Uma excelente entrevista do jornalista e escritor alagoano Audálio Dantas ao programa Iluminuras, da TV Justiça, no dia 17 de janeiro de 2014.
quinta-feira, 30 de janeiro de 2014
Cineas Santos - Previsões provisórias de um falastrão
Desde muito pequeno, sofro de uma
enfermidade bastante grave: incontinência verbal. Falo muito além do necessário
e, como qualquer falastrão, acabo dizendo bobagens. Acidentalmente, digo coisas
que deveriam ser levadas a sério, mas quem daria crédito a um boquirroto? Um exemplo: há uns 30 anos, numa aula de
redação, conversávamos sobre a má distribuição da renda no Brasil. Lá pelas
tantas, afirmei: as elites brasileiras (a expressão estava na ordem do dia) têm
sido bastante competentes na defesa dos seus interesses. Desde a época das
capitanias hereditárias, governam o país como se estivéssemos na Idade Média. Aos
bem-nascidos, tudo; aos outros, as sobras gerais. A despeito disso, também
cometem erros graves. No meu entender, estão subestimando o poder dos meios de
comunicação de massa, notadamente o rádio e a TV. (à época, não existiam as
redes sociais). Em curto espaço de tempo, os desvalidos não se contentarão com
as migalhas atiradas da mesa da casa grande. Se essa gente se insurgir contra a
“ordem estabelecida”, as coisas poderão complicar-se. A insurgência, por uma
série de razões, começará no Rio de Janeiro. Por oportuno, uma observação: um
ex-aluno, que assistira àquela aula, publicou o que estou afirmando no jornal Diário do Povo.
Pouco tempo depois, li uma entrevista
com o sociólogo Marcos Alvito, autor de “As cores do Acari”, na qual ele
afirmava que os filhos dos favelados, ao contrário dos pais, já não se contentam
com o rádio, a televisão, a geladeiras e outras pequenas “conquistas”. Querem
mais, muito mais.
Infelizmente, os dois estávamos
certos. A moçada da periferia resolveu demonstrar que os Titãs tinham razão: “A
gente não quer só comida/a gente quer comida/diversão e arte”. De repente, como
uma torrente incontrolável, resolveu ocupar todos os espaços: praias, ruas, praças
e, agora, “o espaço seguro” dos shoppings.
Com a utilização das redes sociais, mobilizam-se e derrubam a última muralha a
separar os bem-nascidos da ralé. Os
“rolezinhos” estão tirando o sono de muita gente: comerciantes, industriais,
governantes. A classe média está em polvorosa. Quando questionada, a molecada recorre
à Constituição que garante a todos o direito de ir e vir. Não há como impedi-la
de circular livremente sem o uso da força.
Não quero bancar o profeta do
apocalipse, mas podem apostar que este ano o bicho vai pegar: a combinação copa
do mundo + eleições é nitroglicerina pura, como afirmava aquele ministro que (como
direi?) papava a colega de ministério. Não fosse ano de eleição, a polícia
desceria o porrete sem pena nem dó. Mas, à cata de votos, que candidato vai querer
assumir o papel de truculento? Por falta de coisa melhor, deixo aqui a sugestão
para o título de um documentário: a hora
e a vez dos que nunca tiveram voz nem vez. Quem sobreviver, verá.
domingo, 26 de janeiro de 2014
2 As Lendas de Aruanda - Teogonia e as religiões tradicionais aficanas
AS
RELIGIÕES TRADICIONAIS AFRICANAS
Em
tempos longínquos, quando o homem engatinhava e vivia em harmonia com a
Natureza por não existir diferenças notáveis, nem estresse, nem vírus ou
doenças como as existentes hoje, os seres espirituais habitantes da Terra,
encarnados ou não, adquiriram os segredos estruturais dos elementos da Natureza
e, através da encarnação, alcançaram percepção e sensibilidade astrais que as
conduziriam de volta às suas origens no plano astral superior.
Seres
espirituais de outros sistemas planetários mais evoluídos vieram até a Terra e
se encarregaram de transmitir suas experiências aos seres menos evoluídos e ensinar
tudo sobre a divindade suprema, os seres espirituais, o espaço cósmico, a
criação e as leis que regiam a evolução do Universo. A esse conhecimento foi
chamado de Aumbandhã, que no passar do tempo se tornou um mantra na iniciação
hindu.
Aumbandhã
é uma palavra sânscrita, formada pelo prefixo Aum, de alta significação
espiritual, sagrada, a sonorização da Trindade Universal, Espírito, Energia e
Matéria, e pelo sufixo Bandhã, cujo significado místico é a força emanada do
Criador sobre as criaturas para o despertar cósmico. Assim, a síntese lexical de
modo simplificado, Aumbandhã que dizer o finito do infinito, o limite do ilimitado,
ou simplesmente o humano no divino.
O
planeta Terra ganhou fama esotérica e seres vindos de outras regiões siderais,
doentes da alma e do espírito, procuravam a cura nos aprendizes dos tubaguaçus
(grandes condutores da raça), porém nem todos os aprendizes conseguiram
absorver os ensinamentos do dom da cura e acabaram se contaminando com a doença
que deviam curar. Esses aprendizes contaminados transmitiram seus males às gerações
futuras e suas sequelas perduram até os dias de hoje. São as doenças primitivas
as responsáveis por todas as doenças do mundo, conhecidas ou não, e atendem
pelo exótico nome de “Os Sete Pecados Capitais” e o considerado o maior mal de
todos os males: o Egoísmo.
RELIGIÃO
TRADICIONAL AFRICANA
Para
se compreender a religiosidade africana, primeiro precisamos voltar os olhos
para a África através de sua dimensão continental e não apenas vê-la
erroneamente como um país. Quando falamos de outros povos, simplesmente
tratamos pelo seu gentílico, confinados nas fronteiras físicas que delimitam
seus países. Assim, dizemos, os “portugueses”, os “espanhóis”, os “franceses”,
os “norte-americanos”, mas nunca dizemos “os sul-africanos”, “os congoleses”, “os
angolanos”, mas apenas colocamos todos na vala comum do gentílico continental,
tratando os africanos como uma nação única e igual.
As
religiões tradicionais africanas, também chamadas de “religiões indígenas
africanas”, aquelas que ainda não se deixaram contaminar pelo islamismo, judaísmo,
catolicismo, e outros “ismos”, são religiões definidas, em sua maioria, por
linhagens étnicas e tribais e engloba uma grande variedade de crenças e mitos,
se distinguindo em dois aspectos fundamentais: o visível e o invisível. A
matéria e o espírito. Estima-se que cerca de cem milhões de africanos praticam
a religião tradicional e mesmo aquelas que se tornaram sincréticas com outras
religiões ainda mantém alguns ritos da religião africana.
Apesar
da amplidão continental e dessa multiplicidade religiosa, há vários pontos em
comum na religiosidade tribal que envolve ensinamentos, práticas e rituais em
busca da compreensão do divino. Reconhecem um Deus Supremo, criador do Universo,
e chamam-no de Olodumaré (Senhor Supremo) e Olorum (Senhor do Céu), seus nomes
mais conhecidos. Olodumaré vive em outra dimensão paralela à nossa, conhecida como
Òrun, o Céu dos cristãos.
Segundo
a religião tradicional africana, foi Olodumaré quem criou o Universo e tudo que
nele está. Explica a lenda teogônica que Olodumaré aproveitou as forças
sobrenaturais encontradas em Òrun para criar os orixás, cuja principal missão seria
a de auxiliá-lo na criação e ordenação do novo mundo material que ele iria
criar. Os orixás, depois, associaram-se às forças da natureza e dos seus
elementos e só por elas podem se manifestar.
No
princípio original existiam dois mundos: Òrun, onde habitavam os orixás, e o Aiyê,
onde só existia água. Um dia Olodumaré resolveu criar um espaço para a
humanidade que ele criaria. Incumbiu Orixanilá, nome mais sagrado de Oxalá, o
primeiro orixá criado por ele, de pôr a termo a sua vontade. Entregou-lhe uma
cabaça contendo terra escura, galinha de cinco dedos, uma pomba e um camaleão.
A terra deveria ser lançada sobre as águas, a galinha espalharia a terra, a
pomba voaria e criaria o ar e o camaleão retornaria por terra para colocar
Olodumaré a par da tarefa atribuída a Orixanilá.
E
partiu Orixanilá em direção de Aiyê para dar cabo de sua incumbência, levando
seu cajado, o opaxorô, e a cabaça da Criação. Era costume em Òrun se fazer sacrifícios à divindade Bará, mas
Orixanilá era muito orgulhoso e se recusou a fazer tal oferenda. Então Bará,
ressentido, fez o primogênito de Olodumaré sentir muita sede no caminho de
Aiyê. Sem alternativa, Orixanilá pegou seu cajado e furou o tronco de uma
palmeira e dele escorreu um delicioso vinho de palma. Orixanilá encheu a cara e
dormiu o sono dos orixás.
Olodumaré
enviou o irmão caçula dos orixás, Oduduá, para saber o que havia acontecido com
Orixanilá. Ao retornar com a cabaça da criação, Oduduá pediu ao pai que o
deixasse cumprir aquela tarefa de suma importância. E assim, enquanto Orixanilá
dormia, Oduduá criava o mundo e as coisas vivas, exceto o homem. Mostrando-se
arrependido ao acordar e ver o mundo criado pelo seu irmão caçula, Olodumaré
resolveu dar uma nova tarefa de extrema importância a Orixanilá: a criação do
homem que habitaria Aiyê.
Então
Oxalá moldou vários bonecos de argila e água e Olodumaré soprou nas suas narinas
fazendo surgir a vida humana na face da Terra.
domingo, 19 de janeiro de 2014
Domingo de Futebol
Eu
não matei Joana d’Arc. Nem poderia. Na hora do óbito eu estava no Estádio Rei Pelé
vendo o Esquadrão de Aço levar uma lapada de um time de várzea. Não direi o
placar que é muito vergonhoso, mas a surra foi merecida.
Teria
matado Joana d’Arc se ela já não tivesse morrido depois do jogo. A vingança é um
prato que se come frio. Gelado. Congelado. A minha sorte foi ter ido de carona
e ainda ter ganhado o ingresso, cortesia da Pitú, via Categoria, o dono de bar
mais simpático de Maceió. Se assim não fosse, teria morrido de raiva. Morte
matada. O culpado: Esporte Clube Bahia.
Joana
d’Arc morreu sem que se saiba sua causa mortis. A polícia descartou homicídio,
apesar das sete facadas e dois tiros no peito. É bem provável que ela tentou o
suicídio, disse o delegado.
Na
entrada do estádio encontrei um amigo coronel da PM e entramos conversando.
Além de não ser revistado, o soldado ainda bateu continência para mim. E me
permitiram ver o jogo no meio da torcida do CSA, único lugar que fazia sombra.
Meu telefone não parava de tocar e eu sem poder atender. É que o display do
aparelho é um escudo do Bahia. Se tiro do bolso, ia fazer companhia a Joana d’Arc.
Certa
vez uma moça muito linda me perguntou:
-
Você sabe de que morreu Ana Neri, Tom?
-
E Ana Neri não é a patrona das enfermeiras?
-
É.
-
E tu não é enfermeira?
-
Sou.
-
E não sabe e pergunta logo a um ignorante que não sabe nem pra que serve a água
oxigenada?
-
É que você sabe de um bocado de coisas.
Dizem
que a curiosidade matou o burro. Fui pesquisar. Vasculhei a internet, subi dez
mil escadas de bibliotecas, varei noites vadias debruçado em enciclopédias e
não consegui saber de nada. Como não podia deixar sem resposta uma moça linda
que me achava inteligente, liguei para ela:
-
Olha, você não vai acreditar, mas Ana Neri morreu de morte natural.
-
Tem certeza?
-
Absoluta. Morrer é coisa natural. Viver eternamente é que é coisa do outro
mundo.
-
Puxa. Bem que eu sabia que você não ia me deixar sem resposta. Você é tão inteligente,
sabe de tanta coisa...
Sou
não, baby. Se fosse, não teria deixado o meu sossego duma tarde de domingo para
ir ver o meu time levar uma surra de um time peladeiro.
E
foi como dizia o meu pai depois que eu levava uma surra da minha mãe:
1 AS LENDAS DE ARUANDA - O INÍCIO DE TUDO
O
INÍCIO DE TUDO
“Nem o Não-Ser existia então. Nem o Ser.
Não existia espaço, nem o firmamento além dele.
Quem se movia então? E onde? Sob a guarda de quem?
Seria a água insondavelmente profunda?
Não existia a morte. Nem a não-morte.
Não havia nenhum sinal separando a noite e o dia.
Só o Uno respirava sua própria força,
Sem que houvesse Sopro.
Fora disso, nada havia.
Nada, nada.
No começo as trevas estavam escondidas pelas trevas,
Este universo era somente onda indistinta...”
(A
Origem Rigveda – 1º milênio a/C - Índia)
No
início era o Verbo. O Verbo e todo o Universo que ocupava um espaço do tamanho
da cabeça de um alfinete. E Deus olhou ao redor e só viu o vazio soberano e o
maciço da escuridão. Não havia o abaixo nem o acima. Nem o lado esquerdo, nem o
lado direito. Era a desolação em sua total plenitude. O Princípio Original, sem
começo, meio e fim. Não existia o Tempo. Não havia ontem nem amanhã. Passado,
presente e futuro eram um só tempo. E Deus se sentiu o mais solitário dos
imortais. A solidão era a solidez do vazio. A luz não existia porque não
existia o amanhecer e a insônia era eterna. Então Deus, consciente da sua
imensurável força e do seu poder infinito, disse: “Faça-se o Tempo!” e o
estopim do Universo foi aceso, irradiando uma colossal energia, criando as
galáxias, os astros e as estrelas, vagando em harmonia etérea em volta de sua
magnífica solitude, moldando um espelho da Sua paranormalidade existencial,
refletindo a grandeza diáfana de Sua Consciência Cósmica. O Tempo passou a existir e todas as coisas
criadas por Ele se tornaram evanescentes sob o seu domínio, tendo início, meio
e fim, sendo que esta seria uma Lei Universal, plena e irrevogável. Somente o
Tempo seria infinito e Ele, o criador do Universo, era o próprio Tempo,
transcendente no tempo e espaço, imutável e eterno, senhor absoluto sobre todas
as coisas.
Deus nasceu no exato instante em que o
homem passou a andar sobre duas pernas, tomou consciência de sua existência na
Terra e viu o Sol surgir no horizonte para afugentar as trevas. Compreendeu,
com indubitável clareza, o poder supremo da luz sobre a escuridão.
Deus tomou forma incognoscível e
metafísica quando o homem olhou para o céu tentando interpretar o arcano do
Universo e admirou o resplendor de milhões de estrelas cintilantes e cometas
errantes bailando no vasto infinito. Então ele sentiu que não estava sozinho e
que uma força invisível e superior ordenava e harmonizava as galáxias em torno
de um eixo transcendente.
Finalmente, o homem orou a Deus quando
veio a noite e ele acreditou no sobrenatural, sentiu medo da sombra projetada
pelo clarão da lua, temeu os raios e as tempestades e carregou a morte em seus
braços, o que seria a irrefutável prova da sua fragilidade material.
Instintivamente recuou apavorado e clamou por um deus onipresente, onisciente e
desmaterializado, que se tornasse dono do seu corpo e de sua mente e se fizesse
à sua imagem e semelhança.
A partir daquele instante estava
criada a religião. A Natureza e o Cosmo manifestaram-se como realidades
sagradas (hierofanias) e o homem então, desde esse momento primitivo, em
qualquer parte da Terra, usando os mais diversos nomes, imagens e crenças,
procura, na religião em si, a verdadeira face de Deus, por acreditar piamente ser
esta a resposta para a sua própria eternidade.
Podemos definir a religião, hoje, como
um canal metafísico para se atingir o Sagrado e a Realidade, não importando
qual caminho devamos seguir, pois o Sagrado é a espiritualidade que reina
dentro de cada um de nós e a Realidade manifesta-se no grito assustado da
criança em contato com a água batismal, na queima de incenso e nas oferendas à
imagem do Buda nos mosteiros monásticos, na leitura do Torá nas sinagogas, no
peregrinar em penitência à cidade de Meca e no jogo de búzios e passes
espirituais nos terreiros. Cada povo com sua deidade, cada deidade com sua
religião, cada religião com o seu deus e os homens, tomados pela vaidade de
serem Sua imagem e semelhança, desdenham do livre arbítrio e digladiam em nome
do mesmo deus, que, onipresente, a tudo assiste entristecido com a soberbia
intolerante de Sua criação.
N.A.
- Etimologicamente ainda é indefinida a origem da palavra “religião”, havendo
várias propostas históricas, sendo que a primeira definição ocorreu na obra de
Cícero, “De natura deorum”, (45 a.C.) e a última por Macróbio, no século V, d.C.
segunda-feira, 13 de janeiro de 2014
Nem todo fim é the end
– Não há nada mais a
se dizer, a não ser adeus! Aqui nossos caminhos se separam e, para a nossa
felicidade, é bom que não voltem a se cruzar.
Assim sentenciou
Carmesita, sem emoção nem compaixão. Inflexível e seca, sem chances para
recursos ou apelação. Impessoal, como se
falasse ao vento.
Não era um rompimento
qualquer, de paixões platônicas ou amores transitórios. Havia uma história, com
início, meio e, agora, o fim. O desenredo de um relacionamento apaixonado, vibrante,
cujo “adeus” nunca fora cogitado. Mas nada dura para sempre, nem mesmo os
amores eternos.
– Eterna é a areia
porque não padece de sentimentos – falou um amigo quando ele desafogava o peito
numa mesa de bar – As mulheres são assim mesmo: imprevisíveis. Hoje nos amam
como se fôssemos o único; amanhã nos desprezam na mesma intensidade, sem rancores
nem pudores. Isso quando não depenam nossa conta bancária. Ah! As mulheres...
– São umas vacas, sem
sentimentos! Fingem-se boazinhas até nos envolver até o pescoço nas teias
sinistras da paixão e depois vão embora como se nada tivesse acontecido. Vacas!
– Garçom, mais uma
rodada de cachaça! Meu amigo aqui precisa afogar suas mágoas num copo de
aguardente. Vou de carona, solidário. Aproveita e traz duas lingüiças fritas.
– Foram três anos
juntos. Falávamos por telepatia, de tão envolvido que estávamos. Ela dizia me
amar para sempre, que nem a morte nos separaria, pois morreria também caso eu
fosse primeiro pra terra dos pés juntos. Prometia ressuscitar Shakespeare numa
tragédia tupiniquim.
– De certa forma ela
cumpriu a promessa...
– Como assim?
– “Há mais mistérios
entre as mulheres do que sonha a nossa vã filosofia”.
– Nada. As vagabundas
são previsíveis. Eu é que não soube ler nas entrelinhas do nosso dia a dia.
Deixei me enrolar na conversa mole, carinha de santa, jeitinho de anjo e eis o
resultado: estou aos frangalhos por dentro, à beira de um colapso emocional. Como
dissolver essa sensação de perda moral e espiritual? Como encarar a cama sem o
ronco daquela ingrata?
– Dê tempo ao tempo.
Lembra-se daquele presidente que corria com a camisa escrita “O Tempo é o
Senhor da Razão”? Então, tudo se ajeita
com o passar do tempo, menos a morte, claro. Por falar nisso, nada de fazer
besteira, viu? Nenhuma mulher vale a vida de um homem.
– Me lembrei de
Serafim. Coitado de Serafim! A esta altura até seus ossos já serviram de
banquete aos vermes.
– “In
pulverem reverteria”.
– Como?
– “Ao pó voltarás”. Latim.
Está escrito na entrada do cemitério da minha cidade. E é o que resta de
Serafim: pó. Não pensei que ele fosse tão fraco de espírito. Bastou a mulher
ameaçar se separar, pra meter um tiro na cabeça, como se isso resolvesse alguma
coisa. Queria o quê? Só vivia na esbórnia, passeando com as vagabundas pra cima
e pra baixo enquanto a mulher ralava o dia todo. Mais dia, menos dia, ela iria
ficar sabendo da sua vida de putanheiro.
– E ainda deixou duas
vagabundas grávidas pra dividir a herança.
– Acho que essa parte
chocou mais a viúva do que o suicídio em si.
– Os suicidas vão pro
Céu?
– Como é que vou
saber? Nunca me suicidei. Mas aposto que a mulher do Serafim reza todo dia pra
ele não ir. Ela quer que ele fique vagando por aí, vendo-a dar o troco, saindo
com um e com outro todos os dias. Era tão recatada e virtuosa e agora liberou
geral. Como diz o provérbio francês: “A quelque chose malheur est bon”.
– Traduza.
– “A desgraça serve
para alguma coisa”. É o nosso “há males que vêm pra bem”.
– Ou: “morre o cavalo
a bem do urubu”. Garçom, outra rodada! Vamos deixar os mortos de lado que
continuamos vivos. Quero dizer: você. Eu ainda estou na dúvida, posto que a
chama que mantinha acesa a minha vontade de viver se apagou quando a ingrata me
disse adeus.
– Para com isso,
cara! Mulher é como ônibus: você perde um, logo vem outro.
– Ou como alça de
caixão: um larga e outro põe a mão. Por falar em caixão: quanto custa o enterro
de um indigente?
– Temos que perguntar
ao prefeito... Mas por que você quer saber?
– Por nada. Só
curiosidade. Os ricos gastam tanto em enterros pomposos e no fim, ricos e
pobres, se encontram no mesmo buraco. Está com dinheiro aí pra pagar a conta?
Estou a zero.
– Fique frio. Vamos
pro puteiro? As putas amam melhor quando pegam um cara mal resolvido
sentimentalmente. Nesse amar transitório, elas querem garantia de estabilidade.
Ou seja: se aproveitam das nossas carências afetivas pra nos engabelar
emocionalmente. Assim nos enredam e acabamos nos casando por puro arranjo
sentimental. Mas há uma grande vantagem nesse tipo de casamento: elas podem não
nos amar, mas são fiéis para sempre.
– Se eu fosse corno
ia pra um pagode. Mas acho que não é o meu caso. Tenho um tio, bem situado na
vida, que se casou sete vezes. Sete. Das sete mulheres, seis eram da vida,
putonas mesmo. O mais incrível é que a única que botou chifre nele foi
justamente a que não era puta e se passava por santa, comendo hóstia toda
semana.
– Isso é comum. Desses
meus trinta anos, quinze vivi perdido nos bregas da vida. E a única doença
venérea que peguei foi da namorada, uma mocinha de família quase perfeita.
Garçom, mais duas doses de aguardente! E
a conta!
– Vou tirar a água do
joelho.
Levantou-se
cambaleante. O álcool subiu à cabeça, mas não com intensidade suficiente para
ofuscar seu sentimento de perda, sua sensação de abandono. Carmesita foi tudo
na sua vida e, sem ela, não sabia como recomeçar. Pensou em seu amigo Serafim e
então compreendeu suas razões em pôr a termo a própria vida. Seria ele também
um suicida em potencial? Olhou para o prédio em frente e imaginou se atirando do
último andar. A cena seguinte: o corpo estendido no chão, um monte de curiosos
atrapalhando a polícia técnica e o trânsito congestionado. As manchetes sensacionalistas
no outro dia: “Bêbado pensou que podia voar”. Ao lado da notícia, a foto do
morto com um jornal cobrindo seu rosto. Ao fundo, um vendedor de churrasquinho
de gato cantando João Bosco: “Tá lá um corpo estendido no chão...”.
Carmesita não saberia
que o morto era ele. Não pela foto dos jornais. Mesmo assim exclamaria
indignada: “O miserável ainda teve a petulância de atrapalhar o trânsito! Esses
suicidas deviam ser presos e enforcados! Morte aos suicidas!”
Saiu do banheiro e
tornou a olhar o prédio em
frente. Contou os andares: dez. Quanto tempo levaria em queda
livre até chegar ao solo? Seria o suficiente para sentir o gosto de voar? Descoberta
inútil essa: não teria o prazer de contar a mais ninguém.
Dirigiu-se à porta de
saída do bar e parou na calçada, vacilante. O sol estava a pino, próprio pra se
cometer suicídio. Teria coragem? Acenou para o amigo, antes de atravessar a rua.
– Vamos, porra! As
putas não podem esperar!
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