sábado, 12 de março de 2011

Edna Lopes - Mulher objeto de Cama e Mesa


Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo.  Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.

                         Com licença poética – Adélia Prado
 

            Durante esta semana e ao longo do mês de março vamos ouvir e ler muitas referencias e homenagens ao DIA DA MULHER. Embora reconheça um esforço genuíno de muitos movimentos para qualificar o debate e todos os avanços no campo profissional e até político, os chavões e clichês de todo tipo são, nas chamadas da mídia para vender mais qualquer produto, para “a beleza” e o “charme” de todas nós.


        Reconheço mais ainda que o Dia da Mulher caindo no período de carnaval qualquer reflexão se esvai mas eu me pergunto quantas de nós realmente têm a consciência e a responsabilidade de saber se valorizar e se respeitar em todos os papéis que desempenhemos.

        Um dos problemas que enfrentamos é da construção da identidade, da personalidade. Muitas de nós se contentam apenas em ser a sombra do parceiro e, no lado extremo, outras querem ser a sombra, fazem de tudo para que o companheiro sufoque com sua atenção, seus cuidados e seus ciúmes. Também há uma ala que quer ser famosa, bonita e gostosa a qualquer preço.

        Mas o que estamos construindo no imaginário do sexo oposto, com nossas atitudes? O quanto nos valorizamos, para sermos igualmente valorizadas, respeitadas?

       Enquanto elaborava este pensamento, me veio uma lembrança emblemática: quatro lindas meninas bem da geração “posso te conhecer?” se arrumando para uma noitada num desses mega shows de axé music, forró eletrônico e afins.

        Minha curiosidade vira-lata, sem nenhum subterfúgio, ficou observando-as se vestir com se fossem a praia. Tops que mal encobriam os seios, micro shorts e micro saias bem abaixo do umbigo, maquiagem pesadíssima nos olhos e saltos altíssimos.Todas lindas, com o frescor da juventude tornando-as mais lindas ainda porém, fiquei pensando que pareciam se arrumar para um baile de carnaval, fantasiadas de piriguetes*, ou ainda de peças de carne num açougue, bem a vista do freguês... Mas, longe de mim engrossar o cordão dos intolerantes com micro vestidos e trajes desse tipo... 

        Lembrei que, pela idade, todas elas deviam ter imitado dançado e se vestido como as louras do Tcham, a Tiazinha... Meninas erotizadas na infância com a aquiescência de mães e tias sem noção, para não utilizar adjetivos menos nobres.

         Imaginei (só imaginei) os olhares dos rapazes para aquele quarteto... Uma geração que privilegia a aparência, os desejos, as necessidades afloram pela aparência mesmo, mas o que ficará para além de olhar a superfície?

          As conversas no Day After de um show assim é que são esclarecedoras: meninos e meninas comentam com quantos ficaram, quantos pegaram, quantos beijaram sem trocar uma palavra sequer. Rapazes se vangloriam  que conheceram “ biblicamente”  algumas meninas e até  as recomendam aos amigos! 

        Ir a um point da moçada hoje é se deparar com cenas deploráveis. Meninas mal saídas da puberdade bebendo feito esponja, perfeitamente adaptadas, aguardando ou investindo em relações fortuitas, meninos organizando rankings de Pegação... Mulheres profundamente infelizes de saírem na noite e não arranjarem alguém para “pegar”...

        Mulheres tratadas/se deixando tratar como coisa, objeto descartável. Muitas delas desvalorizando-se por suas próprias atitudes, vidas vazias de sentido e significado. Daqui a pouco gastas pelo tempo e ocas, mendigando afeto, ás vezes se deixando explorar pelo primeiro cafajeste que lhes estalar os dedos, por puro medo da solidão.

       Sinceramente podem me chamar de ultrapassada, cafona, anacrônica e tudo o que mais traduzir esse meu estranhamento com esse comportamento da modernidade mas não abro mão de dizer que, em oposição a tudo isso, mulher que se valoriza e se faz respeitar jamais será mulher objeto de cama e mesa ou mulher objeto de “pegação”.


*Piriguete - Significado:
 
Piriguete, também denominada Piri, é uma gíria brasileira que designa uma mulher, normalmente jovem, de acesso fácil e/ou que tem múltiplos parceiros e tem uma preocupação excessiva em exibir os nuances do seu corpo. Geralmente anda em grupos com outras moças que compartilhem os mesmos valores. O termo teve origem em Salvador, a capital baiana, mas se espalhou pelo resto do Brasil em forma de músicas de pagode como por exemplo "As piriguetes chegaram", interpretada pelo grupo Pagod'Art. http://br.answers.yahoo.com/question/index?

Sugestão de leitura:

O livro Mulher, objeto de cama e mesa é uma publicação da Vozes de 1974, da jornalista Heloneida Studart composta de textos concisos, geralmente frases bem chocantes, em forma de colagens, tornou-se um sucesso editorial ao longo dos anos e, atualmente, já está na 27ª edição com quase 300 mil exemplares vendidos.A escritora se propunha a falar da condição feminina, do seu corpo, de maneira tão incisiva e sem muitos rodeios e até insultava as mulheres para que repensassem as suas vidas além do universo doméstico e pudessem construir a sua própria trajetória além do espaço doméstico.
Adaptado por mim do site http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104

Um “Pedacinho” do livro:

Em 1970 voltei ao jornalismo, indo ser redatora de uma revista feminina. Em minha mesa, estava a pauta dos assuntos a serem editados:

como prender um homem para toda a vida;
a melhor maneira de aproveitar os vestidos do ano passado,

além do teste:
você se considera bonita?
 
Enquanto isso, os norte-americanos estavam remetendo outro Apolo à lua; os soviéticos enviavam uma sonda a Marte; dois cientistas italianos pesquisavam a possibilidade de criar bebês em provetas; o tevecassete modificava o papel da televisão nas sociedades de consumo. Sobre tudo isso, nem uma palavra na revista feminina. O tema proposto às mulheres era o de sempre:

como prender o marido
para toda a vida e quais
as 10 melhores maneiras de conquistar
um homem.


Quem pode censurá-las se elas parecem retardadas mentais?


quinta-feira, 10 de março de 2011

Homens, uni-vos!

O meu amigo Chuchu agia em consonância com o nome, sem se importar com o que pensavam os seus vizinhos, inclusive eu que, vez ou outra, cogitava lhe chamar a atenção para o fato, porém o mesmo fazia questão de viver sob a coleira da mulher. Ela era o fator determinante de sua personalidade e assim ele viveu (ou pensou que viveu) até o dia em que ela , cansada de tanta submissão, decidiu ser dominada por um homem de verdade: arrumou as malas e fugiu com o pé de pano, deixando Chuchu com o ônus da desonra, além de ser objeto principal dos comentários jocosos da vizinhança: soube-se, mais tarde, que o tinhoso Ricardão era uma amiga do casal.

– Ele não era mole só nas atitudes. Ser corno de mulher é a pior coisa que pode acontecer a um homem – diziam as más e também boas línguas quando ele passava, cabisbaixo, soturno, como a carregar todo o peso do mundo nas costas.

Essa ocorrência data de trinta anos atrás e Chuchu morreu ano passado sem se aventurar em novo casamento. A decepção fora tanta que seria compreensível se tivesse virado a casaca também, mas como já estava cheio de cabelos brancos, precisaria de muita grana para poder arranjar um bofe de bons bofes.

O que aconteceu com ele foi só um exemplo dentre milhares, e por isso devemos colocar nossas barbas de molho. Mulher bonita, boa e liberal faz o homem gemer sem sentir dor e, por causa desse axioma irrefutável, é a preferida nas cantadas e investidas de umas e outras nos bailes e bares da vida, independente de serem solteiras, viúvas, casadas ou que costuram para fora. Ficam na espreita feito caçador à espera da caça, aguardando o momento oportuno para darem o bote. São atenciosas, doces, melosos, e dizem ter a solução para todos os problemas da vida.

Nós, homens, precisamos reivindicar a criação de vários dias do homem ma-chô-chô, com direito a feriado nacional, divulgação na imprensa internacional e caminhada mais barulhenta e concorrida do que a parada gay. Lutemos pelo orgasmo múltiplo, livre, e distribuição gratuita de Viagra nos postos de saúde para que as mulheres se sintam incentivadas a escrever loas ao nosso dia, listando e enaltecendo nossas qualidades. O Governo deverá criar cotas para o Homem com agá maiúsculo nas universidades federais. E, finalmente, quando um casal hétero for barrado numa boate GLS, a casa deve ser fechada e os responsáveis processados por discriminar a minoria.

Fiquemos antenados porque a concorrência é acirrada e desleal, principalmente das mulheres com excesso de testosterona. Além de elas conhecerem melhor a alma feminina, pois, querendo ou não nasceram com uma, frequentam o mesmo banheiro do boteco, onde se desnudam sem o menor pudor e falam de suas intimidades em cumplicidade de amantes, embora a candidata a sandaliazinha não tenha malícia em suas ações e atenções, até então, inocentes, tal qual Chapeuzinho Vermelho sendo conduzida (e induzida) pelo lobo mau.

Portanto, tratemo-las com deferência, não só no dia internacional da mulher, mas nos trezentos e sessenta e quatro dias, seis horas e cinquenta segundos seguintes, sem esmorecer, porém. Como dizia o camarada Che: “Hay que endurecer sin perder la ternura jamás”. Quando a sua mulher lhe chamar para lavar os pratos, grite bem abusado para que seus amigos e a vizinhança saibam quem é que fala mais alto na sua casa:

– Já vou, meu bem!



quarta-feira, 9 de março de 2011

Luís Pimentel - Duas histórias de carnaval

1.
Foi num Carnaval que passou

O folião chegou no bar Bip-Bip, em Copacabana, e puxou uma cadeira. Arrasado, depois de “três dias de folia e brincadeira” e de se esbaldar no desfile do rancho Flor do Sereno, despejou os cotovelos sobre a mesa e grunhiu:
 – Uma cerveja, estupidamente gelada.
Alfredo, dono do estabelecimento, conhecido e aplaudido pelo mau humor, grunhiu mais alto:
– Só tem quente.
– Serve – gemeu o folião, caindo imediatamente num pranto de derrubar encostas. Tão sincero que até o Alfredo se comoveu:
– Que foi, querido?
Acarinhado, o sujeito abriu o verbo:
– Você sabe o que é ter um amor, meu senhor, ter loucura por uma mulher, e depois encontrar esse amor, meu senhor, nos braços de um motorista de ônibus?
Corno em fim de festa é comum, mas plagiando Lupicínio Rodrigues, não é a toda hora que se encontra.
Alfredo tentou ajudar:
– Qual é a linha?
– Nenhuma. Piranha da pior espécie.
– Estou falando do Ricardão. Qual é a linha que ele pilota?
– 571, Glória-Leblon, via Jóquei.
O comerciante enxugou uma lágrima discreta:
– É duro mesmo. Sei o que você está passando.
Começando a se acostumar com o chifre, o amigo recente se animou:
– Você também já levou bola nas costas?
E o Alfredo, olhar distante, pôs mais uma dose de maldade no alfinete de pontinha fina:
– Só levei bola nas costas nos meus tempos de médio-volante do Bangu. Agora, se pelo menos a vadia tivesse escolhido um motorista do 572, que é via Copacabana...


2.
Paixão na avenida

Saio do Sambódromo na madrugada de terça-feira, depois de ver o desfile da última escola de samba da segunda, e me dirijo à estação do Metrô na Praça Onze. Na fila dos bilhetes, o folião me aborda, lata de cerveja na mão e cigarrinho apagado no canto da boca:
– Tu conheces a Doralice?
– Só a do samba: “Doralice, eu bem que te disse, que amar é tolice, é bobagem, é ilusão”.
– Falo sério, meu chapa. Doralice parece mulata do Lan, tu manja? Sorriso lindo, todos os dentes na boca, peitinhos de amora, coxas de italiana, balaio grande...
Estava musicalmente inspirado, atropelei novamente:
“Mexia um balaio grande, muito mais macio que o boto cor-de-rosa do Custeau”.
– E como é que tu sabes?
– Isso é de outro samba. Fala mais de Doralice.
– Conheci domingo, no desfile da Mangueira.
– Como diria o grande Wilson das Neves, “ô, sorte!”.
– E perdi ontem, no embalo da Mocidade.
Adoro essas histórias, desde menino. Vivia pedindo para minha mãe recontar o drama de um corno amigo, que se ajoelhou diante da infiel, aos prantos: “Volta, amor. E traz quem tu quiser contigo”. Quis saber como é que foi:
– Como ganhei ou como perdi?
– As duas. O importante é competir.
O folião não regateou:
– Ganhei de um sambista desatento, que marcou bobeira. E perdi para uma loura de cinema, que encostou no meu patrimônio, como quem não quer nada, e prometeu vaga de rainha de bateria pro ano que vem.
– E Doralice?
– Foi. A essa altura, já deve estar ensaiando com a louraça.


quinta-feira, 3 de março de 2011

Cineas Santos - Entrudos e Bandeiras

Não lembro com exatidão quando a palavra carnaval incorporou-se ao meu magro universo vocabular. Lembro apenas que, por muito tempo, para mim, carnaval não passava de sinônimo de pecado, “pecado mortal”, para ser mais exato. É que os padres espanhóis (alguns franquistas) que me catequizaram eram extremamente severos: “Uma festa que celebra os prazeres da carne só pode ser a porta de entrada para o reino das trevas”, bradavam eles em intermináveis sermões antes do chamado “tríduo momesco”. Um deles – baixinho, gordinho – descrevia o tal reino com uma riqueza de detalhes de matar de inveja o velho Dante. Sempre suspeitei que o tal padreco conhecesse o lugar. Mas isso já é outra história. O certo é que, um pouco por temor e um bocado por timidez, procurei manter prudente distância do portal do inferno.

Eis que, no inicio da década de sessenta, apareceram na terrinha (S. R. Nonato) três rapazes que estudavam na capital. Alegres, extrovertidos, em pouco tempo, conquistaram a cidade inteira. Foram eles que me convenceram a participar de uma matinê numa terça-feira de carnaval. Por falta de algo melhor, lancei mão de um lenço vermelho, lambuzei a cara com carvão de fundo de panela e, adequadamente fantasiado de otário, caí na gandaia. À época, (não sei se devo confessar) eu já andava perdidamente apaixonado por uma fulaninha que borboleteava pelos céus de minha vida. Com um pouco de sorte, eu poderia vê-la de perto, o que de fato aconteceria.
Embalado pelos sons das marchinhas, esqueci a advertência dos padres e comecei a acreditar que valia a pena entrar no reino das trevas por uma porta tão agradável. Lá pelas tantas, um dos novos amigos me passou um lenço embebido de lança-perfume, que eu não conhecia, e me mandou aspirar. Peguei pesado e, literalmente, apaguei. Quando voltei à tona, todos riam de mim, e a fulaninha tinha-se escafedido (é este o verso) com um garoto sarará, que brincava fantasiado de Zorro. Um mês depois, o tal sararazinho foi encontrado morto, mas juro que não tive nada a ver com o fato.

Pierrô desconsolado, declarei guerra ao carnaval, aos entorpecentes e, principalmente, aos mascarados em geral. A partir daquele dia, sempre que alguém fala de folia, saco da memória os versos: “Tire o seu sorriso do caminho, / que eu quero passar com a minha dor” e desapareço na penumbra. Assim tem sido.

Na semana passada, estava eu banzando em local sossegado, quando me aparece o Zé Elias Arêa Leão, com aquela cara alegre de menino velho que teima em não crescer. De supetão, me pergunta: “Como era mesmo a roupa do Pero Vaz de Caminha?” Não me contive: “Qual é, Zé Elias?! Eu joguei futebol foi com Tomé de Sousa; do Caminha só conheço a Carta, ou melhor aquela parte da Carta que fala das “vergonhas saradinhas” das índias brasileiras”. Gargalhada geral.

Na véspera do carnaval, o Elias me procura para exibir a indumentária do Caminha, devidamente recriada por Joselito, com direito a mangas bufantes e tudo mais. Alegre como um escafandrista que acabara de encontrar a taça do rei Tule, Zé Elias aquecia as turbinas para desfilar na avenida, travestido, digo, fantasiado de escrivão-mor da Esquadra de Cabral. Ao vê-lo partir, assobiando o hit “Erguei as mãos”, do Pe. Marcelo Rossi, não pude deixar de sentir uma pontinha de inveja. Para disfarçar, estilei veneno: esse aí, com certeza, nunca perdeu a namorada no carnaval.


domingo, 27 de fevereiro de 2011

Por que não paras, relógio?



            E se o Tempo não tivesse existido e as horas fossem uma montanha gigantesca de relógios quebrados e de ponteiros empilhados pela Eternidade? Com as horas paradas, ainda seríamos trogloditas e estaríamos poupados de certos vexames televisivos, tipo BBB, Fama, Gugu e Ratinho.

            A Idade Moderna surgiu do lampejo visionário dos alquimistas que procuravam a luz no fim do túnel para iluminar a escuridão cavernosa da Era Medieval. Descobriram o querosene de avião e ficaram sem saber o que fazer com aquele líquido volátil e mais viscoso que a água, até que um alquimista mais inteligente inventou a pólvora, e outro - mais inteligente ainda - colocou um pouco da pólvora na ponta de um graveto e um outro, superinteligente para os padrões intelectuais da época, que havia inventado uma espécie de sapato, resolveu pegar o graveto com a pólvora e friccionar na sola do sapato para tirar um cocô de tiranossauro rex encravado entre a sola e o salto. A pólvora acendeu no atrito com a sola do sapato e o superalquimista, assustado com o fogaréu, jogou o graveto longe, como se se livrasse de uma cobra. O graveto flamejante caiu no barril de querosene de avião e explodiu o barril, espalhando fogo pela floresta de Neanderthal, ocasionando a primeira queimada da História provocada pelo homem.

Em outra caverna longe desses acontecimentos, outro alquimista inventou o cigarro, porém esbarrou em um obstáculo tamanho família: não havia fogo disponível e ele só podia acender o cigarro quando a tempestade incendiasse a mata. Sabendo do ocorrido, viajou para Neanderthal à procura do fogo para acender o seu cigarro.  Assim, de um acaso, foi acesa a chama que iluminaria a Idade Moderna e acenderia o cigarro de muitos viciados. O único inconveniente naquela época era que, além do incômodo de se levar o graveto com pólvora numa ponta, também era preciso carregar um tambor com querosene de avião em u’a mão e o alquimista inventor do sapato na outra.

Somente depois da invenção do bolso foi que se inventou a caixa de fósforos.

            Ah! Se as horas parassem no tempo e no espaço como um monte de ponteiros emperrados em suas engrenagens, estaríamos ainda    tomando banho de cuia, comendo frutas e animais silvestres, fazendo nossas necessidades fisiológicas na mata, transando sexo numa boa num moitel, e Tiririca não seria o candidato a deputado federal mais votado, levando de lambuja uma vaga na Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados.

            Por que não paras, relógio? Não vês essa gente perplexa? 



sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Cineas Santos - Da inutilidade do fazer

Na semana passada, fui procurado por uma bela jornalista que me pediu uma entrevista, tendo como foco a questão editorial no Piauí. Proseamos um pouco e, para encerrar a conversa, a jovem me perguntou: Que diferença o senhor apontaria entre o panorama editorial hoje e a época em que se iniciaram suas atividades como editor? Respirei fundo, oxigenei os dois neurônios que me restam e, desencantado, respondi: Mudou muito, minha jovem, para que tudo continuasse igual. Ante o espanto da cidadã, expliquei: quando comecei a publicar os autores piauienses, em meados da década de 70, não havia livros nem leitores. Hoje, temos centenas de livros editados, e o número de leitores continua o mesmo. Como não existe literatura sem leitores, estamos exatamente na estaca zero.

Seria ótimo se fosse apenas força de expressão. Não é. Quando iniciei minha carreira (melhor seria chouto) de professor, praticamente não existiam textos de autores piauienses disponíveis na praça. Havia uma pequena antologia poética – Caminheiros da Sensibilidade – organizada por J. Miguel de Matos, e dois romances do O. G. Rego de Carvalho: Ulisses entre o amor e a morte e Somos todos inocentes, ambos editados pela Civilização Brasileira, no Rio de Janeiro. Dependendo do humor do livreiro Antônio Nobre, proprietário da DILERTEC, era possível encontrar Beira rio beira vida, de Assis Brasil. Nada além. Ásperos tempos.

Eu poderia simplesmente ter imitado meus colegas de geração, que não ensinavam literatura piauiense por “falta de material didático”. Por minha conta e risco, criei uma editora de fundo de quintal, com um nome pomposo: Editora Nossa. Com a cumplicidade do jovem poeta Paulo Machado, editei em 1976 a coletânea Ciranda, contendo textos de seis poetas piauienses: Chico Miguel de Moura, Hardi Filho, Dodó Macedo, Domingos Bezerra, João de Lima e Paulo Machado. Edição mimeografada com a capa colada com grude. 

Professor em todos os cursinhos de Teresina, não tive dificuldade para vender os livrinhos. Ao longo desses anos, editei todos os escritores piauienses de expressão, de Da Costa e Silva a Elias Paz e Silva. Ao todo, publiquei mais de 100 títulos. Raimundo Nonato Monteiro de Santana não fez menos: com a minha modesta colaboração, editou 92 livros, de Odilon Nunes a Padre Chaves. Kenard Kruel vem publicando livros há bastante tempo. Sabe o que aconteceu? Nada.
O ensino da literatura piauiense tornou-se “obrigatório” nas escolas públicas e privadas do Estado (Art. 226 – Constituição do Piauí). Letra morta. O que os estudantes leem, ou melhor, devoram no período dos vestibulares são os nefastos “resumos” das obras literárias que figuram nos programas. Há uma verdadeira indústria capitaneada por vendedores de bizus, melhor seria: mercadores de alienação.
Terminei a entrevista com uma aula de desencanto: Minha jovem, sem a minha contribuição, a literatura piauiense teria o tamanho que sempre teve. E mais não me foi perguntado.


quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Edna Lopes - Amar se aprende amando*

No retorno ao trabalho reencontrei uma colega que me pediu para conversarmos um pouco sobre o trabalho que a mesma realiza com adolescentes sobre orientação afetivo-sexual. Os problemas se repetem ano a ano: meninos e meninas com os hormônios em ebulição e a comunidade escolar despreparada para lidar com isso.

Comentamos principalmente como tem sido difícil lidar com a questão. Aparentemente a modernidade parece que já deu conta disso, pois bem ou mal a mídia tem ocupado o lugar dos pais e da escola em relação à educação das relações de convívio. 

Em minha opinião de mãe, educadora e mulher, ocupado mal, pois apenas despeja sem reflexão nenhuma algumas questões ligadas ao exercício da sexualidade. A informação é fundamental, mas não determinante para que meninos e meninas compreendam e, no tempo certo, possam viver sua sexualidade de forma saudável e responsável.

Da minha experiência como Coordenadora Pedagógica lembro o quanto os professores alegavam dificuldades para trabalhar determinadas questões em sala de aula, principalmente os conflitos que ali surgiam. Lembro que, salvo exceções, lidei com professores (as) constrangidos (as), sem habilidade para abordar os assuntos e na maioria das vezes, desinformados (as), preconceituosos (as).

Além das informações básicas é preciso, principalmente, superar o preconceito para abordar questões que podem ser embaraçosas, num primeiro momento, mas absolutamente necessárias para que pais e educadores exerçam, responsavelmente, seu papel.

Um problema que tem se agravado é o da Gravidez na Adolescência embora as campanhas para orientar o uso de preservativos (e até a distribuição gratuita) sejam constantes, mas para um trabalho realmente educativo, não basta apenas orientar o uso nem fornecer o preservativo. Orientar para o exercício da sexualidade com responsabilidade exige uma consciência das consequências de todos os atos que a envolvem.

Vejamos esses dados:

* No Brasil, 28% dos Partos do SUS ocorrem em garotas entre 10 - 19 anos. Isto significa que a cada 100 bebês que nascem em nosso país, 28 são filhos de mães adolescentes.
* Evasão Escolar - 25% das meninas entre 15 e 17 anos que deixa a escola fazem isso por causa da gravidez.
* Aumento da Pobreza- A Escolaridade da mulher é um fator relevante na avaliação do índice de desenvolvimento humano de uma população. Fonte: http://www.kaplan.org.br

Talvez esses argumentos não sejam suficientes para que todas as escolas se empenhem nessa tarefa, colocando nos seus projetos pedagógicos e nos currículos, estratégias para abordar uma questão tão séria e preocupante, entretanto é dever de pais e mães e todos os (as) educadores (as) fazerem sua parte, exigindo das mesmas que esse trabalho se inicie o quanto antes, lembrando que as dimensões do Cuidar e do Educar não são restritas a Educação Infantil, mas diz respeito a toda Educação Básica.

Amar se aprende amando, diz o poeta. Viver uma sexualidade saudável e responsável também se aprende na escola e na vida, mas é preciso mais que hormônios em ebulição para exercê-la. É preciso informação, disposição, saúde, sensibilidade para se entender/conhecer e entender/conhecer o outro. É preciso sobretudo seriedade e um olhar verdadeiramente humano e sensível para o que realmente importa.

*Amar se Aprende Amando é o penúltimo livro do poeta Carlos Drummond de Andrade publicado em vida, e que traz cerca de 70 poemas.

Resumo do livro:
Há de tudo neste desconcertante e caliente "mafuá" que agora se lê sob o título de Amar se Aprende Amando, no qual se colhem de imediato duas raras lições: uma primeira, de ousada simplicidade e que se dá logo à tona de seu enunciado, onde o autor permite a audácia de reunir três verbos, cada um deles em voz distinta; e uma outra, mais funda e talvez difícil, que nos ensina essa prática (tão trivial não fosse hoje absurdamente anacrônica) cuja eficácia reside apenas na elementar e irretorquível verdade de que só se aprende mesmo fazendo. http://www.coladaweb.com


segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Cineas Santos - Da arte de aborrecer estagiárias

Às vezes, tenho a impressão de que os editores de jornais adoram humilhar estagiários ou focas, como se dizia antigamente. Incumbem os infelizes das tarefas mais esdrúxulas. Deve fazer parte da pedagogia do sofrimento. Um exemplo: no último final de semana, fui procurado por uma jovem (com idade para ser minha neta) repórter que me pediu uma entrevista. Depois de todas as obviedades e sandices que venho repetindo há séculos, não sei que “novidade” poderiam arrancar de mim. Preparei-me para o de sempre. A moça, armada com um minúsculo gravador, perguntou timidamente: O que o senhor faria se acertasse ,sozinho, os números da Mega-Sena? Respondi de bate-pronto: faria todas as besteiras que venho fazendo ao longo da vida e mais algumas, bem sinistras. Desapontada, a cidadã me olhou como se dissesse: “tenha piedade”. Apelei para a filosofice: senhorita, a verdadeira vocação do ser humano é bobagem. Por sorte, somos obrigados a trabalhar, o que nos impede de passar o dia inteiro pensando e fazendo besteiras. 

Contrafeita, a repórter arriscou: Como assim? Tentei ser o mais didático possível: filha, basta ler as revistas de fofocas para perceber quantas besteiras os ricos fazem num dia. A razão é simples: como não precisam ralar para ganhar a vida, sobra-lhes tempo para o exercício da bobagem em tempo integral. Percebi que a jovem não estava satisfeita com o rumo da prosa. Parti para os exemplos: não faz muito tempo, morreu uma milionária inglesa. Sabe para quem ela deixou toda a fabulosa fortuna que acumulou? Não sabe? Para uma cadelinha poodle. Até hoje, ninguém sabe se a cachorrinha milionário gastou a grana toda com salmão ou se a distribuiu com os vira-latas de Londres. Visivelmente decepcionada, a estagiária esboçou um sorriso incrédulo. Voltei à carga: moça, você já ouviu falar de um artista plástico chamado Demien Hirst? Naturalmente, não. Eu explico: trata-se de um inglês espertalhão que faz fortuna produzindo e vendendo “esculturas” bizarras para milionários excêntricos. São caveiras cravejadas de diamantes; tubarões conservados em formol e coisas menos nobres. Veja o último golpe dele: vendeu pela bagatela de 18,6 milhões de dólares um bezerro empalhado, com cascos e chifres de ouro. Uma peça kitsch, brega mesmo, para ser mais claro. Um milionário a comprou e saiu feliz da vida. 

Pelo ar que fez, percebi que a paciência da candidata a jornalista esgotara-se. Talvez ela esperasse algo mais consequente, edificante. Uma resposta do tipo: fundaria uma instituição para cuidar de crianças carentes, ou construiria um belo museu, etc. Resolvi assoberbar de vez: anote aí, moça: se eu acertasse sozinho os números da Mega-Sena, fundaria uma igreja – Igreja Universal dos Anjos Decaídos da Primeira Hora - com sede em Miami. Abriria sucursais na Ásia, África e América Latina e, a exemplo dos espertalhões que obram milagres em cultos televisionados, triplicaria a minha fortuna enganando os desenganados, como diria o poeta Dobal. Sem se despedir, a jovem foi procurar alguém menos frívolo. Aprender dói!




sábado, 19 de fevereiro de 2011

Do Presidente da Repúblia ao Pernas-Tortas

Era uma manhã de sábado e a garotada jogava bola de gude no meio da rua. Cada um dos garotos segurava uma lata de leite em pó, onde guardava seu estoque de bolas. No final da brincadeira algumas latas sairiam mais pesadas e outras mais leves. Como sempre, os patos pagariam o pato. De repente um barulho ensurdecedor rompeu o bate-boca da molecada e um monstro de ferro sobrevoou em voo rasante, espalhando as bolas de gude no chão, deixando todos parados extáticos com o tamanho do pássaro de ferro voador. 

– É o pavão misterioso – gritou Cacique, o mais novo da turma. O apelido se devia à sua mania de se vestir feito índio. Andava apenas de cueca.
– É um teco-teco! – arremeteu Dito.
– É um “helicope” – corrigiu Carlinhos, o mais velho e o mais sabido da turma – E parece que vai descer no campo de bola... Ei, devolva minhas gudes, Dito! – Dito havia se aproveitado da distração da turma para recolher as bolas de gude espalhadas pelo vento e colocar todas em sua lata.  
– Ladrão de gude! – gritou Iridilton, irmão de Dito.

Os dois se engalfinharam em briga de moleque de rua, conforme diziam as mamães zelosas do comportamento dos filhos. Hélio, o irmão mais velho, apareceu e arrastou os dois pelas orelhas para dentro de casa. 

Todos correram para o campo de bola. Uma multidão também corria para ver a novidade. Quando finalmente as hélices do helicóptero pararam, a polícia formou um círculo ao redor. O prefeito e o delegado se aproximaram. Parecia que eles já sabiam da chegada do visitante ruidoso. A porta do helicóptero se abriu e desceu um senhor bem vestido, simpático, sorridente, rodeado de homens sisudos e de terno preto. Primeiro o homem simpático abraçou o prefeito. Depois acenou para o delegado. Chegou mais polícia e fez um cordão de isolamento. Ninguém mais poderia se aproximar do ilustre visitante. A multidão se indagava curiosa:

– Quem é ele? Ele é quem? Que avião esquisito é esse?

Um funcionário graduado da Prefeitura se aproximou do povo se dando a devida importância que o momento requeria. Falou com todos os efes e erres conforme manda o manual de funcionário graduado:

– Ele é o Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco que veio a Alagoinhas pra trazer o progresso.
– E quem é esse tal de Marechal Castelo Branco? – perguntou alguém no meio da multidão.
– Tá doido de fazer uma pergunta dessa, cara?! Tá querendo ser preso como subversivo e apanhar mais que mala velha?! Este é o glorioso general presidente da república – respondeu o funcionário graduado da Prefeitura. E mais não disse, virando as costas para a massa ignara, certamente se achando o próprio sábio chinês.


Segunda-feira, na escola, os alunos que disseram ter visto o Presidente e que puderam comprovar, receberam cinco pontos em todas as matérias. 

Isso sim, é que era um presidente porreta! 

A minha prova cabal foi uma bandeirinha do Brasil que estava sendo distribuída para o povo agitar na passagem do Marechal. Dito e Iridirton ficaram em casa de castigo no sábado e não ganharam os pontos extras. 

Meses depois tivemos que decorar outro nome de presidente. Sem pontos extras nas matérias. 

Em 1971 tivemos o resultado concreto da visita do Marechal Castelo Branco naquela manhã tranquila como eram tranquilas todas as manhãs de Alagoinhas: um estádio de futebol que não devia nenhum favor aos estádios de interior do Brasil. Fora construído no mesmo campo que serviu de heliporto para o marechal-presidente e recebeu o nome de Estádio Municipal Antônio Carneiro, prefeito idealizador e executor da obra.

O Estádio Antônio Carneiro, mais conhecido como Carneirão, foi inaugurado no dia 24 de janeiro de 1971 com um jogo amistoso entre Bahia e Corinthians Paulista. Nesse mesmo ano o Atlético de Alagoinhas, clube criado em 1970, entrou para o campeonato baiano graças à intervenção do Governador Luiz Viana Filho na Federação Baiana de Futebol. 

Até então o Fluminense de Feira de Santana reinava absoluto no futebol do interior baiano e era um dos mais destacados pela imprensa esportiva. E foi justamente o Fluminense o primeiro time do interior a pisar no gramado do Carneirão em jogo amistoso contra o Atlético de Alagoinhas, que também estreava o gramado do estádio. O Atlético ganhou de 1 a 0.  Esse placar repercutiu no noticiário esportivo e despertou a fúria dos feirenses, acostumados a reinar absolutos. Com o bom desempenho do Atlético no ano de sua estreia, os ânimos entre as torcidas se acirraram e culminou numa batalha campal noutro jogo, desta vez pelo campeonato baiano de 1972, em Feira de Santana. Os jogadores e os torcedores do Atlético que foram ao Estádio Joia da Princesa, além das costelas e pernas quebradas pela torcida do Fluminense, tiveram seus carros depredados. No jogo de volta, em Alagoinhas, a torcida e o time do Fluminense foram recebidos com flores.

Mas por que escrevo sobre um fato que pouco diz respeito aos meus três leitores? É porque, na crônica abaixo, Luís Pimentel relembra o dia que Garrincha foi a Feira de Santana mendigar sobrevivência e isso aflorou as minhas lembranças da infância e adolescência. Mané Garrincha também jogou em Alagoinhas, em jogo caça-esmola, mas não na excursão do Flamengo. Foi um jogo amistoso do Atlético contra o Santos, e Garrincha vestiu a camisa do Atlético. O Santos ganhou de 2 a 0, mesmo assim os atleticanos não se sentiram derrotados, pelo contrário, ficaram maravilhados com a partida. O time paulista levou o time titular e, mesmo cambaleante, o pernas-tortas deu um show de bola. 

Depois desse jogo a camisa 7 do Atlético foi merecidamente aposentada em homenagem e respeito àquele homem que cobriu o Brasil de orgulho.