sábado, 2 de maio de 2009

PAI, AFASTA DE MIM ESSE CÁLICE




Amaram a terra como se tivessem nela seus antepassados descansando em jazigos seculares. Quiseram seu povo como Moisés a caminhar para a Terra Prometida. Plantaram quimera como poetas semeando sonhos na seara das ilusões.

No início pisaram em território minado pela desconfiança de um povo xenófobo, porém de natureza pacífica. Aos poucos, angariaram simpatia e conquistaram a confiança da maioria, chegando ao topo da pirâmide política local: prefeito e primeira-dama. Entretanto quis o Destino presentear-lhes o Cavalo de Tróia, reviver o calvário, onde foram traídos por uns e negados por outros, todos uns Judas que sentaram à sua mesa para beber do seu vinho, comer do seu pão e ainda prometer fidelidade para depois cometerem leviandades. A História se repetindo, como a encenar tragédias gregas.

“O mal é o que sai da boca do homem porque procede do coração, e isso contamina o homem. Porque do coração procedem os maus pensamentos, mortes, adultérios, prostituição, furtos, falsos testemunhos e blasfêmias”, disse Matheus, o santo evangelista. O meu pai, na elegância sutil dos homens honrados, dizia ser a “língua” o maior inimigo do homem. Aquilo que se leva anos construindo, pode ruir com certas palavras maldosas ou colocadas com segundas intenções. Mas o que não é o que parece ser é um caminho de mão dupla e o tiro pode sair pela culatra. O maldoso pode ser o receptor da antiga questão filosófica “caveira, quem te matou?”, cuja resposta, para quem não sabe, é “foi a língua, meu senhor”. E foi o que aconteceu. Deles se disse tantas coisas de ruim, tantas quanto pôde a língua ferina destilar aleivosias, mas daquilo que foi dito, nada se provou de verdade. Entretanto, o dito não ficou pelo não dito por que pesou a ferida da desonra mais que a reparação moral. Felizmente a mentira tem pernas curtas e os seus detratores se viram envolvidos num lamaçal largo e profundo, com provas cabais de suas falcatruas morais e materiais à vista de qualquer cidadão não contaminado pela tiflose partidária. Eram uns cínicos e se diziam os salvadores da pátria, uns espertalhões em busca de tirar proveito de um povo atarantado pela surpresa das suas maldades. Mentiram tanto, e tanto, que chegaram a acreditar ser verdade a acidez de suas cismas e sequer tiveram a comiseração dos ditos cristãos em procissão de penitência.

Dela, recebi o desabafo de quem não consegue esquecer a impiedade humana:

“Me coloco sentada na praça de Sátiro Dias imaginando tudo que você conta....... Estou sentindo até o cheiro de feira da Segunda.......”

São palavras ditas com a alma de quem realmente sente a ausência de algo de valor espiritual, o amor pela terra, pelo povo, como qualquer vivente que deixa sua pátria para viver em exílio. Em vez de mágoas ou ressentimentos, saudades ternas e intensas ao ponto de sentir o cheiro da terra. Como terá palpitado o coração ao subir a Ladeira Grande em marcha lenta e dar o último adeus a um Junco partido pelas desavenças, futricas e ódio de irmão para irmão, como se Caim tivesse marcado seu território naquela cidade dita de cristãos? Por mais que imaginemos esse momento, é difícil se pintar o real quadro de dor na tela mnemônica de quem sonhou um mundo colorido e acordou num pesadelo em preto e branco.


Constrangido, peço desculpas a Tessa Sagot pela minha ausência e impotência em fazer com que todos se calassem ou bebessem do seu próprio veneno.







quinta-feira, 30 de abril de 2009

DIA INTERNACIONAL DO TRABALHO

Imagens: escolaprof.files.wordpress.com/2008/04/1-maio...


Há dias que a gente acorda assim, com uma estranha vontade de trabalhar, mas depois que se levanta, escova os dentes e prepara a marmita do meio-dia, as tele-notícias matutinas informam que é o Dia do Trabalho e, portanto, ninguém deve trabalhar.

Pernas pro ar que ninguém é de ferro.


Chicago, sempre Chicago, e suas manifestações históricas dando exemplo de luta proletária ao mundo. No entanto a propaganda comunista dizia que isso era coisa do marxismo-leninista militante e praticante, e que Chicago era apenas um viés na história. As mulheres proletárias chicaguenses nos legaram o dia internacional da mulher no dia oito de março; a massa proletária de Chicago nos proporcionou um feriado a mais no calendário. Falta agora se celebrar “O Dia do Mafioso”, vez que a máfia italiana não teria progredido se não houvesse Chicago. E os políticos. Quando o então deputado federal Luiz Inácio Lula da Silva disse que havia trezentos picaretas no Congresso Nacional, ele quis dizer exatamente “trezentos mafiosos”. Não que os outros que ficaram de fora fossem bonzinhos, corretos, honestos. É que o deputado Lula não sabia que havia mais duzentos e dois deputados gastando os créditos aéreos com a família e amantes.


As mulheres tecelãs de Chicago foram queimadas vivas porque se sentiam injustiçadas por trabalharem dezesseis horas diárias, cuidar da casa, da cozinha, dos filhos, do marido, do amante e ganharem menos que os homens. Por sua vez, os homens proletários de Chicago se uniram em manifestação gigantesca de protesto e reivindicações no dia primeiro de maio de 1886 e foram reprimidos violentamente pela polícia americana, a mais treinada em matar trabalhadores naquela época, cuja ferocidade serviu de exemplo à polícia brasileira na atualidade. Nos dias de greve que se seguiram, os ânimos se acirraram e o confronto resultou em sete policiais e doze trabalhadores mortos, segundo as informações oficiais da época.


A “Segunda Internacional Comunista”, reunida em Paris três anos depois desse movimento operário, deliberou, votou e aprovou o dia primeiro de maio como o dia internacional do trabalhador, em homenagem à primeira grande manifestação sindical da história. Nesse dia os trabalhadores do mundo todo, pelegos ou não, deveriam se reunir em manifestações reivindicatórias, principalmente pelas oito horas de trabalho. Devo ressaltar que a jornada normal era de treze horas diárias e que o vale-transporte e a licença-maternidade são bandeiras de agora.


É um equívoco se pensar que a Lei Áurea tivera influência da manifestação de Chicago. Essa “abolição” negra só aconteceu porque os fazendeiros estavam quebrados e não tinham como sustentar os escravos e as amantes simultaneamente. Mas isso já é outra história para ser contada no dia 13 por quem estiver interessado.


Não pensem os senhores ou as senhoras que o primeiro de maio é vermelho nas folhinhas do mundo todo ou que o proletariado internacional se reúne unicamente nesse dia. Há países que nem sabem que esse dia existe; outros, sabem, mas ignoram. No Brasil, apesar de se comemorar desde 1895, somente em 1925 é que se tornou oficial pelo decreto presidencial de Artur Bernardes. O feriado veio com o trabalhismo de Getúlio Vargas, que transformou os protestos em festas articuladas, bem acolhidas pela Força Sindical paulista, braço direito do PTB.


Na Bahia de ACM era proibido se falar em dia de trabalhador. Ele alegava ironicamente que o baiano passava o ano todo sem fazer nada e justamente no dia do trabalho ele queria descansar. Talvez tivesse razão, mas estava vermelho na folhinha, então era feriado nacional, com direito a praia e ao caldo de lambreta no Mercado Modelo. O principal lema do baiano é: não faça hoje o que pode ser feito amanhã. Isso é sagrado. À época também havia outro argumento sindical em forma panfletária cuja autoria se credita a Dorival Caymmi: “Se tiver vontade de trabalhar, se deite na rede e espere a vontade passar”. Mas ACM queria quebrar essa regra, unilateralmente, e para isso mandava seus cães e cassetetes reprimir as manifestações à base de gás lacrimogêneo e balas de borracha. Seria mais fácil e menos dolorido se ele mandasse apenas desligar os geradores dos trios elétricos.


Nessa época eu era ativista sindical e em um desses primeiro de maio estava acompanhado do japonês Hiroito, engenheiro estagiário no Pólo Petroquímico de Camaçari que queria conhecer o poder de mobilização dos sindicatos baianos. Depois do entra-em-beco-sai-em-beco correndo dos cães policiais, ele falou ofegante, mais pela fumaça na garganta do que pela carreira:


– Xicago!

– Não, japa! Chicago não. Aqui é Salvador, capital da Bahia, esqueceu?

– Xei qué Xalvador. Querro dixer que xicago. Agorra non! Agorra xicaguei!






segunda-feira, 27 de abril de 2009

CADA DOIDO COM SUA MANIA

O primeiro doido que conheci respondia pela alcunha de Doido Ursino, mas nunca o vi rasgando dinheiro. Pelo contrário, quando caía em suas mãos uns tostões vadios, o mesmo corria para a venda de Josias Cardoso e gastava com doces e pães. Também não jogava pedra nos outros nem ameaçava as criancinhas. Para não dizer que não tinha um comportamento atípico, gostava de soliloquiar. Mas quem, na amplidão daquela solidão, não tinha o hábito de falar sozinho?
Ao contrário dele, Zé Doidinho falava pelos cotovelos quando havia alguém disposto a escutá-lo. Apesar do apelido sugestivo, tinham-no como um sujeito normal. A diferença estava no fato de ser o Doido Ursino um cidadão sem eira nem beira, enquanto Zé Doidinho era herdeiro de algumas dezenas de cabeça de gado.
Neste entretanto Lindemberg de Enoque era um sujeito normal. Trabalhava para o Governo em Alagoinhas e quando tinha folga voltava para o arraial do Junco ao encontro dos pais e amigos da birita e da sinuca. E foi numa noite comum de folga, depois de desarrumar a mala, que ele surtou. Quebrou os móveis da casa e saiu correndo pela rua a jogar pedras nas pessoas. Deu muito trabalho para entrar no Jipe da Prefeitura e seguir viagem para uma clínica especializada em Alagoinhas.
Esses doidos da minha infância em nada se comparam aos doidos cibernéticos que conheço, que surtam de repente e aprontam mil loucuras sob o olhar complacente do monitor. Há os ladrões de identidade, os copiadores de textos, os que encarnam personagens de revistas em quadrinho e aqueles que pensam ser Manuel Bandeira ou Camões. É muita doideira virtual, principalmente nesses sites e grupos de Literatura.
Sexta-feira passada recebi uma mensagem de alguém que se dizia filho de uma dessas amigas virtuais anunciando a sua morte. Sem entrar em detalhes, dizia que a mãe havia se suicidado na noite anterior, que não haveria velório nem enterro. O corpo seria doado para uma faculdade de medicina. A mãe pedira apenas reza. Como bom cristão que sou, procurei uma igreja e mandei rezar missa na intenção de sua alma. A morte, por si só, é algo que nos deixa transtornado. Imagine receber a notícia do suicídio de uma amiga, apesar de virtual, logo cedo da manhã! Mesmo inocente, não há como se evitar certo sentimento de culpa pelo acontecido, principalmente quando se tem consciência de que o ato do suicídio está em envoltório de fatores externos e que falhamos como amigo.
Após dois dias de sofrido pesar, recebi a notícia de que tudo não passara de um surto psicótico da suicida. Ela mesma escrevera a mensagem para ver a reação dos amigos no seu post mortem. Estava vivinha da silva, gozando de plena saude e rindo do desespero das pessoas. Sendo escritora, confundiu-se com os personagens de suas estórias, achando que poderia morrer e ressuscitar quando bem quisesse, sem pensar nas consequências dessa loucura.
Achou magnífico ressurgir das cinzas como se de fato fosse o pássaro mitológico, sem levar em conta aquela estória do menino mentiroso, que no dia que estava se afogando de verdade ninguém o salvou pensando tratar-se de mais uma de suas mentiras. Assim, quando chegar a hora final da nossa Fênix, quem haverá de acreditar e chorar o acontecido? Se bem que, para mim, ela morreu mesmo na quinta-feira, 23.


segunda-feira, 13 de abril de 2009

TIRADENTES: HERÓI OU PARVO?


Charge do Clayton


Hoje comemora-se o aniversário de enforcamento e esquartejamento do alferes Joaquim José da Silva Xavier, o inconfidente mineiro, também conhecido como Tiradentes, precursor da nossa Independência, assunto debatido exaustivamente nas aulas de História do Ensino Fundamental e esquecido nas outras séries do ensino subsequente. Como o brasileiro tem memória curta, quase nenhum adolescente ou adulto se lembra mais quem foi o nobre mártir.

Para aqueles que hoje têm “uma vaga lembrança”, ou os que nunca frequentaram um banco de escola e aprenderam a ler pela Internet, falarei um pouco de um dos nossos heróis, porém devo ressaltar que a História não tem verdade absoluta nem versão definitiva, podendo haver controvérsias ou teses dos adeptos do “Muito Pelo Contrário”, principalmente sobre a titularidade de herói dada a Tiradentes e a real importância da Inconfidência Mineira sobre o advento republicano, vez que revolução se faz com armas e homens e os inconfidentes sequer tiveram tempo de dar um tiro. E na hora do pega pra capar, poucos foram condenados.

Assim como o ouro de Serra Pelada colocou o estado do Pará em posição econômica de destaque, para mais tarde os tucanos entregarem sua riqueza às mineradoras internacionais, nas primeiras décadas do século XVIII a Capitania de Minas Gerais viveu o seu apogeu aurífero, transformando-se em uma das mais prósperas da colônia, surgindo vários núcleos habitacionais no entorno das minas, florescendo ricas cidades, hoje chamadas de “cidades históricas”, a exemplo de Ouro Preto, São João del Rei, Mariana, etc. e tal. Ao contrário do que ocorreu em Serra Pelada, naquela época havia um rígido controle da Coroa sobre as minas e os mineradores. Cobravam-se impostos extorsivos e se promovia um rigoroso combate ao contrabando. Quando o ouro começou a escassear, na segunda metade do século XVIII, Sua Majestade Maria I, rainha de Portugal, não corrigiu a tabela de impostos e muita gente boa foi à bancarrota, endividada até o pescoço, sem condições de honrar suas dívidas com o Tesouro d’além-mar.

A corrida ao ouro transformou-se na maratona do desespero quando a Coroa resolveu cobrar os impostos atrasados de mineradores e não mineradores, aos moldes da Receita Federal de hoje. Com uma pequena e fundamental diferença: quem não pagasse, ia ver o sol nascer quadrado e teria os bens confiscados pelos enviados da Rainha. A tal operação pente-fino chamava-se “Derrama”, e esse nome não foi dado pela Polícia Federal.

Joaquim José da Silva Xavier, como se vê pelo “da Silva”, nasceu um autêntico brasileiro: pelo nome e pelas dívidas. Órfão aos nove anos da mãe, e aos onze, do pai, pequeno fazendeiro da hoje cidade de Tiradentes, foi morar com seu padrinho, o cirurgião Sebastião Ferreira Leitão, mais conhecido como Dr. Tião, pois, no Brasil, desde o seu Descobrimento, todo José é Zé, todo Manoel é Mané e todo Sebastião é Tião. Em Alagoas, todo Benedito é Biu desde a colonização.

O nosso herói e mártir ou mártir e herói - tanto faz, pois a ordem dos tratores não altera o viaduto - logo cedo virou ajudante do seu padrinho. Não por livre e espontânea vontade, mas porque era obrigado a trabalhar para pagar a comida que comia. Deste modo,  tornou-se um exímio tirador de dentes, sendo procurado pelos dentes podres da região e de outros cantos. Por causa da profissão, deram-lhe o epíteto de Tiradentes.

Cansado de tanta sangria e mau hálito, ainda jovem, mudou de profissão: comprou uma mula e virou mascate, comprando e vendendo mercadorias de Minas para a Bahia e vice-versa. Cansou-se das traiçoeiras e perigosas estradas “baianeiras” (mistura de baiana com mineira), cheias de salteadores e cobradores de impostos, pegou as economias que tinha juntado no seu tempo de arrancador de dentes, vendeu a mula e comprou umas terrinhas e quatro escravos. Não sabendo lidar com terras ou com escravos, faliu em tempo recorde e por pouco não virava escravo dos quatro escravos.

Aos trinta anos foi ser alferes da 6ª Companhia do Regimento de Cavalaria Paga de Minas Gerais (posto, hoje, equivalente ao 2º tenente do Exército), sendo destacado para missões perigosas de combate ao banditismo e ao contrabando de ouro, obtendo êxito total, promovendo a limpeza da região aurífera dos meliantes e contrabandistas.

A Conjuração Mineira foi um caldeirão de interesses endêmicos e convergentes, onde se misturaram interesses econômicos, ideário libertário e maçonaria e, se Tiradentes não tivesse se transformado em herói, podia ser chamado de inocente útil, pois, revoltado com sua promoção a capitão que nunca chegava por falta de um sobrenome de peso ou de padrinhos poderosos, indignado também com a pobreza que lhe rodeava, era a pessoa ideal para boi de piranha dos conspiradores, caso algo desse errado. Tanto contavam com um revés, que nunca deixavam prova documental de suas reuniões. Eram tantos os conspiradores que o conde de Barbacena, governador de Minas Gerais, mandou suspender as investigações por temer despovoar a capitania. Desconfia-se também que houve intervenção da maçonaria junto à Corte, pedindo pelos conjurados presos e por outros que ainda poderiam ser e não foram.

Liberdade, Igualdade e Fraternidade era o lema dos “Pedreiros Livres”, os maçons, movimento criado na França e que dinamitou a monarquia naquele país, cuja revolução, coincidentemente, começou dois meses depois da data marcada para a Conjuração Mineira. Na bandeira dos inconfidentes havia um triângulo semelhante ao triângulo da bandeira revolucionária francesa, que justificaram como a Santíssima Trindade. Ser maçom declarado, naqueles tempos, era pedir para morrer queimado na fogueira santa da Inquisição.

Não foi por dinheiro que o coronel Joaquim Silvério dos Reis traiu os seus companheiros. Foi pela falta dele, para pagar as dívidas com o governo e suspender o processo de sequestro de seus bens, movido pelo fisco. De nada adiantou sua ignominiosa atitude: morreu pobre e miserável na capital do Maranhão. 

Havia também mais dois delatores: os militares portugueses Basílio de Brito Malheiros e Inácio Correia Pamplona, mas os livros de História só dão destaque ao coronel Silvério dos Reis.


Um bom advogado teria provado que um simples alferes não poderia jamais comandar seu comandante (Silvério dos Reis que era coronel e comandante do Regimento de Cavalaria), muito menos o clero, os intelectuais e a elite política e econômica da então região mais rica da colônia. Mas a farsa estava montada e Tiradentes passou três anos isolado na prisão da Ilha das Cobras. Foi condenado à pena de morte na forca juntamente com mais treze companheiros, porém, na hora da cobra fumar seu cachimbo de cânhamo, sobrou apenas para ele, que, além de “zé”, era um “da silva”.





terça-feira, 31 de março de 2009

A Nova Versão da Paixão de Cristo



“Coelhinho da Páscoa, que cores tu tens?” D.P.

Na Semana Santa é comum as cidades de interior encenarem a Paixão de Cristo pelas ruas, com grande participação popular, quer como atores, quer como figurantes, mas a maioria é de espectadores aflitos com a catástase bíblica. Em uma cidadezinha do interior de Alagoas, que muito lembra o arraial do Junco, essa representação teatral vem de longos anos e desde a sua primeira encenação que os atores são os mesmos, apesar do tempo a cada ano talhar novos sulcos no rosto do elenco.
No ano passado, faltando um mês para a apresentação do espetáculo, o diretor reuniu a trupe e falou sem meias palavras:
– É o seguinte pessoal: há muito tempo que estamos com as mesmas pessoas representando a Paixão de Cristo e alguns personagens já não convencem mais, pois ficaram defasados do projeto original. Este ano haverá mudanças no elenco e quero a compreensão de todos, pois não é mais possível continuarmos apresentando um Cristo careca, gordo, barrigudo e próximo dos sessenta anos. E Maria Madalena, então? Está vinte anos à frente da verdadeira. Pilatos? Né bom nem falar! Vocês já viram algum Pilatos desdentado e adunco?!
Ninguém ousou contestar. Contra fatos não há argumentos. A realidade se impunha cruamente quando se olhavam no espelho. Já era passada a hora de pedirem o boné.
Abriu-se a temporada de teste cênico. Vários candidatos se apresentaram. Um ator jovem, malhado e cheio de ginga foi o escolhido para fazer o papel de Jesus Cristo. Tatuagem no braço, brinco na orelha, não lembrava um mínimo o personagem central, mas levava uma carta de apresentação do Prefeito, principal financiador do espetáculo. Pelo menos tinha uma aparência Global, arrancaria suspiro das mulheres, tal qual Tiago Lacerda em Nova Jerusalém.
O antigo ator principal não ficou sem função. Em reconhecimento aos longos anos de serviço prestado à companhia teatral, arranjaram-lhe o papel do soldado que chicoteia Cristo no caminho do Calvário. Diante do destacamento policial da cidade, ele parecia um atleta e ninguém se lembraria do fato de que soldados romanos não se tornavam sexagenários.
Depois do clássico julgamento em que Pilatos lava as mãos, Jota Cristo foi condenado sem direito a recorrer aos Ministros do Supremo Tribunal Federal. Sem maiores delongas, puseram a coroa de espinho de plástico flexível na sua cabeça, e o empurraram aos tapas para a saída, onde a cruz de isopor estava à sua espera. Caminhou trôpego para cumprir as profecias, seguido por uma multidão de figurantes e espectadores. Estava escrito nas estrelas e assim teria que ser. Algumas pessoas mais sensíveis choravam às cântaras com o realismo do espetáculo e se auto-flagelavam açoitando as costas com galhos de cansanção. Não bastava a dor: tinham que sentir o ardor e assim expiar a culpa do suplício de Nosso Senhor Jesus Cristo no dia de Sua Paixão e Morte.
A encenação seguia normalmente até a hora que o soldado chicoteador, com raiva do ator que havia tomado o seu lugar, deu uma chicotada violenta, imprimindo rancor e ódio ao látego. O intérprete de Jota Cristo acusou o golpe, sem denunciar a dor. Pediu baixinho, rangendo os dentes:
– Devagar, cara! Isso aqui é uma encenação! Bata leve, de mentirinha!
O soldado fez ouvido de mercador. Lembrou-se das chicotadas que levou durante aqueles anos todos para depois ser preterido por um almofadinha com pinta de surfista. Sua raiva triplicou ante tal lembrança. Engoliu saliva com gostinho de vingança e baixou o sarrafo. Uma, duas, três chicotadas seguidas, rasgando a roupa e tirando sangue das costas do condenado. Jota Cristo jogou a cruz de lado, se livrou da coroa de espinho, deu um urro, arrebatou o chicote da mão do soldado e o surrou com raiva e fúria.
O povo, tomado pela forte emoção do espetáculo, pensando tratar-se de um novo enredo para a Paixão nos moldes da coragem sertaneja, aplaudiu entusiasticamente a reação de Cristo, elogiando sua atitude corajosa, de macho. Naquela terra de homens valentes, ninguém aprovava Seu jeito cordeirinho de aceitar morrer resignadamente, ainda mais sendo filho de quem era. Bastava dizer um “abracadabra” para a terra engolir todos os seus inimigos.
– Dá-lhe, Cristo! É assim que reage um cabra-macho! Acaba com esse fariseu safado! Pau nele!
Por conta desse realismo fantástico, foi reescrita uma nova versão do Evangelho, com um novo final histórico: em vez de ser crucificado, Jota Cristo foi recolhido ao xilindró por soldados à paisana, que não faziam parte do elenco.
O povo, em vigília solidária, varou a noite na porta da cadeia, exigindo a liberdade do ator. Sem a crucificação, não haveria Sábado de Aleluia e consequentemente o Judas não poderia ser malhado. As crianças perderiam o chocolate do Domingo de Páscoa e não poderiam cantar as cores do coelhinho.


quinta-feira, 26 de março de 2009

OS SABORES E OS AMORES


O CONTADOR E O CONTADOR DE ESTÓRIAS


Paraíso é um lugar fictício, mas pode ser qualquer cidade do interior do Nordeste, com seus causos e seus casos, suas crenças e crendices, vultos e aparições. Mulher menstruada não se depila, mulher parida não come farinha do mesmo dia e os umbigos das crianças são enterrados nos currais de gado para proteger os rebentos contra as investidas do filho do Malfazejo. O delegado e o prefeito formam o topo da pirâmide social, seguido do soldado de polícia e do cobrador de ônibus; o primeiro, responsável por manter a ordem dentro da ordem e o segundo, é o Hermes dos sertanejos, levando e trazendo mensagens e abarrotando a mala dos ônibus de todo tipo de bagagem. Houve cobrador que conseguiu a façanha de colocar um jumento no bagageiro do ônibus.

Quando Luiz Eudes pisou o chão de Paraíso, trazendo na mala um canudo de contabilista, mal sabia ele que estava escrevendo certo por linhas tortas, ou seja, que a profissão de contador de números reais e absolutos das empresas, daria lugar a um outro tipo de contador, o de estória, onde a lógica fria dos algarismos seria substituída pela fertilidade criativa de contar seus contos sem aumentar um ponto. Paulista de nascimento, e nordestino por devoção, cedo se encantou por Paraíso, fonte inesgotável de inspiração. Observando e absorvendo o modo e os costumes do povo paraiense, ele condensou uma coletânea de casos e causos nas páginas deste livro, em texto leve e bem-humorado, levando o leitor a rebuscar suas raízes rurais no imaginário de A Curva e a Montanha, em uma viagem surreal, cuja paisagem mostrada na janela do inconsciente, expõe singularmente a alma simplória e inocente do sertanejo.

São vinte e dois belíssimos contos selecionados pelo autor, predominando as estórias de cidade de interior, onde a urbe se confunde com a zona rural, e os personagens, apesar de não vestirem a carapuça do jeca, têm um comportamento peculiar ao que nós chamamos de tabaréus da roça, o nosso jeca, com suas crenças e descrenças, e uma estranha fobia de banhar-se em águas limpas, medo esse, herdado de nossos ancestrais portugueses, cuja tradução desse fato encontra-se deliciosamente relatado no conto “A Morte Mal Anunciada”.

Ao final da leitura, nossa alma caipira sente-se recompensada pela singeleza textual com que Luiz Eudes nos brinda ao narrar os casos e causos que povoam o imaginário popular do sertão nordestino, nas belíssimas e românticas noites de lua cheia.

quarta-feira, 11 de março de 2009

O DIA DA PADROEIRA

De Procissão


Aquele que se criou no sertão e não teve sua iniciação sexual com uma jega, cabra ou galinha, não pode dizer que teve infância. E aquele que nunca brigou quando menino, certamente nasceu um maricas.

Zé Bentinho fez tudo isso quando criança. E fez pior, pois contava com o apoio incondicional do pai. Não havia jega nas redondezas que não suspendesse o rabo quando de longe lhe avistasse; não havia cabra que, sentindo sua presença, não se encostasse ao barranco e berrasse: zéééééééé! Não existia criança naquele lugar que com ele não houvesse emendado os bigodes. Não fazia distinção de idade nem de físico, desde que fosse do seu tope, o desafeto.


Nenzão, seu irmão mais velho, de comportamento tímido e pacífico, muitas vezes se viu envolvido em confusão por causa do arreliento do Zé Bentinho. Em casa, nunca começaram uma brincadeira para que não terminassem se engalfinhando. Tonho Fiscal, pai dos dois pirralhos e fiscal da prefeitura, castigava Nenzão e premiava Zé Bentinho com um pirulito, por achar que, no sertão, homem que é homem não leva desaforo para casa.


- É de criança que se faz homem e filho meu tem que ser é macho! – dizia taxativo, quando alguma mãe chorosa ia à prefeitura reclamar do Zé Bentinho.


Nem todos na família concordavam com as diabruras do pirralho. O seu avô paterno, homem íntegro, achava que o seu neto estava mais para um moleque malcriado do que para um homem de respeito. “Homem para ser homem tem que ser respeitador!”, afirmava, quando o assunto era o seu neto e a educação recebida do pai. Muitas e muitas vezes entrara em atrito com o seu filho, Tonho Fiscal, por causa das molecagens do neto. E descia a madeira em Zé Bentinho quando o mesmo extrapolava as suas molecagens e o seu filho não tomava nenhuma atitude.


Eduardo de França podia se chamar Eduardinho, mas ganhou o apelido de Dudu Pareia graças a sua mania de chamar os colegas de “pareia”. Era um menino de comportamento discreto, porém, depois que se meteu com Zé Bentinho, passou a fazer parte do ditado que diz que “passarinho que acompanha morcego dorme de cabeça para baixo”. Não era arreliento nem malcriado como Zé Bentinho, mas costumava seguir o amigo nas safadezas. Dizia-se que fazia por medo. Pai morto em um desastre de automóvel, fora criado pelo avô, um sertanejo rígido na educação moral e dos bons costumes.

Zebedeu, dono da jega mais cobiçada pela molecada, e até por alguns adultos de Lagoa Azul, trazia sob severa vigilância o seu mais querido e mais sagrado animal todas as vezes que se via obrigado a sair de sua roça para ir à cidade comprar ou vender alguma coisa. Considerava uma terra de depravados, a Sodoma do Antigo Testamento, um antro de marginais e tarados. Porém ninguém haveria de fazer um malfeito com a sua inestimável jeguinha. Que os moleques vadios procurassem outro animal em outro pasto. O dele não, violão!

Comentava-se, à boca pequena, que Zebedeu mantinha um intenso caso de amor com sua protegida. Sentia mais ciúmes de seu animal do que de sua ex-noiva. Desmanchara o casamento pelo simples fato de ela esporar a jega em um raro dia em que ele a deixou praticar montaria e sair a trote pasto afora. Que triste dia! Só não meteu a mão na cara da noiva porque foi contido por um soco, dado pelo sogro, que mais lhe pareceu um coice. Foi o fim de um noivado de seis anos. E de uma amizade de vinte.

Um dia, dia de festa da Padroeira de Lagoa Azul, Zebedeu relaxou na vigilância. Sendo católico apostólico romano, fervoroso devoto da padroeira, acreditava que ninguém ousaria contrariar o ato sagrado da procissão em atitudes vis e pecaminosas. O belzebu queimaria no fogo do Inferno!

Zé Bentinho encontrou o seu amigo Dudu Pareia no justo momento em que descobriu Zebedeu no meio da multidão sem a sua companheira. Escapuliram de mansinho, entraram em um beco, saíram em uma rua deserta e avistaram a jega mais desejada do sertão pastando tranqüilamente em um terreno baldio. Olharam para os lados para ter certeza de que não foram seguidos, puxaram a jumenta pelo cabresto e se enfiaram numa casa abandonada.

Mal podiam acreditar no que estavam fazendo, mas estavam. A emoção era muito grande, enorme, deixando o coração num pulsar acelerado. Quando o feito heróico tivesse se espalhado, seriam considerados os maiorais do sertão. Ganhariam respeito. Teriam lucros imensuráveis: muitos lhes pagariam caro para que contassem a saga. Talvez virassem personagens de cordel, sendo cantados caatinga afora, pelos mais intrépidos violeiros:

Vou contar para vocês
Tudo o que aconteceu
Na proeza de Zé Bentinho
E a mimosa de Zebedeu
Deflorada na casa velha
Do finado Zé do Iguassu
No sagrado dia do jubileu
Da padroeira de Lagoa Azul.

Acompanhado do amigo Dudu
Seu escudeiro de plantão
Levaram o animal para a casa
Povoada de assombração
Consumando o ato depravado
Com a mais cobiçada do sertão.

Coube a Dudu Pareia a honra de ser o primeiro na disputa do par ou ímpar. E foi. Zé Bentinho ficou segurando o cabresto enquanto o seu amigo aliviava as tensões. Havia um misto de prazer e medo. Foi rápido, ejaculação precoce. Era a vez de Zé Bentinho, que mal continha a emoção; preparou-se lentamente para consumar o ato supremo da zoofilia. A jega era mais alta. Procurou alguma coisa para subir e encontrou uma cadeira velha. Era magro, leve, agüentaria seu peso. Subiu na cadeira e levantou o rabo da jega. Ela deu um passo para o lado. Desceu e se reposicionou, pedindo a Dudu para segurá-la com mais firmeza. Dudu obedeceu e ela aquiesceu. Os animais, nem mesmo as jegas, têm noção de fidelidade. Traição é coisa de ser humano. Zé Bentinho suspendeu o rabo e engatilhou o seu órgão sexual no justo instante em que adentraram a casa os dois avôs e o traído Zebedeu.

domingo, 8 de março de 2009

ILUSÕES DESNUDAS - RESENHA


Ilusões desnudas – Ronaldo Torres.

*Maria Olímpia Alves de Melo


Conheci Ronaldo Torres aqui, no Recanto das Letras, e logo nos tornamos amigos. A empatia foi natural e passamos a ser leitores um do outro. E agora, feliz como se fosse meu, recebo o livro impresso do Ronaldo: Ilusões Desnudas. Editado pela CBJE (Câmara Brasileira dos Jovens Escritores), o livro é lindo. É um livro: você pode cheirá-lo e acariciá-lo antes de abrir e começar a ler. E depois, seguir o conselho que veio impresso na orelha: ‘.. leitura perfeita para um final de tarde, deitado numa rede, ouvindo o canto dos passarinhos e o balançar dos galhos das árvores ao sabor da brisa suave (Luiz Eudes Cruz de Andrade). Tirando fora a rede, com a qual nunca me acostumei, foi o que fiz. Na verdade, reli. Lá fora, entrando pela janela do meu quarto, além dos passarinhos, um cão latindo. Tarde perfeita.

Ronaldo, a quem todos chamam de Tom, é um escritor completo: Escreve contos, crônicas, poemas e o que mais lhe aprouver, porque sabe do mister, o segredo. Dele tive a audácia de resenhar um conto, publicado aqui, em capítulos: O homem que pensou ser Deus. E audácia maior, aceitar o convite para escrever a contra capa do livro. O que fiz com carinho. E de audácia em audácia faço esta resenha para apresentar a vocês o livro do meu amigo.

Seus escritos ora são ternos e suaves, ora irônicos e bem humorados. Busca inspiração dentro da própria vida e recupera as lembranças do Junco, onde passou a infância, tempo que o marcou para sempre. E o marcou tanto que considera ter sido esta a sua sorte maior:

A minha sorte maior

foi ter nascido poeta

na centro da caatinga

do Sertão brasileiro (...).

Sua memória, porém vai mais longe, buscando o poema nos arquétipos distantes encontrados no folclore e na mitologia. Canta a chuva e a noite procurando na insônia e no sonho registro para a sua alegria e sua dor. Sabe usar a palavra em jogos sutis e ritmados. O poema que dá título ao livro joga ao chão a ilusão humana de ser mais do que é, desnudando o homem em sua pretensão de ser o que não é. Começou o poema, Carta aberta a uma entidade falida, com o verso antológico: não te aborreças se um dia eu falar de saudades. E sintam a beleza da última estrofe do amargurado Rotina:

Os passos lentos,

cautelosos,

preguiçosos,

vagarosos,

saúdam a rotina

do recomeçar:

- Bom dia, patrão!

A capa do livro é de Allan Oliveira. Engrenagens monocromáticas em vermelho, o título em negro refletido como em um espelho, em branco. Muito bonita. Em uma página em branco, a dedicatória: Para Edna (Edna Lopes, também minha amiga e companheira no Recanto), Flávia, Cláudia, Ivo e Vinicius, e para os netos Bia e Gabriel.


Não sei o preço do livro. Ganhei. Mas, se não tivesse ganhado, teria comprado. Por qualquer preço. Para ter sempre em mãos, comigo, os versos de um amigo realmente talentoso.


* Escritora mineira e, aos domingos, cozinheira. Mais sobre a autora pode-se encontrar clicando no link abaixo:

http://recantodasletras.uol.com.br/autor.php?id=27042