sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

A Noiva - Cláudia Magalhães





Saltou da cama, temendo chegar atrasada. Era o dia do seu casamento! Ah, esse dia jamais será esquecido! A felicidade, assim como a tristeza, tem cheiro de fruta doce, pensou inspirando o suave odor do ar. Correu até o velho baú e retirou, com cuidado, seu velho vestido de noiva. Vestiu-se com dificuldade. O seu corpo agitava-se num vai e vem frenético. Estava, sempre, num balanço, tentando entrar em harmonia com o tempo. E nesse balanço, atingia vôos cada vez mais distantes. A porta do quarto foi aberta por um rapaz de rosto duro e frio, como todos naquele lugar. Não se importaria com ele, estava feliz demais para isso. Poderia, finalmente, reencontrar seu grande amor!

Em busca do seu coração, seguiu em direção ao pátio. Por que quanto mais queremos chegar a um determinado lugar, mais ele se torna longe?, pensou ao atravessar o longo e frio corredor. As pessoas, que por lá circulavam, não notaram sua chegada. Nenhuma alma. Nem grande, nem pequena. De nada adiantava expirar, com seu deslumbrante vestido branco, tanta felicidade. As pessoas não gostam do sucesso alheio. A felicidade, sempre, incomoda, pensou sentindo toda sua alegria pesar o ar.

Correu em direção ao que chamava de “pequeno jardim”. Nesse lugar, todos os dias, na mesma hora, o esperava sentada num banco, branco, de ferro, que ficava sob uma enorme mangueira. A vida é uma enorme repetição, pensou observando uma manga rosa, tão doce quanto seu coração, pendurada na frondosa árvore. Era a fruta mais bela que já vira. Precisava pegá-la, ela seria seu buquê e quando terminasse a cerimônia, a ofertaria ao homem amado. Ela representaria seu amor! Teria presente mais doce? Não, definitivamente, não! Ah, como o amava! Esse amor tomou conta do seu corpo e tornou-se seu universo. Não entendia o real motivo de ter sido abandonada por ele naquele lugar frio e autoritário, dependendo da bondade, indiferente, daquelas pessoas que entendiam, somente, de bulas de remédio. É certo que estivera completamente no escuro por algum tempo e que andara com as mãos no lugar dos pés, mas, agora, estava “recuperada”. Lutaria pelo homem amado. Subiria na árvore, mesmo que se machucasse. Seus arranhões seriam como uma carta de amor. Era necessário mutilar-se com algumas farpas para provar a grandeza do seu sentimento. Toda carta de amor deveria ser escrita na carne, com sangue, dessa forma, todas as promessas de amor virariam cicatrizes, acompanhariam todos nossos passos e jamais seriam esquecidas com o tempo, pensou ao subir na árvore. Alcançou a manga e colocou-a, com cuidado, no banco. Limpou o vestido. Arrumou os cabelos, jogando-os para o alto e, dando-lhes um nó, improvisou um rabo de cavalo. Estaria impecável quando ele chegasse. Depois de alguns segundos de silêncio, retomaria o fôlego e lhe daria um longo e caloroso beijo. Diria que o amava com loucura e sairiam, de mãos dadas, daquele inferno. Escreveriam uma linda história de amor no tempo e mostrariam as pessoas que o amor necessita de perdão. Pensou em como seria bom tê-lo de volta. Preparar com carinho suas comidinhas preferidas, fazer amor e adormecer em seus braços com a certeza da existência de coisas que nunca se acabam e que nos voltam mais fortes quando a esperamos com paciência e determinação. Limpou, novamente, o vestido. Desmanchou o rabo de cavalo e o refez com agilidade. Nunca estava bom o suficiente. O amor, também, é assim. Nunca é bom o suficiente. Por essa razão fora abandonada. Essa sua mania imbecil de querer tudo no seu devido lugar, de arrumar, incansavelmente, a louça, a casa, era uma prova do seu amor. Ao ter a certeza disso, ele a abandonou. Ele passou a odiá-la pelo simples fato dela o amar. Pegou a manga e observou-a com atenção. Nunca vira uma manga tão bela! Cheirou-a e, novamente, colocou-a sobre o banco. Tinha absoluta certeza de que, em algum momento, ela a faria sofrer. Todas as coisas boas nos fazem sofrer. Elas moram na esquina do amor com o ódio, concluiu com tristeza. Limpou o vestido, refez o rabo de cavalo, pegou a manga, cheirou-a e pensou com uma estranha surpresa: Nunca vi uma manga tão bela! Por duas horas, repetiu esse ritual, incansavelmente. Quando ele chegar, direi que o amo com loucura até a exaustão. Repetirei inúmeras vezes. A vida é uma grande repetição e usarei isso a meu favor, repetindo, somente, as coisas boas, concluiu com satisfação refazendo o penteado.

Faltavam poucos minutos para o pôr-do-sol, quando escutou o som de passos firmes. Eram eles. Malditos! Sanguessugas do inferno!, pensou sentindo um medo quase insuportável. Nesse instante, o céu fechou as pernas arrastando nuvens pesadas e cinzentas, e escondeu o seu azul mais profundo. Tudo ficou plano, reto, uniforme. Não havia estrelas, nem firmamento. Sumiram as cores e do arco-íris, somente o nada. Estava tudo acabado. Fechou os olhos e deixou-se molhar pela água que derramava em seu peito. Sem o seu amor, tudo seria somente chuva. Uma chuva que traria seu passado em relâmpagos, queimaria suas lembranças, reduziria tudo a cinzas, fazendo seu futuro fugir pela boca feito fumaça. Cantou em silêncio, vendo-o morrer arrastado pelo tempo. Olhou a manga e constatou que, em breve, ela seria apenas uma fruta podre ou, então, seria devorada por algum estranho. Soltou um terrível grito de dor. Não! Não deixaria ninguém meter as mãos no que tinha de mais doce. Aquela fruta era seu amor. Se alguém tinha que provar sua doçura, esse alguém seria ela! Devorou a manga e sentiu sua felicidade escorrer pelos dedos. Os dois homens observaram com uma estúpida frieza, por alguns segundos, aquela mulher de rosto inquieto, dando as costas à razão em nome do amor. Não entendiam que não existe nenhuma arma contra ele, somente uma defesa: a loucura. Essa fuga dos perigos da vida. É nesse repouso dentro de nós, que ela nos desmonta e nos torna vítima e algoz.

Deixou-se agarrar por eles. Não se moveu, nem falou nada. Tudo poderia ser usado contra ela. Atravessaram o longo e frio corredor. Deitaram-na na cama, deram-lhe alguns comprimidos e saíram. Nenhum sorriso, nenhum carinho. Não chorou, já estava acostumada com a frieza dos homens sem coração. Enfrentaria a insignificância dos momentos em que teria que viver como se nunca tivesse experimentado um grande amor. Não tinha escolha. Tomaria todos os remédios, faria todas as refeições, como um animal domesticado. No início, quando chegou naquele maldito lugar, tentou se rebelar, mas, tal qual um amor contrariado, todas as suas tentativas de se fazer ouvir foram usadas contra ela. Esperaria a próxima oportunidade e fugiria dali. As pessoas enlouqueceram. Elas não sabem mais amar, constatou com a loucura dos que amam demais.
Ele não apareceu. Teria mais uma chance? Não sabia. Restava-lhe sonhar. Talvez, a forma mais humana, mais justa, de viver. Nos sonhos, encontraria o poder da loucura, do seu lirismo, indispensável para alcançar o amor. Somente os loucos amam. Em algum deles, o reencontraria num lugar chamado poesia. E, com uma flor na boca, ele lhe diria, somente, palavras de amor. Ela escutou o barulho de risadas debochadas, dos enfermeiros, vindas do corredor. O mundo ignorava sua tristeza. Adormeceu chorando baixinho, sentindo o gosto, agora, amargo, do que já lhe fora doce, extremamente doce.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Nocaute Técnico - Antonio Tibau

A publicação de hoje são dez mini contos do novo colaborador do blog Antonio Tibau, do Rio de Janeiro. Como estou em Salvador, sob o domínio de Momo, não há ilustração nem fotografia do autor.
Feliz carnaval aos leitores do blog

twitter.com/nocaute_tecnico

o

1. Quando a queda se mostrou inevitável, a angústia dominou Tavito. Quis economizar as milhas e agora nunca saberá como é voar de executiva.

2. Entrou no banheiro com doze anos, decidido a só sair de lá adulto. Entregou os pontos depois do quarto Hollywood vermelho.

3. Estava tão boa em fingir orgasmos que começou a ficar molhadinha só de pensar na sua próxima atuação.

4. Precisava inventar um problema para a sessão de amanhã. Tinha medo que lhe dessem alta.

5. Acordou na Bahia. Decidiu parar de beber.

6. O silicone não salvou seu casamento. Mas, se serve de consolo, atrapalhou bastante o da vizinha.

7. Surtou baixinho, para não incomodar a mãe.

8. Passou a faca na galinha, mas acabou desistindo da oferenda. Jogou o bicho na panela que assim teria mais chance de arrumar marido.

9. Poderia ter a coelhinha do mês, de qualquer mês, se quisesse. Mas ainda não conhecera o amor de verdade. Diabos! Tragam a de agosto.

10. O clube de suíngue não resolveu nada. Foram expulsos para não contaminar os outros casamentos presentes.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

AS REINAÇÕES DE PEDRO MACAQUINHO

Por Cineas Santos



De Pedro Macaquinho


Constatei, com uma pontinha de alívio, que a figura mais “notável” de Campo Formoso, que nem existe mais, não sou eu. Trata-se de um certo Pedro José de Sousa que, por suas reinações, ganhou a adequada alcunha de Pedro Macaquinho. Menino ainda, Pedro se deu conta de que não tinha a menor vocação para puxar cobra para os pés, preso ao rabo de uma enxada. Num descuido da família, azulou no mundo e foi cumprir sua sina. Analfabeto, sem maior qualificação, descobriu que o próprio corpo poderia ser um excelente instrumento. Simples: punha a mão esquerda na cova da axila direita e, movimentando o braço, marcava o ritmo do xote “O Cheiro de Carolina”, sucesso de Luiz Gonzaga. Foi nessa época que o agraciaram com o rótulo Macaquinho.

Excelente ritmista, tornou-se zabumbeiro do Mané Vicente, que ganhava a vida judiando de uma pé-de-bode ranheta. Sempre que o sanfoneiro parava para entornar uma talagada de cana, Macaquinho abarcava a sanfoninha e mandava ver. Acabou aprendendo o mínimo; o mais correu por conta de sua intuição. Tornou-se presença obrigatória em feiras, quermesses, leilões, desobrigas, circos e funções. Sentou praça no Canto do Buriti e se fez showman: canta, dança, improvisa e conta piadas. O público o adora. Mas sua carreira artística tem sido marcada por um problema crônico: só querem pagar ao Macaquinho com cachaça. Dinheiro, que é bom, nada. Como qualquer macaco que se preze, entre uma reinação e outra, o Macaquinho fazia um filho. Família crescendo, dinheiro curto, as coisas se complicaram. Pequeno ainda, os macaquinhos do Macaquinho passaram a ajudá-lo: tornaram-se todos sanfoneiros e ritmistas. Nascia o conjunto “Pedro e seus Macaquinhos”. Um dos garotos, o Walmir, é um sanfoneiro de grandes recursos técnicos.

A parceria com os meninos rendeu alguns frutos, mas a grana continua curta, e o tempo começa a maltratar o nosso bravo macaco. De repente, aquele novelo de encrencas, que atende pelo nome de próstata, começou a incomodá-lo. Pedro teve de diminuir o ritmo de trabalho, fazer tratamento, gastar o que não tinha. A magra aposentadoria que recebe não lhe garante a sobrevivência com um mínimo de dignidade. Foi aí que pintou a ideia de lançar um CD artesanal, mas realizado com cuidado e capricho. O CD traz o instigante título de The best of Pedro Macaquinho, com um punhado de canções, entre elas as clássicas “Delita” e “De madrugada no calor do frio”, uma versão light, já que a original , down, é imprópria para menores de 78 anos de idade. Sucesso absoluto: o CD vende mais que farinha nas feiras do Ceará. Sucesso e encrenca: segundo fui informado pelo sanfoneiro, pelo menos duas lojas de discos de Canto do Buriti clonaram o CD e passaram a vendê-lo sem autorização do Macaquinho, ou seja, furtam-lhe a única coisa que tem para sobreviver. Sem ter a quem recorrer, Pedro veio me pedir ajuda.

Denunciei o fato no programa Feito em Casa e o faço agora nas páginas de O Dia e no blog Onde Canta a Acauã. Se a pirataria continuar, irei ao Canto do Buriti, denunciar os criminosos ao promotor da cidade. Não tenho poderes para ir além. De qualquer forma, tenho o dever de tentar ajudar aquele humilde cidadão que, com sua arte feita de pura intuição, destronou-me do incômodo posto de única “celebridade” de Campo Formoso.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Sobre Pessoas - 8

Quando o Rio teve um governador chamado Vaca

Do livro de crônicas "Sobre Pessoas", do escritor Antonio Torres

De René Duguay-Trouin


Rio de Janeiro, 12 de setembro de 1711. A cidade amanheceu encoberta. Ajudada pelo nevoeiro e fortes ventos, uma esquadra de 18 navios, 700 canhões e cerca de 6 mil homens, comandada pelo general René Duguay-Trouin, corsário do rei Luís XIV, iria forçar a barra e escapar do poder de fogo das fortalezas de Santa Cruz e de São João. Em poucas horas, fundeava cara a cara com o seu alvo, mandando-lhe bala, para desespero da população. Não suportando a superioridade bélica dos franceses, e a destreza de suas manobras, o Rio se rendeu. O governador Francisco de Castro Morais fugiu. A sua fuga foi seguida pelas milícias e a população.

Duguay-Trouin tomou e assaltou uma cidade vazia, então a mais rica do império colonial português, graças à sua condição de entreposto do ouro das Minas Gerias, que aqui era embarcado para Lisboa. Ele a fez de refém durante os 50 dias em que aguardou o pagamento do resgate, para devolvê-la a seus habitantes, ameaçando reduzi-la a cinzas, caso não fosse atendido. Houve de tudo nesse dramático episódio: tergiversações, pusilanimidade, heroísmo e covardia. Não faltou quem tirasse proveito da situação, em negociações particulares com os invasores. Do seu esconderijo, o governador mimava-os com presentes. E deles recebia, em agradecimento, preciosas garrafas de vinho. Um padre os regalava com carruagens de mulheres.

Quando foram embora, com os seus navios abarrotados de ouro e prata, deixaram a cidade bombardeada, destruída, dilapidada. E de moral no chinelo. Logo instaurou-se uma revolta popular sem precedentes. Apelidado de Vaca, Francisco de Castro Morais por pouco não foi trucidado. Acusado de traição, e de entregar covardemente os bens públicos e privados aos invasores, sem lhes oferecer resistência, não escapou da condenação ao degredo na Índia, nem do confisco de seus bens. E ele era mesmo muito rico, pois era pago a peso de ouro pelo seu cargo, fora as malversações imagináveis.

A invasão francesa teve como conseqüência uma outra: a dos juizes togados de Lisboa, enviados por D. João V. Em meio à agitação dos militares, do Senado da Câmara, da nobreza e dos súditos em geral do reino, instalou-se o Tribunal da Devassa, com uma alçada de 7 ministros. Os trabalhos se arrastaram infinitamente. Mas não acabaram em pizza ou seus equivalentes à época. As sentenças daqueles 7 homens não pouparam nenhum dos acusados. De nada adiantaram os argumentos do governador. Em sua própria defesa, alegou ter sido abandonado por todos. E que havia entregado o ouro aos bandidos para evitar a destruição de tudo que estava sob a mira dos canhões deles.

Todas as punições foram severas. Do desterro à pena de morte. E assim conseguiu-se aplacar a indignação de um povo em estado de descrença total em relação às autoridades.

Enquanto o mundo girou e a Lusitana rodou, Devassa virou marca de cerveja e as vacas voltaram a pastar numa boa.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

DE GATOS E SAPATOS

De Gatos e sapatos

Todos os dias da sua infância na Vila São Francisco, nos cafundós das Alagoas, Avelar viu a alma do gato que ele matou assombrar as suas inquietudes noturnas, solidificando a transfiguração luminosa do felino que depois se desvanecia em miados de lamentos e de dor.

Sonsamente eximiu-se da culpa do crime ao relatar à sua mãe ter sido um infeliz acidente, provocado pelo próprio gato, que pulou para pegar uma lagartixa no exato instante em que ele disparava o seu estilingue em mira certeira na sardanita. A pedra atravessou a cabeça do bichano fazendo um grande estrago, como se fosse bala perdida de revólver. Por azar, atingiu também as sete vidas do infeliz. 

Sua mãe não ligou a mínima para a sorte funesta do felídeo porque, naqueles tempos, gato e sapato eram feitos para se pisar. Nem levou a sério as sombrações felinas que vinham assustar seu pirralho na calada da noite. Acreditava piamente que gato não tinha alma. Morto, não fazia medo a ninguém. Tampouco prestou atenção ao que o filho falava, pois, naqueles tempos, menino era como tamanco, ficava debaixo do banco e raramente os adultos davam importância à conversa de criança. 

– Sossegue. Isso é apenas a sua consciência ecológica cobrando suas atitudes. Se não fosse o gato, seria a lagartixa que você veria – disse e se retirou para seus afazeres de mãe com outros pesos mais importantes na consciência. 

Eu também tive um gato nos meus áureos tempos de menino de interior. Chamava-se Bichano e gostava de beber leite recém-saído do úbere da vaca, às seis horas da manhã. Nas horas vagas, Bichano gostava de caçar lagartixa ou correr atrás de preás nas cercas de macambira. Era muito brincalhão e, os adultos reunidos no avarandado para admirar o pôr-do-sol, xícara de café fumegante nas mãos, interrompiam as conversas meditativas para ver Bichano e suas peripécias com uma bola de meia no meio do terreiro. 

Um dia Bichano aproveitou um vacilo do pessoal da cozinha e resolveu mudar a dieta por sua conta e risco. Era um domingo de pescaria no açude e os homens retornaram com várias fieiras de peixes frescos amarrados pelas guelras. As mulheres se organizaram na cozinha preparando o almoço e não deram importância ao olhar cobiçoso de Bichano, pregado na bacia onde os peixes repousavam no limão. Sorrateiro, pulou ágil e abocanhou uma traíra, saindo em disparada na direção do quintal. Reapareceu uma hora depois, corpo mole e bambo das pernas, pigarreando feito tuberculoso antes de entregar sua alma a Deus. Bichano morreu em meus braços, com uma espinha atravessada na garganta, depois de penosos miados agoniados de dor e de falta de ar. 

Diante do seu túmulo, fiz promessa solene de nunca mais ter outro bicho de estimação. Nem de comer peixe pescado em açude. 

Depois de enterrar três bichinhos virtuais, aqueles inventos japoneses que mais parecem miniatura de game, o meu filho Vinícius esperneou por um animal de verdade. Qualquer um, desde que fosse de verdade, carne, osso e pelo para causar alergia. Uma colega de sua mãe, sabedora do seu desejo, lhe presenteou um gato siamês, que ele o batizou de Mendonça, justificando ser o nome de uma onça camarada de um desenho animado que passava na televisão. 

Mendonça é um gato manso, carinhoso, preguiçoso e se deixa afagar por todas as crianças da vizinhança, a maioria cheia de bichinhos virtuais e de vídeos-games com imagens tridimensionais. Uma delas perguntou inocentemente como se trocava as pilhas dele.

Quando Mendonça era filhotinho, pequenininho, fez amizade com uma lagartixa ingênua que vinha todos os dias brincar com ele na varanda do apartamento, achando que seria possível mudar o comportamento natural dos bichos. No início ela teve medo, titubeou, vacilou, mas, com o passar do tempo, ganhou confiança, acreditou na amizade, se tornaram amigos confidentes e ela contou toda a sua vida para ele, que parecia ouvir atentamente. De vez em quando lhe dava umas estocadas com as patas dianteiras, sem feri-la. Era como gente dando tapinhas nas costas de gente em consolo de amigo. 

Um dia Mendonça despertou, se olhou no espelho e se viu um lindo gato, de pelugem lanosa e garras potentes. Quando a sua amiga lagartixa desceu a parede para confabular, ele se eriçou, curvou a coluna em sinal de ataque, se aproximou finório, manhoso, traidor. Ela, sem desconfiar de nada, correu exultante para abraçar o amigo. Tardiamente compreendeu que os gatos são como os seres humanos: usam e abusam dos amigos a seu bel-prazer, fazendo-os de gato e sapato, cativando suas amizades, aprisionando suas almas até o despertar dos seus instintos selvagens que os levarão a engolir os seus melhores amigos. 

Basta, para isso, ser crédulo e confiar em demasia.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

MORTE E RESSURREIÇÃO DO MALUQUINHO

Por Cineas Santos

De José Elias Arêa Leão


Inicia-se esta arenga com a velha anedota do cidadão (chamemo-lo Cipriano ) que, honesto, trabalhador, benquisto e respeitado de todos, era um exemplo de bom cidadão na cidadezinha onde morava. Atormentava-o, porém, um temor, um medo, um pavor, para ser mais preciso. Horrorizava-se com a ideia de não ter um sepultamento digno, ou seja, com um número razoável de acompanhantes. Dizia aos quatro ventos: “Defunto sem velório é cão sem dono”. E sofria, sofria como um condenado. Foi aí que um amigo industrioso apresentou-lhe uma sugestão: “Compadre Cipriano, vamos tirar isso a limpo: você morre de mentirinha e vamos ver o que acontece”. Ideia aceita e posta em prática: o próprio compadre encarregou-se de divulgar a má notícia. Comoção geral: a cidade inteira e mais alguns forasteiros compareceram ao “velório” de Cipriano que, teso no caixão, a tudo assistia com o maior comprazimento. O compadre, ao lado do ataúde, protegia o “morto” dos olhares indiscretos e despistava os mais curiosos. O ritual se cumpria: café, cachaça, prosa moderada, louvação às qualidades morais do “defunto”. Lá pelas tantas, o compadre segredou: “Hora de levantar, compadre: já vão fechar o caixão”. Cipriano sem abrir os olhos, respondeu baixinho: “Tá maluco, compadre! Você acha que vou estragar um enterro de tal grandeza?”. E mais não disse, pois sobre ele desceu a noite com a tampa do caixão.

José Elias Arêa Leão, que tem todos os atributos do finado Cipriano, não precisou passar por experiência tão radical para provar o quanto é querido em sua aldeia. Deu-se que, na semana passada, morreu um xará do Zé Elias. Um radialista apressado, à cata de um furo, jogou no ar a má notícia que caiu como uma bomba na cabeça de todos nós. Num átimo, telefonemas, e-mails, bilhetes puseram a Chapada em polvorosa. Até a dona Maria da Inglaterra abalou-se de sua casa, na periferia da cidade, para velar e prantear o nosso Menino Maluquinho. Atônitos e consternados, todos perguntávamos: “Por que o Zé Elias?”. A pergunta se justifica: se existe alguém em Teresina que mereça ser condenado à imortalidade eterna (perdoem a redundância) é justamente ele. Setentão, continua lépido, alegre, solidário, irreverente e traquinas como convém a um menino que, para a alegria dos adultos, se esqueceu de crescer.

No fundo, o que esperávamos mesmo era um milagre. E o milagre aconteceu: lá pelas tantas, com sua gaitada inconfundível e com seu passo de pato manco, ressurgiu o Zé Elias, rindo da morte anunciada. Não foram poucos os que, a exemplo de Tomé, fizeram questão de tocar-lhe o corpo para certificar-se de que nosso menino velho continua vivo.

Já se disse, com alguma razão, que nenhum homem é maior que a sua época, mas é inegável que alguns, com seu trabalho, com seu talento, com sua presença luminosa, são capazes de tornar menos ruim a época em que viveram. José Elias Arêa Leão é um deles. Se toda unanimidade é burra, como queria Nelson Rodrigues, está explicado o porquê da ausência de capim-de-burro nos arredores de Teresina: os que amam o Zé Elias comeram tudo.

Longa vida ao Maluquinho do Piauí.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

O pão e o IPTU - Luiz Andrioli



Esta crônica do Luiz Andrioli traz uma verdade que poderia ser colocada em prática. Bastava a população se articular pra isso. Não sei aí na sua cidade, mas, em Maceió, o carnê do IPTU geralmente chega na ressaca do carnaval. É uma dívida que a gente só para de pagar quando bate a caçoleta, mas, mesmo assim, os herdeiros continuam a receber o tal carnê.


De Carnê do IPTU



Os fogos de reveillon mal pararam de estourar e já temos na porta de casa as contas do ano novo. O IPTU é uma delas. O imposto deveria garantir a manutenção dos serviços municipais, como o pavimento das ruas, creches, postos de saúde, praças bem cuidadas, etc. Porém estamos no Brasil e sabemos que nem sempre o retorno é proporcional ao investimento quando se trata de dinheiro colocado na mão dos governantes.

Lembrei-me do IPTU esses dias, ao comprar pão na panificadora aqui no meu bairro. O padeiro disse que o forno estava com problema e o pão havia perdido a qualidade. Por causa disso estava havendo desconto no preço do pãozinho. Eu paguei sem reclamar, afinal, problemas acontecem.

Taí uma ideia boa e honesta que dou para os nossos prefeitos. Nem sempre eles acertam na qualidade dos serviços. Nada mais justo que tenhamos, em alguns casos, um descontinho no IPTU. Convido os contribuintes que acompanham esta crônica a uma volta pelo bairro onde moram. Se achar um buraco na rua, ele deveria garantir um desconto no IPTU. A mesma regra seria aplicada para uma praça mal cuidada, fila no posto de saúde...

Vamos cobrar dos prefeitos o mesmo tratamento honesto que o padeiro deu aos seus clientes. Fica a minha sugestão: serviço municipal mal feito, desconto no IPTU.

Se a moda pegar, muitas prefeituras ficarão devendo dinheiro ao contribuinte.

domingo, 31 de janeiro de 2010

São Sebastião, o rei e o Rio

Do livro de Crônicas "Sobre Pessoas", do escritor Antonio Torres

De São Sebastião



Não é sem motivo que o nome dele está associado ao do Rio de Janeiro. Antes de contá-lo aqui, recordemos a noite em que o padre Anchieta sonhou com São Sebastião, enquanto dormia atrás das barricadas de Mem de Sá, o comandante da conquista definitiva do Rio para os portugueses, então súditos de um rei homônimo do santo perpetuado pelas estampas religiosas, em reproduções imaginárias de seu corpo crivado de flechas.

Tal imagem tornou-se emblemática da intolerância, a simbolizar o martírio dos cristãos no Império Romano, e não só na era de Pilatos. Basta lembrar que Diocleciano (Caius Aurelius Velerius Diocles Diocletianus), proclamado imperador em 284 depois de Cristo, viria a declarar o cristianismo incompatível com o poder do Estado, desencadeando a “grande perseguição” que fez mártires na Itália, na África e no Oriente, até o reinado de Constantino I - de 306 a 337 -, o convertedor de Roma à cristandade.

A história do padroeiro do Rio de Janeiro começa pelo fim. Oficial romano do século III, ao ser denunciado como cristão foi condenado às flechadas, das quais sobreviveu. Mas não resistiu a outras torturas. Morreu flagelado no fogo. No Brasil, tornou-se um santo popular, identificado a Oxóssi nos cultos afro-brasileiros, quer a Igreja Católica considere (melhor dizendo, tolere) a nossa diversidade cultural ou não.

Foi Estácio de Sá quem acrescentou o nome de São Sebastião ao do Rio, ao fundar a cidade, no dia 1º de março de 1565. E o fez em honra a outro Sebastião, nascido em Lisboa em 1554, e rei desde os três anos de idade, já chamado de O Desejado, por ter vindo ao mundo depois da morte do seu pai, D. João. Ele só assumiria o poder em 1568, ou seja, três anos depois de ser homenageado à distância, no sopé do morro Cara de Cão, vizinho do Pão de Açúcar, por um capitão do exército da sua mãe, a regente D. Catarina, incumbido de expulsar os franceses, e liquidar a Confederação dos Tamoios, os maiores entraves à ocupação lusitana nestas paragens.

Dom Sebastião acabou tendo um trágico destino. Sua obstinação pelas conquistas de territórios africanos, e de entrar pessoalmente em combate, o levou a desaparecer em Alcácer-Quibir, no ano de 1578. Portugal viveu séculos à espera da sua volta. A expectativa desse impossível retorno gerou um estado de espírito passadista, o sebastianismo, de longa duração e alcance, pois chegou a este lado do Atlântico, influenciando o movimento insurrecional anti-republicano que provocou a Guerra de Canudos, entre 1894 e 1997.

Os historiadores também fizeram de Dom Sebastião um tipo inesquecível. É um dos reis portugueses mais estudados. E o poeta Fernando Pessoa não lhe negou verso, no papel de conquistador falhado, a desfazer a eterna ilusão do seu regresso:

Louco, sim, louco porque quis grandeza.
Qual a sorte a não dá.
Não coube em mim minha certeza;
Por isso onde o areal está
Ficou meu ser que houve, não o que há.

Voltemos a São Sebastião. Na noite de 18 de janeiro de 1567, José de Anchieta sonhou com ele, a bordo de um dos navios comandados por Mem de Sá, que, ao amanhecer do dia seguinte, iria atacar – junto com seu sobrinho Estácio -, os redutos do cacique Aimberê, na aldeia de Uruçumirim, hoje o bairro do Flamengo. No sonho de Anchieta, São Sebastião aparecia no meio da tropa, matando um índio atrás do outro. Como em dois dias de batalha dos cristãos não sobrou um único canibal, o apóstolo do Brasil exultou com a premonição.

Barbaridade, meu santo.

sábado, 30 de janeiro de 2010

Quem goitana foi Ellie Greenwich? – crônicas pop online

Por Edna Lopes

De Quem Goitana Foi Ellen Greenwich



Tropecei em José Teles zapeando por aí, já faz um tempinho. Li algumas opiniões dele sobre música e gostei muito. Descobri depois que tinha uma coluna de crítica musical no Jornal do Commercio de Pernambuco e, volta e meia, ia lá, xeretar, já que minha vida sempre foi muito ligada a música, por gostar apenas, por ser fã.

Minha opinião é de que existem dois tipos de música: a boa e a ruim, mas há também uma infinidade de gêneros para serem apreciados/consumidos e, como fã, me interesso também pelas impressões e opiniões de outras pessoas, principalmente as que me acrescentam conhecimento, caso dos textos dele.
Visitava o site para xeretar mesmo. Lia e me divertia com seu humor inteligente, com a leveza e por vezes a fina ironia com que descrevia personagens, fatos, acontecimentos ligados ao showbisness. Não era constante, mas de tempos em tempos ia ao JC online, devorava as crônicas postadas, acho que aos domingos, numa coluna chamada CURTO E GROSSO que virou coletânea também pela Bagaço, salvo o engano. SALVO O ENGANO (se não me engano), aliás, é uma das expressões favoritas de Teles... Diz que vive salvoenganando-se...

E não faz muito tempo alguém me enviou um email repassando um texto de sua autoria como sendo de outro autor. Não era a primeira vez nem a última, infelizmente, que eu recebia textos assim e mais uma vez fiquei danada com o fato, imaginando porque há pessoas tão descuidadas/desrespeitosas, que recebem textos, não confirmam a autoria e vão reproduzindo inverdades, textos mutilados, autorias retiradas e substituídas com a maior desfaçatez.

“Tem rapariga aí?” é a pergunta de abertura da crônica “A música dos valores perdidos”, texto que fiz questão de reproduzir com a autoria restaurada na minha página, é uma das tantas crônicas deste livro leve, divertido e instrutivo deste jornalista cultural que, aliás, tem uma obra respeitável publicada pela Bagaço.

São 25 livros que tratam principalmente de boa música e se você ficar curioso em “Quem goitana foi Ellie Greenwich”, José Teles diz e diz outras “cositas más” sobre música, curiosidades sobre personalidades, shows, lançamentos, todas muito interessantes. É mesmo um mergulho no universo musical, leitura divertidíssima para as minhas férias que gostei e recomendo.

Serviço

Livro :“Quem goitana foi Ellie Greenwich – crônicas pop online” – José Teles, Editora Bagaço, 2009

“Quem goitana foi Ellie Greenwich – crônicas pop online” é um apanhado dos artigos que o jornalista publica a dois anos no JC Online, na coluna TOQUES DIGITAIS. São crônicas musicais que ele escreve "sem compromisso com notícia, por diversão", como relata o autor. Entre os textos, histórias dos bastidores de shows, comentários sobre discos, percepções curiosas sobre a música de décadas atrás.

http://jc.uol.com.br/canal/lazer-e-turismo




quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

CACIK JONNE: DO PARAÍSO AO INFERNO

Aproveito o clima carnavalesco para republicar uma crônica que ainda não perdeu o efeito.


De Cacik Jonne


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Domingo de carnaval.
JSA estacionou o carro na Rua Marechal Floriano, transversal da Avenida Araújo Pinho, bairro do Canela, por volta das dez horas da manhã. Abriu o porta-malas, retirou o equipamento de filmagem, testou câmera e microfone e, ao dar os primeiros passos em direção da passarela do Campo Grande para cumprir mais uma jornada da cobertura do carnaval baiano, percebeu que, em um carro estacionado ao lado do seu, um rapaz tentava sair do lado do carona com grande dificuldade, mal podendo se sustentar nas próprias pernas. Do banco traseiro saíram duas mulheres e um garoto portando umas faixas. JSA se aproximou e ofereceu ajuda. Reconheceu o rapaz que tinha dificuldade motora:
– Acho que lhe conheço. Você não é o Cacik Jonne, que era do Chiclete Com Banana?
– Sou eu mesmo.
Não. Estava enganado. Não poderia ser ele. O que ele via e ajudava a andar era algo como um paraplégico na tentativa de andar sem sua cadeira de rodas. Cacik Jonne era um rapaz alegre, forte, jovial, um dos ídolos da banda Chiclete Com Banana, e demonstrava tenacidade. Ao menos era assim a imagem que a sua câmera capturava em todos os carnavais ao passar pela pista do Campo Grande. Ali, naquele instante, ele via um rapaz amargurado, coração ferido, lágrimas disfarçando um olhar doído, triste. Não, decididamente havia algum engano.
– Acredite, sou eu mesmo, amigo. Há longos anos que venho lutando contra essa doença que consome os meus movimentos e se chama de “ataxia cerebelar degenerativa”.
A ataxia cerebelar degenerativa é a perda da coordenação muscular e motora por desordem no cérebro. Pode atacar o coração e, geralmente, ocasiona cegueira. Era um milagre ele ainda não ter perdido a visão.

– Surgiu uma luz no fim do túnel, um transplante de células-tronco embrionárias, custa caríssimo e a banda Chiclete Com Banana se nega a custear o tratamento ou a me indenizar pelos vinte anos em que lutei para colocar a banda no pedestal em que hoje se encontra. A história da banda é a minha história, ou vice-versa. É por isso que hoje resolvi vir pra rua protestar, juntamente com as minhas duas irmãs e o motorista, que era do Chiclete e foi demitido porque ficou do meu lado e agora trabalha pra mim, de graça.
Cacik Jonne entrou para a banda Chiclete Com Banana na sua formação inicial, a convite de Missinho. Era menor de idade, dezesseis anos, e foi preciso a autorização do seu pai para poder subir em trio elétrico. Em 86, em plena micareta de Feira de Santana, por desavenças internas, Missinho saiu da banda, deixando-a sem o seu cantor e líder. Bell e Cacik Jonne seguraram o pepino e não deixaram a peteca cair. Superaram as expectativas e ninguém notou a ausência do antigo líder, a não ser pela mudança no repertório e na dialética poética musical, tempos depois. Missinho seguiu carreira-solo e, posteriormente, foi engolido pela axé music que surgiu como um rolo compressor, esmagando tudo que não fosse um lê-lê-lê, laiaiá. E a banda Chiclete Com Banana, tendo um garoto que desfilava com cocar de cacique tocando sua guitarra eletrizante pelas ruas do Brasil, brilhou tal qual estrela de primeira grandeza.
JSA, sensibilizado, conduziu Cacik Jonne até os camarotes de tevê e pediu para que eles o deixassem permanecer no camarote, o que foi negado. JSA esbravejou:
– Hoje, só porque o rapaz se encontra nesta condição, vocês se negam a recebê-lo. Quatro anos atrás vocês ficavam se babando quando ele passava em cima do trio do Chiclete. Isso é uma desumanidade!
Viraram as costas para a passarela da apoteose do carnaval baiano e, desolados, retornaram para a Avenida Araújo Pinho, no Canela. No caminho, encontraram o pioneiro de programas de auditório da televisão baiana, Valdir Serrão, também conhecido como Big-Ben, nome de seu programa de auditório nos idos dos anos sessenta/setenta, responsável pela projeção de Raul Seixas no cenário nacional, ainda como “Raulzito e Seus Panteras”. Valdir Serrão estava com um trio elétrico independente e iria desfilar pela Avenida Sete cantando Raul Seixas, acompanhado pela banda itapagipana “Seqüestro Relâmpago”. Alda, irmã de Cacik Jonne, narrou o drama do ex-integrante do Chiclete Com Banana e, sem pestanejar, Valdir Serrão ofereceu o trio, mandou colocar as faixas de protesto, e disse que, no Campo Grande, em frente às câmeras, entregaria o microfone a ele, que poderia desabafar suas mágoas.
O trio estava programado para desfilar após a passagem do bloco “Apaches do Tororó”. Um problema técnico impediu que tal acontecesse. O bloco “Internacionais” entrou na passarela com Margareth Menezes arrastando multidões. Ivete Sangalo, puxando “Os Corujas”, nem esperou que a equipe de limpeza fizesse a faxina da passarela: invadiu e levantou poeira.
Valdir Serrão abriu o som e pediu explicações aos coordenadores do carnaval. Fora garantido que depois que o bloco “Internacionais” deixasse a passarela, ele poderia desfilar. Porém tal não aconteceu. Deram-lhe a palavra que, depois da Ivete Sangalo, ele entraria na Avenida, levando o protesto de Cacik Jonne à frente do “Camaleão”, que desfilaria depois. A emenda seria melhor do que o soneto. Seria.
O bloco “Camaleão” usou da mesma estratégia do “Os Corujas”, entrando na passarela ainda com metade do bloco da Ivete Sangalo dentro da pista. Não havia como Valdir Serrão passar.
De cima do trio de Valdir Serrão, Cacik Jonne viu a banda Chiclete Com Banana entrar na passarela. Seus olhos marejaram uma tristeza profunda e infinita e todas as dores do mundo pareciam refletir no seu olhar. O seu estado físico era nada, se comparado à sua dor moral, à sua angústia incontida de se ver impotente para participar daquela festa que ele ajudou a construir. Quatro anos antes ele estava lá, sorriso alegre no rosto, esbanjando energia, tocando para animar a multidão, foliões do Camaleão e foliões pipocas que acompanhavam a banda, aos milhares. Câmeras e câmeras disputavam o seu close. Dezenas delas, transmitindo para o Brasil e para o mundo, as mesmas que hoje lhe negavam o direito de mostrar a sua dor.

O universo conspirava contra Valdir Serrão. Depois de receber autorização para entrar na rabada do “Camaleão”, os músicos da banda “Seqüestro Relâmpago” tomaram posição e, ao fazerem o teste de som, uma surpresa: não havia som. Inexplicavelmente ocorreu uma pane no sistema de operação do som e todos, desolados, guardaram seus instrumentos; cabisbaixos, desceram do trio, inconformados com a desdita.
Cacik Jonne permaneceu em cima do trio elétrico. O Ara Ketu estava posicionado atrás do trio de Valdir Serrão e, para poder desfilar, seria preciso abrir alas para o trio elétrico quebrado. E só havia um caminho de passagem: a passarela do Campo Grande e a metade da Avenida Sete, até a Piedade, onde seria possível tirar o caminhão do roteiro dos blocos.
Assim, uma hora depois, o caminhão do trio elétrico, em silêncio, abriu caminho em cortejo fúnebre de quarta-feira de cinzas em pleno domingo de carnaval. A multidão ruidosa do circuito carnavalesco aplaudiu solidária à imagem de desespero e dor contida na vaga expressão daquele que, por vinte carnavais, fez balançar o chão da Avenida Sete em alucinantes acordes de frevos, marchinhas e depois, axé music.
Sustentado pelas irmãs Andiara e Alda, a sua odisséia física era consumida por uma dor visível e angustiante: a dor moral que somente aqueles que se viram abandonados pelos amigos conhecem a agudeza e a contundência profunda de suas estocadas no coração e a desfiguração irreparável que provoca na alma de quem a sente.




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segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

DA ARTE DE ENGABELAR OTÁRIOS

Por Cineas Santos


De Otário

Durante alguns anos, tive um carrinho peba, ronceiro, sestroso que, justo por esses atributos, ganhou a alcunha de “jumentinho”. Vez que outra, em momento de maior necessidade, o ordinário me deixava na mão. Ainda assim, na hora de me desfazer do condenado, senti uma pontinha de tristeza. Como o carrinho era azul, julguei ser o motivo do apego. Não era. Na verdade, o que me ligava ao caranguinho era a placa: LVO – 0564. No desenrolar dessa arenga, vocês entenderão.

Dia de Reis, no Shopping da Cidade, eu participava, com vivo entusiasmo, da festa organizada pelo professor Vagner Ribeiro. De repente, durante a apresentação do Reisado de Mãe Feliciana, um dos mais antigos de Teresina, fui abordado por um cidadão humilde, idade inescrutável, com aquele ar de quem não foi acariciado pela vida. Maneiroso, pediu licença para aproximar-se, elogiou a iniciativa da festança (lembram-se daquela sensação do álcool na pele antes da picada da agulha?) e gaguejou: -Professor, eu gosto muito de reisado; sou do interior e acompanhava essa brincadeira quando era menino... Preparei-me para a facada. - Parei pra apreciar a brincadeira, deixei minha bicicleta ali na porta, com minhas ferramentas na garupa e veja o que sobrou dela! Com ar compungido, exibiu o arco de um cadeado pequeno, o arco sem o cadeado, naturalmente.

– Veja o senhor: a gente para pra assistir uma festa de santo e vem um malfazejo e leva o pouco que a gente tem... Agora tô aqui precisando de uma passagem pra voltar pra minha terra... Antes de cair no choro, o que me estragaria a maquilagem, saquei os caraminguás que trazia no bolso e entreguei-lhe. Num átimo, o cidadão soverteu-se na multidão. Com seus botões, deve ter dito: engabelei mais um otário...

O ruim dessa história é saber que está sendo depenado e não conseguir safar-se. Certa feita, em Salvador, resolvi conhecer a tão decantada Lagoa do Abaeté. Bruta decepção! Na verdade, o trem não passa de um barreiro escuro, cercado de areia branca. Nem tive tempo de curtir meu desapontamento. Fui encurralado por um enxame de ciganas, todas devidamente caracterizadas, com aquela prosa preguiçosamente envolvente: “com azeite de dendê, não vai doer nada,meu rei” ... Tentei vãmente desvencilhar-me da horda que, como hienas famintas, me cercavam por todos os lados. Uma me falou de “uma loura maldosa que só quer o seu dinheiro”; a outra, de “um sócio que está lhe roubando”, etc. Quando me libertaram, eu estava literalmente na lona. Retiraram-se cantando uma toada alegre e, naturalmente, comemorando a féria conseguida à custa de mais um otário...

Ao longo da vida tem sido assim: pressinto a facada, mas não consigo evitá-la. Aparvalhado, acovardado, deixo-me explorar sem reação como uma criança indefesa.

Antes que me perguntem onde a placa do carrinho entra nessa história, lembrem-se das letras LVO. Pois é: um amigo gozador decifrou o enigma com a mais absoluta propriedade: “Lá Vai o Otário”. Como diria meu irmão mais lúcido, cada um para o que nasce...

domingo, 24 de janeiro de 2010

Sobre Pessoas - 7

O carnaval dos canibais

Por Antonio Torres

De Tamoios


Em priscas eras, vivia no Rio de Janeiro um povo festeiro, mas também chegado a uma guerra. Acabou sendo varrido do mapa nas batalhas de 1565 e 1567, que resultaram na fundação da cidade e na sua conquista definitiva pelos portugueses, quando não sobrou uma única cabeça de índio para contar a história.

No entanto, devemos a esse velho povo o gentílico carioca, pronunciado pela primeira vez num dia qualquer do ano de 1531, quase três décadas depois de o navegador Gonçalo Coelho, a serviço do rei de Portugal, D. Manuel I, o Venturoso, e com o florentino Américo Vespúcio a bordo – aquele que deu o nome ao continente americano -, haver feito a descoberta do Rio.

Os primeiros europeus a darem com os seus costados nestas águas de sonho, som e fúria, não viram a cor do que procuravam: o ouro. Só avistaram índio, papagaio e pimenta, o que já estavam fartos de ver, desde o Rio Grande do Norte, onde batizaram o primeiro acidente geográfico em que encostaram com o nome de Cabo de São Roque, porque era o dia desse santo. Arribaram para o Sul, indo até a Patagônia. Vinte e nove anos à frente, um certo capitão Martim Afonso de Souza desembarcou a sua tropa na praia do Flamengo, que então se chamava Uruçumirim. As mulheres da aldeia esfregaram as mãos e lamberam os beiços:

- Oba! A nossa comida vem andando até nós!

Os seus homens ficaram atentos a todos os movimentos dos recém-chegados. Mas não foi logo de cara que o tacape cantou na moleira deles. Deram-lhes um tempo. Os navegantes lusos souberam aproveitá-lo. E construíram uma ferraria para conserto de navios. Os indígenas acharam a construção muito engraçada. “Carioca, carioca!”, exclamaram, às gargalhadas. O que significava isto? Casa de branco. Mais tarde, carioca passaria a designar um rio que vinha do Cosme Velho e desaguava por ali onde é hoje as confluências das ruas Paissandu e Barão do Flamengo - e também os habitantes da cidade.

Ao levantar acampamento para ir fundar o povoado de São Vicente, no litoral de São Paulo, Martim Afonso deixou alguns de seus comandados, em missão exploratória. Mal sabiam eles que estavam sendo entregues, de mão beijada, aos temíveis canibais, que iriam lhes dar combate, para impedi-los de adentrar a vida ardente da imensa mata. Foram aprisionados e devorados.

Como marinheiros de primeira viagem, aqueles portugueses desconheciam as convenções de guerra nessas terras ignotas. Perdê-la, significava ir para o sacrifício. E este se fazia em festa, numa comemoração espetacular de uma vitória no campo de batalha, que durava muitas horas. Cantava-se, dançava-se, comia-se à tripa forra e enchia-se a cara com uma birita extraída do milho, que se chamava cauim.

Todas as tribos amigas, das aldeias próximas às mais distantes, eram convidadas. Assim, a festança atraía um público de mais de quatro mil participantes. Os folguedos terminavam com um banquete. De carne humana.

Os rituais canibalísticos eram a celebração da coragem do inimigo vencido. Ao devorá-lo, os vencedores estariam recuperando as energias despendidas nos combates. Os prisioneiros deixavam-se sacrificar de crista erguida. Questão de honra. Todos se sujeitavam ao tacape corajosamente, dizendo:

- Os meus me vingarão!

Isso dava sentido à execução e valor à carne do executado.

Os tupinambás, o velho povo do Rio de Janeiro desde milênios antes de os brancos chegarem, costumavam tratar as suas vítimas com algumas formalidades. Primeiro, os vencidos capturados passavam por um período de engorda e cuidados especiais, como o oferecimento de mulheres. Depois, eram colocados no centro de um círculo, para participarem dos ensaios das cantorias para a grande cerimônia já em preparação. Em seguida, eram interrogados, respondendo às perguntas com altivez. Exemplo:

- Sim, como convém a homens corajosos, partimos com o fim de aprisionar e comer vocês. Agora, conseguiram vencer e nos aprisionar, mas isso pouco importa. Homens valorosos morrem na terra de seus inimigos.

Quando chegava o grande dia, os prisioneiros enfeitavam-se de plumas como os outros, bebiam, cantavam, dançavam e, amarrados ao meio por uma corda, desfilavam por toda a aldeia, jactando-se de suas proezas no passado. As mulheres ofereciam-lhes pedras, exclamando:

- Vinguem-se!

Eles atiravam as pedras sobre a multidão. Isso fazia parte do programa da festa, da qual o carrasco não participava. Ficava concentrado, longe da fuzarca, aguardando o momento de ser chamado para cumprir a sua tarefa de justiceiro, com uma porretada de tacape na cabeça dos sacrificados.

Para os portugueses, os códigos de honra indígenas significavam apenas selvageria. E tremiam nas bases quando eram apanhados. Por isso os guerreiros tupinambás os chamavam de covardes. Mas não dispensavam a carne deles em seus repastos. Cunhambebe, o mais temido de todos os caciques, ficava triste quando não tinha um braço ou os dedos das mãos de um português para degustar.

A ironia da história (se tivesse sobrado índio para contá-la) é que foram os que eles achavam covardes os que acabaram vencendo a guerra, a ferro e fogo, no histórico (e abominável) genocídio de 1567, quando se apoderaram definitivamente de um território que lhes deu muito trabalho para conquistar. E o fizeram coalhando o mar de sangue – daí o nome da Praia Vermelha -, cortando as cabeças dos cadáveres e enfiando-as em estacas, num outeiro que batizaram como “da Glória”, exultantes pela vitória, conseguida graças ao poder dos seus canhões, muito maior do que os das flechas e tacapes dos nativos.

Eis o destino do Rio: em festa ou em guerra. Desde o tempo do carnaval dos canibais.