiados os milicos foram tirar a prova. Numa manhã radiosa de Campina Grande bateram à porta do poeta. Atendeu um irmão do mestre Orlando. “O senhor Orlando Tejo se encontra?” “Tá sim, mas dormindo.” “Mas ele não é arrimo de família?” “Isso eu não sei. O que sei é que ele toca uma sanfona arretada.”

Os defensores da pátria entregaram os pontos. Não havia espaço para sanfonas e redes no quartel, com certeza.

Todas estas histórias são de tempos passados. Há cerca de quinze anos vivemos outros ventos, desde que virou moda ler os ensinamentos de um italiano de nome Domenico de Masi. O ócio criativo tornou-se febre e aquilo que Caymmi e Tejo apregoavam com esplendor ganhou fórum científico. Hoje até mesmo os trabalhadores, os ferrenhos sindicalistas defendem uma jornada de trabalho mais condizente, com espaços para o ócio e o lazer. Quarenta horas já, gritam nas assembleias e pelos corredores legislativos. Precisam de tempo para melhor cuidar da família, da saúde, da vida. E, maus leitores de nossos intelectuais, entronizam o velho Masi italiano.

Na preguiça de minha rede antiga redobro o fôlego criativo relendo meu Gilberto Freyre de sempre. Pois bem, lá pelos idos dos anos quarenta, quando o mundo saía de mais uma insana guerra, o lobo de Apipucos escrevia dizendo que os homens precisam de mais lazer e vagar para se tornarem mais humanos. E já chamava isso de, pasmem!, ócio criativo. Quase ninguém ouviu.

Gilberto tinha tutano, conhecia a rede, indiscutivelmente uma das mais fantásticas invenções da humanidade. Lugar de parto e descanso, de amores e deleites, serve também à reflexão. Eu mesmo conheci um advogado e escritor de Belém do Pará, Benedicto Monteiro, que escreveu toda sua obra na rede. Até mesmo os vetustos pareceres sobre direito agrário, sua especialidade, nasceram no remar daquele balanço.

Conhecedor de mundos e universos vastos, Câmara Cascudo nos ensina que “toda ou quase toda aquela gente que arrancou o Acre para o Brasil nasceu e morreu dentro de uma rede balouçante”. E olhe que não foi fácil ganhar aquelas paragens. Houve tiros e revolução, matança e correrias, essas gestas cruéis para expulsar os índios de suas terras. E no fim da luta aqueles homens e aquelas mulheres, gente tão do Brasil, voltavam para as redes e seguiam fazendo a nação.

De minha parte faço o mesmo. Nesta tarde ensolarada, paro aqui o ofício de cronista e vou para a rede dar alento ao meu criativo ócio.


sábado, 4 de fevereiro de 2012

Luís Pimentel - Jorge Veiga, porque é carnaval

Em fevereiro, é sempre oportuna a lembrança do estupendo cantor Jorge Veiga (que nasceu nesse mês), um mestre absoluto na gravação de músicas de carnaval (também nos sambas de breque e de gafieira), intérprete dos mais charmosos da música brasileira, com sincopado, ginga, embocadura e maestria que o colocam no mesmo nível de Gordurinha, Ciro Monteiro, Jackson do Pandeiro, Roberto Silva e Roberto Paiva. Não à toa, foi batizado por Paulo Gracindo como “O caricaturista do samba”, pois humor ele tinha para dar e vender.

Há confusão de registros quanto à data de nascimento de Jorge Veiga: já encontrei o dia 14 de abril e também 6 de dezembro. Mas fico com a Agenda Música Brasileira 2012, que grava o dia 6 de fevereiro; quanto ao ano, todos os registros concordam: 1910. A carreira artística de Jorge (carioca do Engenho de Dentro) começa nos anos 30 do século passado, quando faz as primeiras apresentações em emissoras de rádio, imitando Sílvio Caldas. A infância fora de menino pobre, trabalhando como vendedor de doces, de frutas, de jornais e como engraxate. Também se virou como pintor de paredes – dizem que foi nesse ofício que, cantando enquanto trabalhava, chamou a atenção do patrão, homem de rádio, que o levou para soltar a voz.

O primeiro sucesso nacional do caricaturista do samba acontece em 1944, com a canção carnavalesca “Iracema” (Raul Marques e Otolino Lopes). Caiu no gosto do povo e dos melhores compositores brasileiros, daí vieram obras-primas como “Rosalina” e “Cabo Laurindo” (ambas da dupla Haroldo Lobo e Wilson Batista), “Eu quero é rosetá” (Haroldo Lobo e Milton de Oliveira), “Estatutos da gafieira” (Billy Blanco), “Café soçaite” (Miguel Augusto) e “Bigorrilho” (Paquito, Sebastião Gomes e Romeu Gentil). No começo dos anos 1970 lançou dois LPs de muita repercussão crítica e ótimas vendas: “De Leve”, com Cyro Monteiro, e “O Melhor de Jorge Veiga”.

Foi um dos mais inspirados canários do nosso samba. Subiu para cantar nas alturas no dia 29 de junho de 1979.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Cineas Santos - Apagando rastros

De Figueira do Cineas

A primeira vez que fui a São João do Piauí, final da década de 50, eu teria uns dez anos de idade, não mais que isso. Em matéria de cidade, minha única referência era São Raimundo Nonato que, ainda hoje, não pode ser tomada como modelo urbanístico a ser copiado. São João me pareceu encantadora. Ruas calçadas com paralelepípedos, uma pracinha ajardinada e um fiapo de rio de águas cristalinas. Sem medir as consequências, caí de amores pela cidadezinha sertaneja. Na adolescência, voltei a visitá-la e a descobrir novos encantos: a maior praça que já vi na vida e a beleza das são-joanenses, festivas, festeiras, festejáveis... Ao longo desses anos, nunca deixei de visitar São João pelo menos uma vez por ano. A bem da verdade, a paixão antiga não arrefeceu.

No início da década de 80, fui convidado pela Profa. Expedita Alves para ministrar um curso de português no colégio Frei Henrique. O educandário-referência fica justamente na Praça Honório Santos, que tanto me impressionara. Foi nessa época que me dei conta da existência de uma árvore antiga, bela, frondosa, bem na frente do colégio. Era uma figueira generosa que, de tão integrada à paisagem, parecia estar fincada ali desde o princípio dos tempos. À sombra dela, pais esperavam filhos, amigos conversavam, namorados encontravam-se ...

Irmãos e irmãzinhas, vocês não imaginam o quanto me dói falar da velha figueira com o verbo no imperfeito. Na semana passada, recebi uma fotografia que me deixou estarrecido e indignado: a figueira está morta. Não morreu de morte natural, nem por ataque de fungos, cupins ou formigas. Morreu, ou melhor, foi morta por imperícia, imprudência ou irresponsabilidade de quem conduziu a infeliz reforma da Praça Honório Santos. O responsável pela obra que, segundo consta, teria custado meio milhão de reais, fez questão de deixar suas impressões digitais na cena do crime: o espectro de uma árvore morta a entristecer a paisagem. 

Até onde sei, a população da cidade lamenta e chora. Pois eu vos digo que é pouco. O autor do crime precisa ser exemplarmente punido. E, por favor, não me venham dizer que, “forasteiro”, não tenho o direito de me meter em assuntos que só dizem respeito aos nativos. Para quem não sabe, sou cidadão são-joanense, honraria que me foi concedida pela Câmara Municipal de São João do Piauí. Como não me contento com simples honrarias, recebi o título e, desde então, sinto-me no dever de fazer jus a ele. Cidadão, para os desavisados, é um ser quase sempre incômodo. Podem me cassar o título, se assim o desejarem, mas nunca me poderão calar. Conheço o significado da palavra cidadania. Sou e serei sempre um cidadão.


sábado, 28 de janeiro de 2012

COSMOGONIA ACIDENTAL



O Infinito é azul. É lá onde os paralelos se encontram e os numerais têm fim. A metafísica materializa-se e proseamos compreensivelmente com Deus nos intervalos das brincadeiras de esconde-esconde nas galáxias com os anjinhos. Galopamos os cometas como se fossem dóceis cavalinhos de parques de diversão.

O Infinito é translúcido. Passa o som, passa a fúria, passa a luz. Não há ecos ressoantes nem frases repetidas. Não há palavras. Não havendo fala, não há sede. Tudo é transparente, telepático e telecinético. Não há corpo. Não havendo vísceras, não há fome. Vive-se ao léu, feito nômades galácticos em gozo pleno da liberdade.

No início era o Verbo. O Verbo e todo o Universo que ocupava um ínfimo espaço menor que a cabeça de um alfinete. E Deus olhou ao redor e só viu o vazio soberano e o maciço da escuridão. Era a desolação em sua total plenitude. O Princípio original, sem começo, meio e fim. Não existia o Tempo. Não havia ontem nem amanhã. Passado, presente e futuro eram um só tempo. E Deus se sentiu o mais solitário dos imortais. A solidão era a solidez do vazio. A luz não existia porque não existia o amanhecer e a insônia era eterna. Então Deus, consciente da sua imensurável força e do seu poder infinito, disse: “Faça-se a Distância!” O estopim do Universo foi aceso, irradiando uma colossal energia, se expandindo em uma velocidade infinita em todas as direções.

Então Deus disse: “Faça-se a Luz!” Imediatamente o Vazio foi preenchido pelas galáxias, pelos astros e pelas estrelas, vagando em harmonia etérea em volta de sua magnífica solitude, moldando um espelho da Sua paranormalidade existencial, refletindo a grandeza diáfana de Sua Consciência Cósmica.

Deus montou em um cometa e saiu vagando pelos Seus domínios, fiscalizando Sua grande realização. Visitou estrelas, criou novas galáxias, acendeu o Sol e quando o calor da gigantesca fissão nuclear aqueceu a sua pele permeável, Ele disse: “Faça-se o Tempo!” Imediatamente o Sol se pôs atrás do horizonte da Via Láctea e foi o primeiro arrebol do Universo. No outro dia o Sol nasceu pela primeira vez, e Deus, vendo tão belo amanhecer cheio de luz e calor, disse: “Faça-se o Homem!” E o homem foi feito lentamente, quadro a quadro, em conformidade com a teoria da evolução, porque Ele não tinha pressa. A pressa é para quem vive sem tempo, e Ele era o próprio Tempo, Princípio, Meio e Fim, imutável e eterno, e fez o Homem apenas para dar testemunho de Sua criação e admirar o belo sobre todas as coisas, pois tudo era belo, tudo era a manifestação reveladora de Sua presença e a feiúra seria apenas um indício significativo da má fé: somente os homens de espírito inferior conheceriam o feio e dele escarneceriam.

Um dia o homem se aproveitou do seu livre arbítrio, empinou o nariz e quis igualar-se ao seu criador. Então Deus disse, furioso: “Faça-se a Solidão!” E a solidão foi feita e contaminou todo o universo, e o homem sentiu-se angustiado, triste, melancólico.

A solidão devorou como erva daninha. Enraizou-se no coração do homem e se apoderou da sua alma, asfixiando os sentidos. Aprisionou a Razão e libertou a Depressão. Então o Senhor do Universo, condoído com o sofrimento da Sua criação, deu poderes ao Diabo e o incumbiu de pôr a termo o sofrimento humano. O Diabo não se fez de rogado. Sorriu matreiro, sonso, e ordenou:

– Faça-se a Internet! 



terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Luís Pimentel - Um cometa cravado na tua coxa

De Capa do livro Um Cometa Cravado na Tua Coxa

– Astro de luminosidade fraca – eu disse, repetindo o mestre Aurélio. E passei o dedo lentamente sobre a tatuagem.
– Para! – ela gemeu baixinho.
– Dói?
– Claro que não, seu bobo.
Com o pé tentou fechar o dicionário que estava no meu colo. A unha do dedão roçando em minha barriga. Mudei de posição e continuei a leitura do verbete:
– Formado por um grupo de pequenas partículas sólidas, com envoltório gasoso...
– Que horror. Envoltório gasoso é horrível.
– ... e que gira em torno do sol em órbitas elípticas muito alongadas, nalguns casos aparentemente hiperbólicas.
Esfregou o peito no meu ombro e arrancou o livro de minhas mãos:
– Não é só isso. Diz também que é pessoa que aparece e desaparece rapidamente. Assim que nem eu.
– Que nem você, que chega quando menos se espera e some quando mais se precisa. Que escurece a visão e ilumina os lençóis. Essa maldade nos lábios, esse cometa na coxa. Essa lua e esse conhaque deixam a gente falando besteira como o diabo.
– Que lindo.
– A última frase é um verso do Drummond.
Arreganhou as coxas diante de mim. O cometa me encarando, desafiador. O sorriso mais bonito e mais sacana deste mundo:
– Olha.
– O que é isto?
– O mundo, o mundo e o vasto mundo. Viu que também conheço Drummond?
– Realmente é lindo o seu cometa. Mas por que aí, bem na virilha?
– Para ficar mais pertinho do céu.
– Posso dar um beijo nele?
– No cometa? Você é maluco, vai queimar os lábios.
– Deixa.
– Nem pensar.
A última resposta dada enquanto se vestia, às pressas. Sufocando o astro de luminosidade fraca dentro da calça jeans.
– Você volta?
– Um dia. São assim os cometas, não são?


Do livro Um cometa cravado em tua coxa, (contos, Editora Record, 2003).

domingo, 22 de janeiro de 2012

Antonio Torres no Álbum de Retratos, de Marcelo Moutinho

No programa Álbum de Retratos, de Marcelo Moutinho no Canal Brasil, o escritor Antonio Torres relembra sua infância no Junco e outros momentos de sua vida.