sexta-feira, 25 de março de 2011

Maurício Melo Júnior - A Ancestralidade Nordestina

O primeiro milagre se deu em 1872. Francisca Belmira era prostituta numa currutela perdida no sertão, nos pés da Chapada do Araripe, um pouso de tropeiros, povoado sem eira, com cinco casas de telha, trinta choupanas e uma capela. O padre veio para celebrar a Missa do Galo no ano anterior e sonhou com o próprio Cristo ordenando que ele se entregasse à tarefa de pastorear aquele rebanho de pouca crença e muita iniqüidade. Ficou. Aceitou a peleja. Num dia de céu claro e luz intensa deu-se o encontro. A mulher, enlouquecida, corria praguejando contra Deus e o mundo. Desafiava valente, desacatava a todos. Até ver o padre que pôs as mãos em sua cabeça abençoando-a.

Ela caiu em choro convulsivo pedindo perdão pelos tantos pecados. Nunca mais bebeu, nunca mais se prostituiu. Morreu como matrona, venerada e respeitada por todo Juazeiro. O padre seguiu obrando seus milagres, livrando flagelados da seca, construindo uma civilização no coração do Cariri. Vinha de uma tradição de fé intensa. Isolado de tudo, sem lei nem rei, os primeiro colonizados daquelas brenhas se entregavam à proteção de Deus e só com ele contavam.

Na ausência de padres regulares, se valiam dos beatos, dos andarilhos que falavam em bonanças e anunciavam apocalipses. Essa tradição de tão forte, norteou o Padre Ibiapina, um advogado que abandonou as leis dos homens e se dedicou à lei de Deus. Fez-se padre no Seminário de Olinda e saiu a pregar pelos sertões. Tinha um discurso tão afinado e belo que encantou o menino Cícero que se fez padre e milagreiro, um santo nordestino, no dizer do povo.

Ninguém sabe quando se deu o primeiro tiro. O fato está perdido nos esteios do tempo. E depois dele viram muitos, tantos que nenhuma tabuada é capaz de contar, mas tem um desses tiros que se fez definitivo. Era um rapaz de 17 anos, conta-se, e já estava, junto com outros dois irmãos, metido com bando de cangaceiros e era um atirador de respeito. Um estrategista, embora nunca tivesse pensado no ofício da guerra. Era tropeiro e artífice do couro, tocador de sanfona também.

Na volta de uma viagem encontra o pai em desespero: tinham lhe roubado umas cabras. Descobriu o ladrão, mas este era protegido do coronel do lugar. Mesmo assim buscou a única justiça possível nos sertões: a lei do próprio braço. Para colonizar aquelas brenhas os homens traziam um pouco de gado e muito de coragem. Não podiam contar com ninguém. E se desavença houvesse, essa teria que ser resolvida no disparo da própria bala. Assim fez o moço, mas precisou viajar e na volta o sítio da família era cinza e os pais, cadáveres. Caiu no cangaço. Numa noite de breu intenso, num combate de grande monta seu tiro clareou o mundo. Isso não é tiro, é lampião, alguém gritou e Lampião ficou sendo desde então; é o que se conta. Certeza mesmo são sua coragem e sua disposição de justiçar o mundo. Mais que homem de carne e osso, Virgulino fez-se lenda.

A música estava no embalo do berço. A mãe era conhecida cantadeira de novenas e incelenças. O pai consertava sanfona e animava forró tocando pé-de-bode. Fazia miséria nos oito baixos. E levava pelo braço, escondido da mulher, o filho, um menino de calças curtas. Nesta transgressão aprendeu a passear os dedos pelo teclado daquele instrumento mágico. Inventada nas brenhas da Europa, a sanfona desembarcou no sertão na bagagem dos judeus errantes, os fugitivos das fúrias governamentais, os cristão-novos.

Para se livrar da melancolia, o homem do sertão puxava o fole nos sambas de latada que o bispo de Olinda proibiu dizendo ser aquela uma festa imoral, isso nos idos de 1735. Tornou-se o instrumento tão íntimo do sertanejo que o menino, crescido, soldado do Exército, tentou dedilhar violão. Faltou jeito, ou foi a sanfona quem falou mais alta, sabe-se lá. O certo é que tirou a farda, botou paletó e gravata e foi tocar valsas e mazurcas nas rádios do Rio de Janeiro. Um dia, livrando uns trocados num cabaré da zona do Mangue, o sanfoneiro ouviu um bando de estudantes pedir para ele tocar alguma coisa do Norte.

Tocou e o sucesso foi imenso. Pelejou com os poderosos da rádio. Pelejou, pelejou. Até que se botou diante do imenso Ary Barroso. “O que o senhor vai tocar?” “Vira e Mexe, uma música do Norte.” “É cada uma que me aparece. Então toque logo essa besteira.” Tocou e o auditório, eufórico, pediu bis. Foi contratado e nunca mais parou de tocar e cantar as coisas do Norte. Criou toda uma estética musical, influenciou uma imensa legião de novos músicos, tocou nas praças nordestinas e nos auditórios do exterior, se fez rei. Distribuiu muitas sanfonas. Honrou um home: Luiz, por que nasceu em 13 de dezembro, dia de Santa Luzia; Gonzaga, por que a mãe, Santana, era devota de São Luiz Gonzaga; do Nascimento, por que dezembro é o mês do nascimento de Jesus.

A ancestralidade nordestina e sertaneja tem base no triângulo fé, resistência e musicalidade. Ela nasce da solidão, do trabalho com o gado, da necessidade de se construir sozinho, de ser forte em tudo. Cícero, Virgulino e Luiz.

Um dia os sociólogos entrarão pela história e descobrirão que esta fé não é fanática. Ela nasce do apega à crença ancestral que reza: mais que a justiça dos homens, o sertanejo em sua solidão carece da força divina para aplacar suas revoltas e privilegiar a labutar, o martelar cotidiano sobre a pedra áspera do chão. Também a violência não é gratuita. Ela é colheita que se faz na precisão de defender a honra e a posse. Sozinho, sem lei nem rei, o homem do sertão tinha Deus no céu e o bacamarte na terra. E para aplacar as fúrias do chão pedregoso e dos homens injustos, nas noites de fogueira e lua tocava viola, dedilhava sanfona, cantava suas mágoas e alegria. E nos dias de sol inclemente, tocava o gado, domava a terra, entoava o aboio. Cícero, Virgulino, Luiz.

O Nordeste mudou. O jumento deu lugar às motos. A polícia e a justiça se espalham por todos os cantos. As igrejas milenaristas e protestantes se desenham em todas as paisagens. A sanfona hoje tem a companhia de guitarras e a zabumba é uma bateria completa. O homem é que é o mesmo em sua ancestralidade. Se não é possível aboiar sobre uma moto, canta pelas porteiras e latadas; se a missa abriu espaço para o culto evangélico, no quarto dos santos tem uma imagem do Padre Cícero; se as rádios empesteiam os ouvidos com gritos breganejos e baladas americanizadas, repinicam uma viola, puxam uma sanfona e cantam para a lua. E como essa gente sabe sorrir com honesta sinceridade.

Não se enganem: Em sua ancestralidade o Nordeste continua sendo Cícero, Virgulino e Luiz.




terça-feira, 22 de março de 2011

Luís Pimentel - Rio, Copacabana, Carnaval 2011

O carnaval do Rio de Janeiro continua sendo o melhor do mundo. Quem diz são os turistas do mundo inteiro que superlotam os blocos de rua, desde o dia em que as escolas de samba (não me perguntem por quê) deixaram de ser o programa preferido deles. 2011 foi o ano em que se festejou, na música brasileira, centenários de nomes ligados ao que há de mais belo na folia (as belas canções), como Assis Valente, Mário Lago, Synval Silva, Pedro Caetano e Nelson Cavaquinho. Também foi, mais uma vez, o ano dos caçadores de mijões.

Também me vejo obrigado a me repetir, uma vez que no ano passado também publiquei crônica e artigo em jornal chiando contra a perseguição neurótica ao xixi, desencadeada pelos fiscais (!) da ordem, que não podiam ver um homem coçar a braguilha ou uma mulher ameaçar ficar de cócoras e já chegavam junto. É claro que, a exemplo de muitos que aqui passam o carnaval, não quero desfilar em mar de urina. Mas não aceito o discurso demagógico de que “era só usar o banheiro químico”. Não tinha banheiro químico para todos, disto sou testemunha. Na apresentação do Rancho Flor do Sereno, aqui mesmo em Copacabana – a mais bela tradução do “foi num carnaval que passou” –, filas de mais de cinqüenta foliões tentavam enganar a bexiga diante de seis (seis! Apenas seis) banheiros unissex.

Mas, como o humor sobrevive a qualquer intempérie, o sufoco inspirou muita gente, como o autor da cantada que ouvi na fila do xixi:

– Você vem sempre aqui, colombina?
– Claro que não, pierrô. Só quando quero mijar.

Ou a solução encontrada pelo genial Alfredinho, comandante do Flor do Sereno, colocando uma caixa cheia de areia sob o palco, para os homens se aliviarem em pé. A uma odalisca que perguntou por que as mulheres não podiam usar “a caixa”, ele respondeu, com essa pérola:

– Porque fere o decoro.

O carnaval sobrevive. Quanto aos caçadores de mijões, só o Alá (lá-ô!) dirá.






segunda-feira, 21 de março de 2011

Luís Pimentel - Oficina do Clube da escrita



O Clube da Escrita inaugura oficina literária de prosa e verso no próximo dia 29 de março, sob a coordenação do escritor Luís Pimentel. É uma oportunidade para escritores iniciantes, candidatos a escritores, ou quem deseja, apenas, adquirir uma boa formação sobre a literatura brasileira e estrangeira.

Pimentel é autor de mais de 30 obras, entre elas os livros de contos Um cometa cravado em tua coxa (Record) e Grande homem mais ou menos (Bertrand Brasil), e os de poesia As miudezas da velha (Myrrha) e O calcanhar da memória (Bertrand Brasil). Também escreve para o público infanto-juvenil. Ministrou oficinas no do Espaço Telezoom, na Estação das Letras, no Armazém Digital, no Centro Cultural da Light e em feiras de livros.

A oficina se dará em encontros semanais de duas horas, das 19h30 às 21h30, sempre às terças-feiras. O coordenador vai elaborar guias de leitura e sugerir exercícios temáticos para a criação da narrativa – em contos, capítulos de romances, textos infanto-juvenis ou textos de humor – ou do verso livre, de acordo com a vocação de cada membro do grupo.

Espaço Telezoom. Rua Mário de Andrade, 48 (Largo dos Leões), Humaitá, Rio de Janeiro. Valor: R$ 200,00. A aula inaugural é gratuita. Mais informações: (21) 3497-7620 ou espaco@telezoom.com.br.


domingo, 20 de março de 2011

Cineas Santos - Da necessidade do fazer - FENAVIPI

Se existe algo que efetivamente me incomoda é ver talento desperdiçado, principalmente numa aldeia como a nossa, tão carente de quase tudo. Não seria força de expressão afirmar que o Festival Nacional de Violão do Piauí nasceu dessa sensação incômoda que, com certa frequência, instiga-me a fazer. Explico: venho acompanhando a trajetória artística do violonista Erisvaldo Borges desde sempre. Não me parecia aceitável ver o esforço empreendido, solitariamente, por ele para plantar as sementes do violão erudito em chão piauiense. Tocando, compondo, ministrando aulas para um punhado de alunos, nosso bravo violonista, sozinho, não conseguiria superar os empecilhos que lhe retardavam a caminhada. Por entender que valia a pena apostar no talento, na competência e, principalmente, na dedicação do Erisvaldo, em outubro de 2004,convidei-o para uma reunião num final de tarde. Meia hora depois, estava formatada a proposta de realização do 1º FENVIPI. Em dezembro do mesmo ano, o festival estava literalmente no ar, uma vez que foi transmitido, ao vivo, pela TV Meio Norte. Sucesso absoluto.

É preciso que se diga que sem a inestimável colaboração do mestre Turíbio Santos, nosso patrono, as coisas teriam sido bem mais difíceis. Turíbio nos abriu muitas portas e, principalmente, avalizou um projeto que poderia não ter vingado. Não nos faltou também o apoio da Prefeitura de Teresina e do Governo do Estado. Por sorte, o público piauiense adonou-se do FENAVIPI e fez dele um evento de expressão internacional. Não se trata – é preciso que se diga – de exagero ou bairrismo. Já marcaram presença em nosso festival artistas do porte de Eduardo Fernandez, Ana Vidovic, Tommy Emmanuel e Xuefei Yang, entre outros. Todos os grandes violonistas brasileiros, de Sebastião Tapajós a Nonato Luiz, já estiveram conosco. Este ano não será diferente. Contando com o patrocínio da Petrobras, a 7ª edição do FENAVIPI trará a Teresina: Yamandu Costa, Victor Valadangos, Ulisses Rocha, Fábio Zanon, Marco Pereira, Mário Ulloa, Fábio Lima, Rogério Caetano e, naturalmente, Erisvaldo Borges.

O que distingue o FENAVIPI dos outros festivais é que, além promover belos concertos para os aficionados do violão, o nosso festival tem caráter eminentemente didático: queremos fomentar o gosto pela música erudita nos jovens, melhorar o nível dos músicos profissionais e amadores do Piauí e, naturalmente, formar plateias. Os resultados já se fazem sentir: nas escolas do município de Teresina, nada menos de 800 crianças têm aulas regulares de violão erudito e teoria musical. Se não houver solução de continuidade, em pouco tempo, estaremos exportando grandes músicos. Assim seja.




quarta-feira, 16 de março de 2011

Uma Noite pra lá de Bagdá



O Coronel fora chamado a Brasília para uma reunião extraordinária com o Ministro do Exército. Havia a possibilidade de ele assumir uma diretoria em uma estatal, recompensa pelos mais de trinta anos dedicados ao verde-oliva. Sua dileta esposa arrumou as malas e o acompanhou até o Planalto Central. Enquanto ele tratava de negócios com o Ministro, ela colocaria as fofocas em dia com a amiga virtual Emilly Sepol. Melhor oportunidade não havia para um tête-à-tête.

Na primeira noite do Coronel e a esposa em Brasília, Emilly Sepol saiu mais cedo da universidade onde assinava ponto e passou no hotel para pegar o casal para uma girada pelos bares da cidade, uma das duas coisas interessantes que existem no Distrito Federal. A outra é a passagem de volta.

O Coronel declinou o convite e preferiu ficar no hotel. Estava cansado da viagem e teria um longo dia pela frente, na manhã seguinte. Ademais, não queria beber naquela noite para não falar com o Ministro exalando bafo de leão.

As duas sacerdotisas de Dionísio, embaladas pela emoção do encontro, chaparam todas e mais algumas, sem dar bolas para o azar. Falaram dos filhos, dos maridos, das sogras, dos vizinhos barulhentos e até do mensalão do DEM. Quando a madrugada se anunciava, resolveram voltar para casa, uma mais bêbada do que a outra.

– Laurinha, cuidado que ali na frente tem um baita de um buraco! (hic!) – alertou Emilly Sepol, conhecedora dos mínimos detalhes da rua de Brasília.
– Cuidado o quê!? (hic!) Quem está dirigindo é você!

Caíram na gargalhada. Cantaram “te amo, Brasília” e na última estrofe Emilly Sepol falou:

– Xiiiii! Tou morrendo de vontade de fazer xixi!
– Eu também!

Emilly Sepol diminuiu a velocidade do carro, procurando um local deserto para desafogar a bexiga. Avistou o cemitério. Estacionou atravessado e desceu correndo para regar o terreno dos mortos. Laurinha correu atrás. Era uma questão de vida ou morte. Do jeito que despejaram a bica, haveria uma farra no Além. Puro malte e cachaça mineira. Das boas.

Aliviada a bexiga, uma se lembrou de que não tinha nada para se enxugar. Pegou a calcinha, se enxugou e jogou fora. A outra resolveu tatear no escuro até encontrar a fita de uma coroa de flores e se secou. Depois as duas saíram abraçadas e cantando Cartola, felizes da vida: “... solte o seu som da madeira / eu você e a companheira / à madrugada iremos pra caaaasa / cantandoooo.”

No dia seguinte, antes da conversa com o Ministro do Exército, o Coronel passou na casa da Emilly Sepol,. Chamou o marido a um canto e falou baixinho para que as crianças não ouvissem:

– Meu camarada, nós temos que ficar de olho nessas duas. Andaram aprontando por aí. A Laurinha chegou de madrugada, completamente bêbada, e sem calcinha. Não faz a mínima ideia de onde deixou ou por que tirou.

– Coronel, se foi só isso você teve sorte! – retrucou o marido brasiliense passando a mão na cabeça – A minha mulher também chegou caindo de bêbada e com uma faixa presa na bunda, escrita assim: “saudades eternas”. Sabe-se lá o que essas duas andaram aprontando ontem à noite! Sabe-se, lá, Coronel!



segunda-feira, 14 de março de 2011

Moacyr Scliar - Meu Querido Antônio Torres


Texto publicado no jornal Zero Hora, de Porto Alegre, em 9/11/2002, por ocasião da Feira do Livro daquele ano. Por ironia do destino, hoje, o escritor Antonio Torres disputa a vaga de Scliar na Academia Brasileira de Letras. Torcemos por você, bróder!


Meu Querido Antônio Torres

Em Junco (Bahia), onde nasceu e se criou, Antônio Torres escrevia cartas para os analfabetos moradores da região. Uma ocupação que condicionou, e de forma mais que simbólica, seu destino: escrevendo, Torres se tornou um grande escritor, reconhecido no país e no exterior. Mas é, ao mesmo tempo, um escritor que escreve por aqueles que não podem ou não sabem fazê-lo. É um autor popular, no mais legítimo sentido da palavra. Não é de admirar que obras como Os Homens dos Pés Redondos (1973), Essa Terra (1976) – traduzido pelo menos em 15 idiomas – Carta ao Bispo (1979), Adeus, Velho (1981), Um Táxi para Viena d’Áustria (1991), Meu Querido Canibal (2000) tenham feito sucesso tanto de público quanto de crítica.

Deste sucesso, posso dar um testemunho pessoal. Sou amigo de Torres há muitos anos. Pertencemos à mesma geração literária, a geração que começou a publicar em fins dos anos 60 e começo dos 70, ou seja, no auge da ditadura. Naquela época escrever era uma forma de resistência. Resistência a que Torres engajou-se de maneira admirável. Junto com Ignácio de Loyola Brandão e João Antônio, ele percorreu o país, falando para jovens nos mais remotos lugares. E foi várias vezes para o Exterior.

Nessas viagens, não raro nos encontramos. Era, e é, ocasião para um bate-papo que se continua através do tempo, uma conversa que sempre retomamos. Para mim, com enorme prazer. É impossível não gostar de Torres. Ele é, pessoalmente, o mesmo autor amável e emotivo que encontramos nas páginas de seus livros. É um homem profundamente generoso. E profundamente brasileiro. As platéias estrangeiras sempre o escutam com atenção porque sabem que, através de sua voz, fala o Brasil mais autêntico, o Brasil que também está todo em sua obra. Que também prima pela originalidade. Quem chamaria um canibal de “meu querido”, senão Antônio Torres?

Agora ele está, como já fez muitas vezes, nos visitando*. É uma oportunidade de conhecê-lo, e de conhecer as suas obras. Vale a pena. Nas páginas de Antônio Torres o Brasil escreve suas cartas.     

*Por ocasião da Feira do Livro de Porto Alegre de 2002, quando o escritor gaúcho Moacyr Scliar foi o mediador de uma palestra do seu colega baiano, realizada no Clube do Comércio.



sábado, 12 de março de 2011

Edna Lopes - Mulher objeto de Cama e Mesa


Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo.  Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.

                         Com licença poética – Adélia Prado
 

            Durante esta semana e ao longo do mês de março vamos ouvir e ler muitas referencias e homenagens ao DIA DA MULHER. Embora reconheça um esforço genuíno de muitos movimentos para qualificar o debate e todos os avanços no campo profissional e até político, os chavões e clichês de todo tipo são, nas chamadas da mídia para vender mais qualquer produto, para “a beleza” e o “charme” de todas nós.


        Reconheço mais ainda que o Dia da Mulher caindo no período de carnaval qualquer reflexão se esvai mas eu me pergunto quantas de nós realmente têm a consciência e a responsabilidade de saber se valorizar e se respeitar em todos os papéis que desempenhemos.

        Um dos problemas que enfrentamos é da construção da identidade, da personalidade. Muitas de nós se contentam apenas em ser a sombra do parceiro e, no lado extremo, outras querem ser a sombra, fazem de tudo para que o companheiro sufoque com sua atenção, seus cuidados e seus ciúmes. Também há uma ala que quer ser famosa, bonita e gostosa a qualquer preço.

        Mas o que estamos construindo no imaginário do sexo oposto, com nossas atitudes? O quanto nos valorizamos, para sermos igualmente valorizadas, respeitadas?

       Enquanto elaborava este pensamento, me veio uma lembrança emblemática: quatro lindas meninas bem da geração “posso te conhecer?” se arrumando para uma noitada num desses mega shows de axé music, forró eletrônico e afins.

        Minha curiosidade vira-lata, sem nenhum subterfúgio, ficou observando-as se vestir com se fossem a praia. Tops que mal encobriam os seios, micro shorts e micro saias bem abaixo do umbigo, maquiagem pesadíssima nos olhos e saltos altíssimos.Todas lindas, com o frescor da juventude tornando-as mais lindas ainda porém, fiquei pensando que pareciam se arrumar para um baile de carnaval, fantasiadas de piriguetes*, ou ainda de peças de carne num açougue, bem a vista do freguês... Mas, longe de mim engrossar o cordão dos intolerantes com micro vestidos e trajes desse tipo... 

        Lembrei que, pela idade, todas elas deviam ter imitado dançado e se vestido como as louras do Tcham, a Tiazinha... Meninas erotizadas na infância com a aquiescência de mães e tias sem noção, para não utilizar adjetivos menos nobres.

         Imaginei (só imaginei) os olhares dos rapazes para aquele quarteto... Uma geração que privilegia a aparência, os desejos, as necessidades afloram pela aparência mesmo, mas o que ficará para além de olhar a superfície?

          As conversas no Day After de um show assim é que são esclarecedoras: meninos e meninas comentam com quantos ficaram, quantos pegaram, quantos beijaram sem trocar uma palavra sequer. Rapazes se vangloriam  que conheceram “ biblicamente”  algumas meninas e até  as recomendam aos amigos! 

        Ir a um point da moçada hoje é se deparar com cenas deploráveis. Meninas mal saídas da puberdade bebendo feito esponja, perfeitamente adaptadas, aguardando ou investindo em relações fortuitas, meninos organizando rankings de Pegação... Mulheres profundamente infelizes de saírem na noite e não arranjarem alguém para “pegar”...

        Mulheres tratadas/se deixando tratar como coisa, objeto descartável. Muitas delas desvalorizando-se por suas próprias atitudes, vidas vazias de sentido e significado. Daqui a pouco gastas pelo tempo e ocas, mendigando afeto, ás vezes se deixando explorar pelo primeiro cafajeste que lhes estalar os dedos, por puro medo da solidão.

       Sinceramente podem me chamar de ultrapassada, cafona, anacrônica e tudo o que mais traduzir esse meu estranhamento com esse comportamento da modernidade mas não abro mão de dizer que, em oposição a tudo isso, mulher que se valoriza e se faz respeitar jamais será mulher objeto de cama e mesa ou mulher objeto de “pegação”.


*Piriguete - Significado:
 
Piriguete, também denominada Piri, é uma gíria brasileira que designa uma mulher, normalmente jovem, de acesso fácil e/ou que tem múltiplos parceiros e tem uma preocupação excessiva em exibir os nuances do seu corpo. Geralmente anda em grupos com outras moças que compartilhem os mesmos valores. O termo teve origem em Salvador, a capital baiana, mas se espalhou pelo resto do Brasil em forma de músicas de pagode como por exemplo "As piriguetes chegaram", interpretada pelo grupo Pagod'Art. http://br.answers.yahoo.com/question/index?

Sugestão de leitura:

O livro Mulher, objeto de cama e mesa é uma publicação da Vozes de 1974, da jornalista Heloneida Studart composta de textos concisos, geralmente frases bem chocantes, em forma de colagens, tornou-se um sucesso editorial ao longo dos anos e, atualmente, já está na 27ª edição com quase 300 mil exemplares vendidos.A escritora se propunha a falar da condição feminina, do seu corpo, de maneira tão incisiva e sem muitos rodeios e até insultava as mulheres para que repensassem as suas vidas além do universo doméstico e pudessem construir a sua própria trajetória além do espaço doméstico.
Adaptado por mim do site http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104

Um “Pedacinho” do livro:

Em 1970 voltei ao jornalismo, indo ser redatora de uma revista feminina. Em minha mesa, estava a pauta dos assuntos a serem editados:

como prender um homem para toda a vida;
a melhor maneira de aproveitar os vestidos do ano passado,

além do teste:
você se considera bonita?
 
Enquanto isso, os norte-americanos estavam remetendo outro Apolo à lua; os soviéticos enviavam uma sonda a Marte; dois cientistas italianos pesquisavam a possibilidade de criar bebês em provetas; o tevecassete modificava o papel da televisão nas sociedades de consumo. Sobre tudo isso, nem uma palavra na revista feminina. O tema proposto às mulheres era o de sempre:

como prender o marido
para toda a vida e quais
as 10 melhores maneiras de conquistar
um homem.


Quem pode censurá-las se elas parecem retardadas mentais?


quinta-feira, 10 de março de 2011

Homens, uni-vos!

O meu amigo Chuchu agia em consonância com o nome, sem se importar com o que pensavam os seus vizinhos, inclusive eu que, vez ou outra, cogitava lhe chamar a atenção para o fato, porém o mesmo fazia questão de viver sob a coleira da mulher. Ela era o fator determinante de sua personalidade e assim ele viveu (ou pensou que viveu) até o dia em que ela , cansada de tanta submissão, decidiu ser dominada por um homem de verdade: arrumou as malas e fugiu com o pé de pano, deixando Chuchu com o ônus da desonra, além de ser objeto principal dos comentários jocosos da vizinhança: soube-se, mais tarde, que o tinhoso Ricardão era uma amiga do casal.

– Ele não era mole só nas atitudes. Ser corno de mulher é a pior coisa que pode acontecer a um homem – diziam as más e também boas línguas quando ele passava, cabisbaixo, soturno, como a carregar todo o peso do mundo nas costas.

Essa ocorrência data de trinta anos atrás e Chuchu morreu ano passado sem se aventurar em novo casamento. A decepção fora tanta que seria compreensível se tivesse virado a casaca também, mas como já estava cheio de cabelos brancos, precisaria de muita grana para poder arranjar um bofe de bons bofes.

O que aconteceu com ele foi só um exemplo dentre milhares, e por isso devemos colocar nossas barbas de molho. Mulher bonita, boa e liberal faz o homem gemer sem sentir dor e, por causa desse axioma irrefutável, é a preferida nas cantadas e investidas de umas e outras nos bailes e bares da vida, independente de serem solteiras, viúvas, casadas ou que costuram para fora. Ficam na espreita feito caçador à espera da caça, aguardando o momento oportuno para darem o bote. São atenciosas, doces, melosos, e dizem ter a solução para todos os problemas da vida.

Nós, homens, precisamos reivindicar a criação de vários dias do homem ma-chô-chô, com direito a feriado nacional, divulgação na imprensa internacional e caminhada mais barulhenta e concorrida do que a parada gay. Lutemos pelo orgasmo múltiplo, livre, e distribuição gratuita de Viagra nos postos de saúde para que as mulheres se sintam incentivadas a escrever loas ao nosso dia, listando e enaltecendo nossas qualidades. O Governo deverá criar cotas para o Homem com agá maiúsculo nas universidades federais. E, finalmente, quando um casal hétero for barrado numa boate GLS, a casa deve ser fechada e os responsáveis processados por discriminar a minoria.

Fiquemos antenados porque a concorrência é acirrada e desleal, principalmente das mulheres com excesso de testosterona. Além de elas conhecerem melhor a alma feminina, pois, querendo ou não nasceram com uma, frequentam o mesmo banheiro do boteco, onde se desnudam sem o menor pudor e falam de suas intimidades em cumplicidade de amantes, embora a candidata a sandaliazinha não tenha malícia em suas ações e atenções, até então, inocentes, tal qual Chapeuzinho Vermelho sendo conduzida (e induzida) pelo lobo mau.

Portanto, tratemo-las com deferência, não só no dia internacional da mulher, mas nos trezentos e sessenta e quatro dias, seis horas e cinquenta segundos seguintes, sem esmorecer, porém. Como dizia o camarada Che: “Hay que endurecer sin perder la ternura jamás”. Quando a sua mulher lhe chamar para lavar os pratos, grite bem abusado para que seus amigos e a vizinhança saibam quem é que fala mais alto na sua casa:

– Já vou, meu bem!



quarta-feira, 9 de março de 2011

Luís Pimentel - Duas histórias de carnaval

1.
Foi num Carnaval que passou

O folião chegou no bar Bip-Bip, em Copacabana, e puxou uma cadeira. Arrasado, depois de “três dias de folia e brincadeira” e de se esbaldar no desfile do rancho Flor do Sereno, despejou os cotovelos sobre a mesa e grunhiu:
 – Uma cerveja, estupidamente gelada.
Alfredo, dono do estabelecimento, conhecido e aplaudido pelo mau humor, grunhiu mais alto:
– Só tem quente.
– Serve – gemeu o folião, caindo imediatamente num pranto de derrubar encostas. Tão sincero que até o Alfredo se comoveu:
– Que foi, querido?
Acarinhado, o sujeito abriu o verbo:
– Você sabe o que é ter um amor, meu senhor, ter loucura por uma mulher, e depois encontrar esse amor, meu senhor, nos braços de um motorista de ônibus?
Corno em fim de festa é comum, mas plagiando Lupicínio Rodrigues, não é a toda hora que se encontra.
Alfredo tentou ajudar:
– Qual é a linha?
– Nenhuma. Piranha da pior espécie.
– Estou falando do Ricardão. Qual é a linha que ele pilota?
– 571, Glória-Leblon, via Jóquei.
O comerciante enxugou uma lágrima discreta:
– É duro mesmo. Sei o que você está passando.
Começando a se acostumar com o chifre, o amigo recente se animou:
– Você também já levou bola nas costas?
E o Alfredo, olhar distante, pôs mais uma dose de maldade no alfinete de pontinha fina:
– Só levei bola nas costas nos meus tempos de médio-volante do Bangu. Agora, se pelo menos a vadia tivesse escolhido um motorista do 572, que é via Copacabana...


2.
Paixão na avenida

Saio do Sambódromo na madrugada de terça-feira, depois de ver o desfile da última escola de samba da segunda, e me dirijo à estação do Metrô na Praça Onze. Na fila dos bilhetes, o folião me aborda, lata de cerveja na mão e cigarrinho apagado no canto da boca:
– Tu conheces a Doralice?
– Só a do samba: “Doralice, eu bem que te disse, que amar é tolice, é bobagem, é ilusão”.
– Falo sério, meu chapa. Doralice parece mulata do Lan, tu manja? Sorriso lindo, todos os dentes na boca, peitinhos de amora, coxas de italiana, balaio grande...
Estava musicalmente inspirado, atropelei novamente:
“Mexia um balaio grande, muito mais macio que o boto cor-de-rosa do Custeau”.
– E como é que tu sabes?
– Isso é de outro samba. Fala mais de Doralice.
– Conheci domingo, no desfile da Mangueira.
– Como diria o grande Wilson das Neves, “ô, sorte!”.
– E perdi ontem, no embalo da Mocidade.
Adoro essas histórias, desde menino. Vivia pedindo para minha mãe recontar o drama de um corno amigo, que se ajoelhou diante da infiel, aos prantos: “Volta, amor. E traz quem tu quiser contigo”. Quis saber como é que foi:
– Como ganhei ou como perdi?
– As duas. O importante é competir.
O folião não regateou:
– Ganhei de um sambista desatento, que marcou bobeira. E perdi para uma loura de cinema, que encostou no meu patrimônio, como quem não quer nada, e prometeu vaga de rainha de bateria pro ano que vem.
– E Doralice?
– Foi. A essa altura, já deve estar ensaiando com a louraça.