domingo, 31 de março de 2013

O Anti-herói da “Revolução”



Passei a minha infância ouvindo programa musical nas rádios AM, pois as frequências moduladas só apareceram no final da década de setenta. Em minha terra existia um programa cujo fundo musical era a música “Meditação de Thaís”, de Jules Massenet. A melodia meditativa encravou em minha alma de tal maneira, que prometi dar o nome de Thaís à minha primeira filha. Aos vinte e um anos de idade, nasceu a minha primogênita e se chamaria Thaís se não fosse uma notícia de jornal, que me chamou a atenção, enquanto aguardava na fila do Cartório de Registro de Pessoas Naturais. A manchete falava de Flávia Schilling, uma brasileira sequestrada em Porto Alegre pela polícia uruguaia, com a ajuda do governo brasileiro. O Uruguai, naquela época, também era governado por militares golpistas e existia um grupo de resistência chamado “Tupamaro”. O marido da Flávia Schilling era uruguaio e fazia parte desse grupo; no entender dos militares, se o marido era, ela também era uma “tupamaro”. Que os uruguaios a levassem e fizessem bom proveito! Só que o Governo não contava com a forte reação popular desencadeada em Porto Alegre e os milicos, sob pressão, foram obrigados a trazê-la de volta. Por causa desse episódio, Massenet ficou para ser homenageado quando a próxima filha nascesse e Thaís virou Flávia em homenagem à valente guerrilheira gaúcha.

A segunda filha nasceu um ano e meio depois e Massenet seria homenageado se não fosse uma campanha publicitária clamando por justiça a Cláudia Lessin Rodrigues, uma adolescente ingênua que teve o azar de cruzar com uns mauricinhos da Zona Sul do Rio de Janeiro e acabou seus dias em um mergulho no vazio a partir do décimo andar de um prédio de um dos rapazes, depois de uma farra regada a álcool e a drogas. Foi constatado que ela havia sido atirada pelos rapazes, porém nada aconteceu aos seus algozes. E, por uma questão de solidariedade, Massenet ficou para a próxima filha, que não veio.

Maior felicidade teve o general Kival Saldanha da Cunha. Quando a sua filha nasceu, o país vivia momentos conturbados, conspirações por todos os lados, inclusive do chefe da guarda pessoal do presidente, Gregório Fortunato, que organizou um atentado contra o jornalista Carlos Lacerda, líder da campanha anti-getulista, o que culminou no suicídio de Getúlio Vargas no dia 24 de agosto de 1954. O general Kival, que na época era major, colocou o nome de Thaís na sua filha, tentando encontrar um pouco de paz e meditação em Massenet.

Quando Jânio Quadros renunciou, houve forte reação dos ministros militares à posse de João Goulart, que tinha ligações com o comunismo internacional. Leonel Brizola, cunhado de Jango, organizou a resistência, tendo o apoio do III Exército, o maior exército da época, sediado em Porto Alegre, de Nei Braga, governador do Paraná, e mais uma grande parte de militares de outras regiões, que eram a favor da legalidade e queriam que a Constituição de 1946 fosse respeitada, ou seja, na vacância do cargo, o vice-presidente da República assumiria. O I Exército, sediado em São Paulo, não aceitava e deu ordens para marchar contra as forças legalmente constituídas. O então tenente-coronel Kival, comandante do 2º Batalhão de Caçadores, em São Paulo, disse não. Ele e mais outros. O comando central recuou em suas intenções belicosas, porém o comandante aquartelado foi transferido para a fronteira do Fim do Mundo com o Inferno.

No prenúncio do golpe militar de 1964, o general Kival foi obrigado a entrar para a reserva. Era um legalista e não fazia parte dos planos da alta cúpula golpista. Quando eclodiu o golpe, mesmo fora da caserna, ainda se lembrou de telegrafar para Leonel Brizola e outros de quem se lembrou, pedindo para que saíssem do país. Era o dia primeiro de abril de 1964.

Com as prisões e perseguições políticas, o general Kival, em vez de vestir seu pijama e gozar de sua aposentadoria, preferiu ter a farda sempre engomada, e as estrelas de general passaram a reluzir nas prisões e doi-codi’s da vida, à procura de gente que ele sequer conhecia e que se penalizava com a aflição dos pais que batiam à sua porta, atrás de notícias dos filhos. Morreu triste e desgostoso com a sorte daqueles que não pôde ajudar.

Portanto, neste 31 de março, tiremos o chapéu com respeito e admiração para o general Kival Saldanha da Cunha, o anti-herói da “Revolução”, ou o herói das sarjetas, o general dos desvalidos, cuja existência os militares quiseram enterrar na vala comum do esquecimento, mas se esqueceram da sua filha Thaís da Cunha, a Thaty Marcondes, para narrar sua história e perpetuar sua memória.  
 

quinta-feira, 28 de março de 2013

ONDE CANTA A ACAUÃ: A Paixão de Cristo em Nova Jerusalém

ONDE CANTA A ACAUÃ: A Paixão de Cristo em Nova Jerusalém: Fazenda Nova, Pernambuco, a um passo de Caruaru e a quatro horas de Maceió. É lá que fica Nova Jerusalém, o maior teatro ao ar livre do mund...

Fera Ferida


“O desamor é o espelho do orgulho ferido”
Konde Rasputin d’Latra Véia

Como não me lembro d’ocê, menina!? Você fazia aquela dieta radical para entrar na garrafa e emagreceu tanto que usava Band-aid como absorvente íntimo. Eu brincava com a fragilidade delgada do seu corpo quando lhe via desnuda e dizia “Se engordar vinte quilos fica magra!”, e você ria feliz, e me abraçava, e me beijava, e me amava, e dizia que eu era o Antonio Conselheiro da sua Canudos e que me amaria para sempre, mesmo que o Exército da República me destroçasse em mil pedaços nos seus canhões, e eu lhe respondia fazendo toc-toc na mesa das utopias: “Vira essa boca pra lá!”, e você me calava com um beijo e dizia: “Bobo!”, porém quis a mão do Destino me mostrar que o sempre só durou até o toque das cornetas em prenúncio de massacre, e você foi embora com o capitão inglês, sangrando meu coração com a baioneta do abandono, submergindo meu peito num açude de lágrimas, indiferente ao último apelo de um náufrago das ilusões desnudas:

- Por favor, deixe ao menos os discos de Elomar!


    

domingo, 24 de março de 2013

Os alquimistas estão chegando

- Hoje eu vou lhe mostrar o efeito da cachaça no organismo – falou o médico ao seu paciente, um bêbado inveterado.

Sob o olhar atento do paciente, pegou um copo duplo, colocou cachaça até o meio, pegou um ovo cozido, descascou e colocou dentro do copo com a cachaça. O ovo começou a reagir com o álcool e, cinco minutos depois, estava completamente preto. O bêbado olhava a alquimia de olhos arregalados.

- Está vendo, meu amigo, o que o álcool faz?

O paciente coçou a cabeça, olhou para o médico, olhou para o copo, voltou a olhar para o médico e falou num fio de voz:

- Doutor, eu juro ao senhor que nunca mais vou comer ovo quando estiver bebendo!         

O Evangelho Segundo Tõe d’Irineu

Naquele tempo, dirigiu-se Jesus ao templo e todo o povo veio a ele. Os escribas e os fariseus trouxeram-lhe uma mulher que fora apanhada em adultério. Puseram-na no meio da multidão e disseram a Jesus: 

- Mestre, agora mesmo esta mulher foi apanhada em adultério. Pela Lei de Moisés, devemos apedrejá-la. Que dizes tu a isso?

Queriam pôr Jesus à prova, porém Ele se inclinou para frente, escreveu com o dedo na terra e disse-lhes:

- Quem nunca errou que atire a primeira pedra!

A multidão calou-se. Um bêbado pediu licença, aproximou-se da adúltera e tascou uma pedrada bem no meio da testa. Jesus olhou surpreso e incrédulo para o bêbado e perguntou asperamente:

- Você nunca errou?
- Dessa distância, não – respondeu o bebum.     

quinta-feira, 21 de março de 2013

Cineas Santos - Deseducar é fácil



                                       
         O prof. Marcílio Farias, de saudosa memória, afirmava publicamente: “O problema da escola não são os alunos; são os pais dos alunos”. Não era simples desabafo: Marcílio tinha uma relação bastante amistosa e cordial com a molecada do IDB; com os pais, não. Na semana passada, presenciei uma cena que parece ter sido concebida para dar razão ao educador. Na fila de um dos caixas de um supermercado de Teresina, um casal muito jovem se fazia acompanhar de uma menininha, de uns três anos de idade, linda como a claridade da hora. Enquanto os dois passavam as compras, a menina afastou e, ao regressar, trazia uma revistinha colorida. Iniciou-se o seguinte diálogo: “Pai, vou levar esta”. O pai, sem se dignar a ver a revista, disparou: “Revista, não”. “Pai, por favor, eu quero esta” - insistiu a garotinha. “ Eu já disse que não e não e não!”- berrou o pai. A menina fez beicinho, ensaiou cara de choro. O pai propôs: “Troque a revista por outra coisa”.  Um sorriso de vitória estampou-se no rosto da criança: “O quê, pai?”.  “Algo gostoso”, afirmou o cidadão. “Pode ser Halls?”- indagou a menina. “Pode, sim,filha”. A menina pegou um pacote de pastilhas, sabor morango, correu até o pai que lhe estendeu a mão aberta para um tapinha cúmplice.

         Esperei o casal afastar-se e fui conferir a publicação que a menina queria levar para casa. Era a “Revista de atividades Barbie – desenhos e brincadeiras”. Comprei a revista para conferir-lhe o conteúdo. Nada de extraordinário: jogo dos sete erros; ajude o personagem tal a encontrar o caminho de casa e muitos desenhos da bonequinha aliciante para serem coloridos. De “brinde”, quatro tabletes de tinta (vermelho, verde, azul e amarelo) à base d’água e um pincelzinho de plástico. Resolvi conferir também as pastilhas que a garotinha levou, com a cumplicidade do pai: “bala dura, sabor artificial de morango e eucalipto, colorida e aromatizada artificialmente”. Comparei os dois produtos e cheguei à conclusão de que, ruim por ruim, a menininha ficou com o pior: açúcar e aromatizantes artificiais. A revistinha serviria, pelo menos, para melhorar-lhe a coordenação motora; as balas, na melhor das hipóteses, só lhe acarretarão algumas cáries.

         Foi aí que me ocorreu a lembrança de um texto de Saint-Exupéry (Terra dos Homens, se não me trai a memória) no qual ele relata a viagem  que realizou num trem carregados de  agricultores russos. Homens e mulheres miseráveis, arruinados pelo trabalho extenuante e pelo consumo de álcool. De repente, o piloto-escritor viu, no colo de uma camponesa rota, uma bela criança que dormia sossegadamente. Contemplou-a e, comovido, perguntou-se: “Quanto tempo será necessário para que este pequeno Mozart se transforme num simples saco de batatas?”. Ao alinhavar esta crônica, não resisti à tentação de perguntar:  quanto tempo será necessário para transformar aquela menina linda numa gorduchinha devoradora de açúcar? O tempo, senhor de tudo, terá a resposta. Quanto a mim, tenho apenas a certeza de estar me metendo em assunto que não me diz respeito.