A voz pausada e grave anuncia: “Senhoras e senhores, com vocês, Carlitão de aço dos 120 baixos e o conjunto forró macio”. O que se vê em seguida destoa completamente do anunciado. Um velho encarquilhado, mirrado, pernas arqueadas, entra em cena, tropeçando na própria sombra. Já nem consegue conduzir o instrumento que toca. Uma vez aboletado num tamborete de madeira, com a velha Todeschini sobre os joelhos, Carlitos José do Nascimento mostra do que é capaz: sapeca um forró esperto que eletriza a plateia. De posse do microfone, não se faz de rogado: “Boa noite a toda essa populança. Eu tô aqui na responsabilidade de abrir esse festival e vou fazer dentro dos conformes”. E, efetivamente, o fez. A cena descrita aconteceu em agosto de 2011, quando da realização do 1º Festival de Sanfona de São Raimundo Nonato.
Aos 88 anos de idade, mestre Carlitos é o decano dos sanfoneiros dos sertões do Piauí. No linguajar sertanejo, Carlitos é pau-para-toda-obra: lavrador, seringueiro, oleiro, pedreiro, benzedor e sanfoneiro. “O freguês que só tem uma sabença tá perdido. Pra comprar minha primeira sanfona, uma pé-de-bode, trabalhei seis meses furando maniçoba. De dia, labutava com as cobras; de noite, dormia com as onças. Ganhei 500 mil réis e comprei a harmônica por 400. Aprendi a tocar sozinho e, quinze dias depois, toquei uma matinê e ganhei 15 mil réis; um mês depois, toquei uma festa de casamento e embolsei 160. Vi que tinha futuro: a música já estava em mim. Toco sanfona há 66 anos, mas sempre trabalhei noutras coisas”, garante.
A modéstia não é característica mais notável em sua pessoa: “Este apelido de Carlitão de aço eu ganhei na banda das Cambraias. Lá tinha uns plantadores de algodão que gostavam de festança, coisa de muita valia. Apreciavam minha tocada e me levavam pra tocar por lá. Uma vez, toquei seis dias e seis noites sem parar. Uma senhora, depois de ver aqui, falou: ‘ Esse homem só sendo de aço’. Aí o apelido pegou e o mundo inteiro só me chama de Carlitão de aço dos 120 baixos”, afirma sorrindo.
Com a visão comprometida (um olho perdido e o outro com catarata), mestre Carlitos andava meio desacorçoado. Foi quando surgiu o projeto Encantadores do Sertão, coordenado pelo prof. Gonçalo Carvalho, e o velho voltou aos terreiros. Mas, no dia 10 de dezembro do ano passado, furtaram-lhe a velha Todeschini, que o acompanha há 26 anos. O velho desabou: “Só chorei duas vezes na vida: no dia da morte da minha mãe e quando furtaram minha sanfona. Mas quem tem amigo não morre sem vela. Meus camaradas se reuniram todos e fizeram uma trabuzana medonha, botaram nas rádios, na televisão, fizeram campanha pra comprar outra sanfona pra mim. Aí o desalmado se arrependeu e trouxe minha Todeschini de volta no último dia do ano. Vejam como Deus escreve certo por linhas tortas: recobrei minha sanfona e ganhei uma operação no olho, de graça. Tô enxergando mais do que tetéu. Essa ruindade do ordinário só serviu pra aumentar a fama do Carlitão de aço. Agora, é que eu vou amostrar o meu valor”.
Alguém aí duvida?
Nenhum comentário:
Postar um comentário