Passei
a minha infância ouvindo programa musical nas rádios AM, pois as frequências
moduladas só apareceram no final da década de setenta. Em minha terra existia
um programa cujo fundo musical era a música “Meditação de Thaís”, de Jules
Massenet. A melodia meditativa encravou em minha alma de tal maneira, que
prometi dar o nome de Thaís à minha primeira filha. Aos vinte e um anos de
idade, nasceu a minha primogênita e se chamaria Thaís se não fosse uma notícia
de jornal, que me chamou a atenção, enquanto aguardava na fila do Cartório de
Registro de Pessoas Naturais. A manchete falava de Flávia Schilling, uma
brasileira sequestrada em
Porto Alegre pela polícia uruguaia, com a ajuda do governo
brasileiro. O Uruguai, naquela época, também era governado por militares
golpistas e existia um grupo de resistência chamado “Tupamaro”. O marido da
Flávia Schilling era uruguaio e fazia parte desse grupo; no entender dos
militares, se o marido era, ela também era uma “tupamaro”. Que os uruguaios a
levassem e fizessem bom proveito! Só que o Governo não contava com a forte
reação popular desencadeada em
Porto Alegre e os milicos, sob pressão, foram obrigados a
trazê-la de volta. Por causa desse episódio, Massenet ficou para ser
homenageado quando a próxima filha nascesse e Thaís virou Flávia em homenagem à
valente guerrilheira gaúcha.
A segunda filha nasceu um ano e meio
depois e Massenet seria homenageado se não fosse uma campanha publicitária
clamando por justiça a Cláudia Lessin Rodrigues, uma adolescente ingênua que
teve o azar de cruzar com uns mauricinhos da Zona Sul do Rio de Janeiro e
acabou seus dias em um mergulho no vazio a partir do décimo andar de um prédio
de um dos rapazes, depois de uma farra regada a álcool e a drogas. Foi
constatado que ela havia sido atirada pelos rapazes, porém nada aconteceu aos
seus algozes. E, por uma questão de solidariedade, Massenet ficou para a
próxima filha, que não veio.
Maior felicidade teve o general Kival
Saldanha da Cunha. Quando a sua filha nasceu, o país vivia momentos
conturbados, conspirações por todos os lados, inclusive do chefe da guarda
pessoal do presidente, Gregório Fortunato, que organizou um atentado contra o
jornalista Carlos Lacerda, líder da campanha anti-getulista, o que culminou no
suicídio de Getúlio Vargas no dia 24 de agosto de 1954. O general Kival, que na
época era major, colocou o nome de Thaís na sua filha, tentando encontrar um
pouco de paz e meditação em Massenet.
Quando Jânio Quadros renunciou, houve
forte reação dos ministros militares à posse de João Goulart, que tinha
ligações com o comunismo internacional. Leonel Brizola, cunhado de Jango,
organizou a resistência, tendo o apoio do III Exército, o maior exército da
época, sediado em Porto
Alegre, de Nei Braga, governador do Paraná, e mais uma grande
parte de militares de outras regiões, que eram a favor da legalidade e queriam
que a Constituição de 1946 fosse respeitada, ou seja, na vacância do cargo, o
vice-presidente da República assumiria. O I Exército, sediado em São Paulo, não aceitava
e deu ordens para marchar contra as forças legalmente constituídas. O então
tenente-coronel Kival, comandante do 2º Batalhão de Caçadores, em São Paulo, disse não.
Ele e mais outros. O comando central recuou em suas intenções belicosas, porém
o comandante aquartelado foi transferido para a fronteira do Fim do Mundo com o
Inferno.
No prenúncio do golpe militar de 1964,
o general Kival foi obrigado a entrar para a reserva. Era um legalista e não
fazia parte dos planos da alta cúpula golpista. Quando eclodiu o golpe, mesmo
fora da caserna, ainda se lembrou de telegrafar para Leonel Brizola e outros de
quem se lembrou, pedindo para que saíssem do país. Era o dia primeiro de abril
de 1964.
Com as prisões e perseguições
políticas, o general Kival, em vez de vestir seu pijama e gozar de sua
aposentadoria, preferiu ter a farda sempre engomada, e as estrelas de general
passaram a reluzir nas prisões e doi-codi’s da vida, à procura de gente que ele
sequer conhecia e que se penalizava com a aflição dos pais que batiam à sua
porta, atrás de notícias dos filhos. Morreu triste e desgostoso com a sorte
daqueles que não pôde ajudar.
Portanto, neste 31 de março, tiremos o
chapéu com respeito e admiração para o general Kival Saldanha da Cunha, o
anti-herói da “Revolução”, ou o herói das sarjetas, o general dos desvalidos,
cuja existência os militares quiseram enterrar na vala comum do esquecimento,
mas se esqueceram da sua filha Thaís da Cunha, a Thaty Marcondes, para narrar sua
história e perpetuar sua memória.
3 comentários:
No dia 1º de Abril, às 20 horas, o Museu da República vai inaugurar o seu novo espaço para cinema e debates, com o lançamento do documentário "Os militares que disseram não", de Sílvio Tendler, de 2013.
A inauguração será no Jardim do Museu, com participação do diretor Sílvio Tendler e convidados. O filme é sobre os militares que lutaram pela constituição, pela legalidade e contra o golpe de 1964, e a que até hoje buscam reconhecimento na História do País, pois a sociedade pouco ou nada sabe a respeito desses militares perseguidos, cassados, torturados e mortos, por defenderem a ordem constitucional e uma sociedade livre e democrática. https://www.youtube.com/watch?v=7QyF3xNtfVE&hd=1
Parabéns ao general Kival Saldanha da Cunha e à sua filha Thaís da Cunha, que não deixa que se esqueça o passado para que este não volte!
Tania
Acho que você pode compartilhar o link que tá no primeiro comentário. Ah! Aproveita pra cumprimentar a filha do general por mim. Não botei o nome porque achei que não precisava... (acho que o teu telefone fixo tá quebrado).
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