terça-feira, 8 de março de 2016

Suíça connection - Sergio Augusto

Operação Paulo Francis levou 17 anos para se concretizar. Lava Jato é só seu nome fantasia

No dia 14 dei uma de Stanislaw Ponte Preta e gozei, no Twitter, o nome dado à Operação Lava Jato, que alguns ainda grafam com hífen. Se não havia na história um avião a jato, nem sequer um prosaico ultraleve a ser lavado, a expressão era descabida. Dada sua clara intenção de conotar uma faxina em regra, como a executada nos carros em postos de gasolina, o nome correto seria “lava a jato”. 

Minha picuinha onomástica, de imediato turbinada pelo Facebook, cumpriu apenas uma parte do seu objetivo: divertir os internautas com mais essa prova de que o Febeapá (Festival de Besteiras que Assola o País), inventado há cinco décadas por Stanislaw, ainda não encerrou suas atividades. 

Indiferente ao flagra vernacular e às gozações nas mídias sociais, a Polícia Federal manteve o nome (e até o hífen) de sua operação, concentrando-se nos afazeres que lhe competem, a fim de evitar bobeadas mais sérias, como os erros processuais que inviabilizaram as operações Castelo de Areia e Satiagraha, e a indevida inclusão de José Carlos Cosenza na petrorroubalheira, que por um triz não comprometeu a limpeza em andamento, àquela altura já com uma extensão: Juízo Final, nome mais que apropriado se as investigações estiverem de fato em seus versículos derradeiros e os condenados, prestes a serem punidos.

Agindo com impressionante competência e rapidez na perseguição aos saqueadores da maior empresa pública do País, a PF tem saldo credor para cometer impunemente mais umas duas ou três mancadas ortográficas. 

Aliás, não me lembro de outra nas mais de 2 mil operações por ela executadas neste século, ora batizadas com nomes de bichos, ora com títulos de filmes, na maioria das vezes com personagens e episódios históricos e mitológicos. Por mais que tentem esconder quem os sugere (o segredo também é a alma do marketing), sabe-se que até 2007 quem com mais frequência o fazia era o delegado Zulmar Pimentel, diretor executivo da PF, afastado do cargo e desterrado para Manaus com a fama de boquirroto. 

Ignora-se quem associou a caça aos envolvidos no escândalo da Petrobras à lavagem de carros. Seja lá quem for, seu maior erro não foi omitir uma preposição e acrescentar um hífen, mas desperdiçar a oportunidade de homenagear quem pela primeira vez alertou publicamente para a rapinagem na Petrobras.

Há quase 20 anos, o jornalista Paulo Francis denunciou, no programa Manhattan Connection, que “todos os diretores da Petrobras” punham dinheiro na Suíça. Apesar do alerta em off de Lucas Mendes (“olha, que dá processo”), Francis não tirou o dedo do gatilho. Referiu-se a um amigo, advogado, que num almoço com um banqueiro suíço ouvira deste o seguinte comentário: “Bom mesmo é brasileiro, porque esses bilionários árabes depositam US$ 1 milhão, US$ 2 milhões, mas uma semana depois tiram. Os brasileiros põem US$ 50 milhões, 60 milhões e deixam”. Segundo Francis, toda aquela grana era fruto de roubalheira, de superfaturamento. 

Novo alerta de Lucas, dessa vez gestual (um discreto tapinha no braço direito), novamente ignorado por Francis, que reiterou sua certeza de que a Petrobras fora dominada “pela maior quadrilha” em atividade numa empresa pública brasileira. 

Lucas suspeitou certo: deu galho. Não contra a quadrilha vagamente apontada por Francis (o que só poderia ocorrer se o então presidente da Petrobras, Joel Rennó, tivesse mandado investigar a procedência das acusações e as tivesse comprovado), mas contra o próprio acusador. 

Sem provas concretas para substanciar sua denúncia, Francis acabou processado por Rennó, no foro de Nova York. Um processo impagável de US$ 100 milhões, ao qual o jornalista ainda se referiria em outra edição do Manhattan Connection, quando citou nominalmente o presidente da Petrobras e acusou os diretores da estatal de tentarem intimidá-lo e silenciá-lo. 

Nesse programa, houve um diálogo quase cômico entre Lucas e Francis. Ao ouvir o colega afirmar que, dos “três porquinhos” que dirigiam a Petrobras, conhecia apenas o presidente, “um rapaz gordinho” que comia “nos melhores restaurantes de Nova York”, Lucas quis saber se já haviam comido juntos alguma vez. “Infelizmente, já”, respondeu Francis, simulando um engulho. 

Se Francis errou ao dizer o que disse sem provas materiais, o presidente da Petrobras não podia tê-lo processado nos Estados Unidos por coisas ditas numa televisão brasileira e jamais transmitidas fora do Brasil, embora gravadas num estúdio nova-iorquino. Muito menos envolvendo uma indenização que, hoje sabemos, só os petrogatunos teriam condições de pagar com seu butim, guardado aqui e lá fora. 

Mesmo ciente de que perderia o caso, o presidente da Petrobras esticou o litígio até onde pôde. Queria infernizar o jornalista, e como dispunha de recursos ilimitados para cozinhar o processo, manteve-o em banho-maria, para discreto constrangimento do presidente Fernando Henrique Cardoso, que tampouco se empenhou em esclarecer se as imputações de Francis tinham ou não fundamento.

Rennó afinal venceu a parada. Mas não nos tribunais. 

Estressado e deprimido pela milonga judicial, Francis morreu de um ataque cardíaco, em 4 de fevereiro de 1997. Na Folha de S. Paulo do dia seguinte, Elio Gaspari encerrou seu comentário com esta observação: “Dizer que o processo do doutor Rennó o matou seria uma injustiça piegas, verdadeira estupidez. O que aconteceu foi outra coisa. O doutor Rennó conseguiu tomar uma carona no último capítulo da biografia de Paulo Francis. E, se algum dia Rennó tiver biografia, terá Paulo Francis nela. É difícil que consiga fazer coisa melhor, sobretudo à custa do dinheiro da viúva”.

A Operação Paulo Francis demorou 17 anos para se concretizar. “Lava-Jato” é apenas seu nome fantasia.

domingo, 28 de fevereiro de 2016

Flores Mitológicas

No início do novo milênio achei eu de andar por esses grupos de literatura, que, à época, eram os canais sociais dos pseudo-escritores. Havia muita gente boa, gente mais ou menos, e muitos que se achavam o bam-bam-bam do pedaço, mas com o incrível defeito do "eu só me basto". Foi num desses grupos que Mário Prata escreveu o livro "Os anjos de Badaró". Ou melhor, escreveram para ele.
Um desses "metidos" resolveu atravessar o meu caminho, numa "metidez" sem limites, então lhe respondi em forma de poesia:




FLORES MITOLÓGICAS

Para os caçadores de métrica e bajuladores de riqueza vocabular
Em detrimento da dialética platônica e da singeleza melódica da poesia.
.

Que queres tu, ególatra e mitológica criatura,
Que por mim indagas sem o querer saber?
Refutas servil antes da pergunta acontecer
Avocando o inepto direito da brilhantura.

Como os hematófagos habitantes das cavernas
Tramando o golpe às suas vítimas inocentes,
No anonimato da noite limam os seus dentes
Em generosos pescoços e suas veias externas.

Assim é teu proceder na traição aos teus pares
Na arrogância nefasta aos morcegos outorgada
Anomalia soturna na cintilante noite aviltada,
Por salivas e presas de palavreados vulgares.

Ó, Narciso, ao teu umbigo não ousas olhar!
O espelho é a tua fascinação mais íntima;
Aos amigos, a mudez das palavras ínfimas
E o lúgubre refrão “só vivo para me amar”.

De Baudelaire, envio-te as flores do mal,
De Ginsberg, presenteio-te um sonoro uivo.
Tu, que recusas olhar para o próprio umbigo,
Deixo-te Dante com sua viagem infernal.

Oferto-te um buquê de rosas rubras dialéticas
Cingidas em chumbo das balas dos canhoneiros
No último combate dos corsários aventureiros,
Dissimulados no silêncio da amplidão internética.

Dou-te o cravo vermelho usado na lapela
Do teu fétido e infecto paletó mortal,
Compondo as flores do teu vil funeral
De carpideiras mordazes de tez amarela.

Ofertarei uma moeda de bronze por esmola
Quando o esquife em cortejo por mim passar
Assim poderás ao barqueiro do Hades pagar
A lúgubre travessia levando-te, de vez, embora.

As veredas que deixaste não importam mais,
Nem as flores dos Guimarães por ora maltratadas,
Rosas silvestres, melancolicamente despetaladas,
Orquidácias negras remanescentes das Gerais.

Este é o meu réquiem embalando tua catatonia,
Confortando tua negra alma no barco de Caronte
Antes do encontro final com diabos monocerontes
A quem prestarás contas das arrogantes vilanias.




quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Professora

Uma professora confessou-se indignada por causa dos dicionaristas tecerem loas ao professor (o homem) e não dar o mesmo tratamento honroso à professora (a mulher). Indignação justa, por sinal, pois, enquanto dão muito destaque ao masculino, a coitada da professorinha é tratada no cacete lexical. O Aurélio e o Houaiss afirmam com todos os efes e erres que o verbete "professora" é "prostituta com quem adolescentes se iniciam na vida sexual". Isso no Nordeste, destacam. O Caldas Aulete dá um refresco na pauleira: "A que ensina instrução primária e as prendas próprias do seu sexo: Professora de corte, de costura."

A gente nunca presta atenção em certos detalhes nos dicionários, pois só recorremos a eles no masculino. E nos damos por satisfeito. É o caso dessa palavra tão erroneamente execrada pelos coxinhas: "Presidenta". Aí misturam com "estudanta" e outros termos que esqueço no momento. Só porque vamos aos dicionários e procuramos no masculino. Se nos dermos ao trabalho de procurar no feminino, veremos que elefante não é dono de circo. E que a anta não é a presidenta.

Voltando ao começo da história, pesquisei em mil puteiros virtuais de onde se originou essa acepção pejorativa para as coitadas das professoras, e não soube de notícia de nada. É como a desonestidade de Lula: por mais que o juiz Moro procure, não encontra nada.

Confesso a vocês que a minha iniciação sexual se deu com uma professora. Uma estagiária, a bem dizer. Ela era tão provocante que tive que antecipar o meu aprendizado sobre masturbação. Mas tenho a mais absoluta certeza de que não foi isso que ocasionou a conotação depreciativa pelos dicionaristas. Mesmo porque sempre trouxe esse segredo guardado a sete chaves, nem mesmo ao padre confessor da minha primeira comunhão eu ousei contar tão íntimo segredo.

Pesquisando por aí, encontrei que na Grécia antiga a iniciação sexual dos meninos era feita por um homem mais velho, chamado pedagogo. Ele ensinava as manhas do sexo aos adolescentes para não fazerem vergonha na noite de núpcias, tal qual ensinou o meu avô a um seu irmão, apesar de nunca ter ouvido falar dos costumes dessa tal Grécia antiga:

- Não tem como errar. É um lugar cabeludo. Pode ir que é tiro e queda.

O meu tio-avô não contou conversa na hora do ora-veja. Apagou o candeeiro e caiu em cima da minha tia-avó, que aguardava ansiosa no colchão de capim seco. Depois de coberta pelo macho, ela chiou meio decepcionada:

- Aiiiii!... Aí é o meu sovaco!

(Não, não! Esse caso não serve para justificar o que fizeram com a “professora”. Mas mata a pau o “professor”.)

Em algumas tribos norte-americanas o rito de iniciação sexual se dá através da penetração anal feita por um tio. Acham que, com o rabo cheio de sêmen, os garotos serão homens férteis. Ainda bem que nasci bem longe dessas tribos, mas conheço gente que adoraria ter nascido lá.

Lá no Junco, berço da humanidade sertaneja, a iniciação se dá pela prática de se encostar a jumenta no barranco e mandar brasa. Vez ou outra o dono da jega dá flagrante e obriga o pai do garoto a pagar um saco de milho. Ou até mais.

Mas há lugares no Nordeste em que o menino só vira homem depois que molha o pavio em uma fêmea. Quando o garoto entra na puberdade, o pai o leva para o puteiro, para aprender o bem-bom da vida. Como se trata de um aprendizado prático, com aula cem por cento presencial, talvez venha daí a alcunha de “professora” para as mulheres de vida fácil, que de fácil não tem nada. Tal qual a vida das professoras.

Não sei se servirá de consolo à indignação da pessoa em tela, mas no sertão nordestino o jumento também é chamado de professor. Só não sei se é pela imensidão fálica ou pela teimosia quando empaca.

domingo, 21 de fevereiro de 2016

Duas Notas Musicais - Luís Pimentel


A ilusão de que ser homem bastaria

          “Gilberto Gil estava hospedado na casa de Caetano Veloso no Rio de Janeiro, quando, um dia, o anfitrião chegou entusiasmado com Super-Homem (Superman), um filme que acabara de assistir, com Christopher Reeve no papel de herói. Então, Gil “viu o filme” através da narrativa de Caetano e naquela noite não conseguiu dormir. Ficara tão impressionado com a imagem do Super-homem fazendo a terra girar ao contrário em seu movimento de rotação, a fim de voltar a tempo e salvar a mulher, que acabou pulando da cama para compor Super-Homem – a canção em apenas uma hora, o que contraria seu método habitual de trabalho”.
(Relato dos escritores e pesquisadores Jairo Severiano e Zuza Homem de Melo, em A Canção no Tempo, volume 2. Editora 34, 1998)

      Diz a bela canção de Gil:

Um dia vivi a ilusão de que ser homem bastaria
Que o mundo masculino tudo me daria
Do que eu quisesse ter
(...)
Quem sabe o Super-Homem venha nos restituir a glória
Mudando com Deus o rumo da História
Por causa da mulher...

To go back to Bahia, de Caetano a Richão

          Expulso do país, juntamente com o parceiro e amigo Gilberto Gil – acusados de subversão – o cantor e compositor Caetano Veloso desembarcou no Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro no dia 11 de janeiro de 1972, retornando do exílio político na Inglaterra. 

     Pouco depois fez um show histórico no Teatro João Caetano, antes de embarcar para a boa terra. Neste show, revelou para o Brasil inteiro um genial compositor baiano chamado Riachão, interpretando um samba de sua autoria que tinha uns versos assim: “Chô, Chuá, cada macaco no seu galho/Chô, Chuá, eu não me canso de falar/Chô, Chuá, o meu galho é na Bahia/Chô, Chuá, o seu é em outro lugar”.

     Aos 95 anos Riachão (Clementino Rodrigues, 1921) é um compositor moderníssimo. Prova disto é que a moderna Cássia Eller regravou, lindamente, a super-modernosa Vá morar com o diabo, uma canção que diz assim: “Ai, meu Deus, ai, meu Deus, o que é que há?/A nega lá em casa não quer trabalhar/Se a panela ta suja, ela não quer lavar/Quer comer engordurado, não quer trabalhar (...)/Ela quer me ver bem mal/Vá morar com o diabo que é imortal”.


 


segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Utopia

Uma senhora dormiu numa poltrona de um shopping center, alguém viu, fotografou e fez umas montagens ridículas. Depois postou no Facebook. Dezenas de milhares de compartilhamentos. Centenas de comentários jocosos que mais pareciam hienas arreganhando os dentes. No meio de tantos urubus ávidos por carniça, surgiu uma voz dissonante, condenando o que se fazia com a pobre senhora. Foi massacrada, vilipendiada, escorraçada pelos que se achavam no direito de rir da gente humilde, embora ela tivesse um poder de resistência descomunal.

Fiquei animado com a feliz constatação de que o mundo ainda pode ser salvo por gente que em um repente levanta a voz contra as indecências dos presunçosos. Ainda há gente com capacidade de se indignar. Poucas pessoas, mas há. E por isso, uma ode à sua coragem de enfrentamento e recuo estratégico.

Utopia
Para Mariana Escopel, com a devida vênia por não ser mais enfático na sua defesa.

Meus sonhos são ilhas vulcânicas
Soterradas em águas profundas
De mares sujeitos a abalos sísmicos.
Não há correntes marinhas
Transportando garrafas de náufragos
Prenhes de quimeras e utopias
Para além do reino de Poseidon.
Nem golfinhos de Palêmon salvando afogados,
Nem cavalo-marinho da amplidão oceânica
Cavalgando vales e surfando tsunamis
Desfraldando minha bandeira utópica
Soterrada em sete toneladas de magma
Rota e violada em seu afeto moral.

Encantamentos

E a mocinha ribeirinha, lá do Norte, mostra à mãe o que já não pode mais esconder. Inocente, disse displicente:
- Foi o boto, minha mãe!
A mãe engoliu saliva, engasgou um palavrão e sorriu carinhosa para a filha, pois sabe desses encantamentos e feitiços do amor.
Sua filha também era filha do boto.

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

O retratista

Era o único retratista do lugar. Batizado, casamento, amancebamento e discurso político, nada passava em brancas nuvens. Um dia, em visita à capital, comprou a última novidade do mercado: câmara fotográfica com temporizador. Era a única maneira de também sair nas fotos.

Retornando, reuniu a família no topo de um barranco, armou o tripé, ajustou o foco, acionou o temporizador e correu para junto do pessoal. Ao vê-lo correndo, todos correram também, esquecidos da ribanceira a menos de um passo.

No hospital, perguntou ao único que conseguia falar:

- Por que vocês correram?
- Se você, que conhece aquele troço, correu com medo, imagina se a gente ia ficar...

domingo, 26 de julho de 2015

Assim viaja a humanidade

Peguei o coletivo no Farol da Barra e adiante vi a palavra "ônibus" em sentido contrário na sinalização horizontal do asfalto e perguntei ao motorista:
- Você sabe o que é subinô?
- Sei. É o contrário de descenô.

É a velha Bahia, com suas histórias a cada acelerada.

O jogo do bicho e os sonhos

O meu problema é de interpretação e não de crença. Creio em Deus sobre todas as coisas e na Santa Madre Igreja Católica, Apostólica, Romana, mas creio mais nos sonhos, apesar de não dar uma dentro no jogo do bicho. Jogo cobra e dá veado. Sonhei com um gato caindo do muro, joguei gato, fui buscar o prêmio, deu burro. Sonhei com o número onze estampado no muro de uma casa. Seria tiro e queda, não precisava passar pela peneira das interpretações. Onze é onze, e ponto final! Procurei a banca do jogo do bicho e esvaziei os bolsos no 11. Deu 24, veado. O bicheiro me explicou a lógica:

- A gente tem que saber interpretar os sonhos. Nem tudo é como a gente imagina. No primeiro caso, quem sonha com cobra é viado. No segundo, gato que cai do muro é burro. No terceiro, 11, é um atrás do outro, viado.

Tem lógica. Eu nunca havia pensado nisso. Jogar no bicho não é para qualquer um não. Mas agora já sei: se sonhar com um juiz, vou jogar no veado. Todo juiz anda na vara.

Troque o homem mas não troque o nome

Seu nome era Vliado. Uma mistura de iniciais do pai com um não-sei-o-quê da mãe. Precisava dar os créditos num videoclipe e ele implorou:
- Não se esqueça do "lê" antes do "I"! Olhe lá! É "V-L-I-A-D-O" - soletrou.
Como haveria de esquecer nome tão inesquecível? Botei todos os "lês" merecidos. Depois de pronto, DVD entregue, ele me ligou puto da vida, quase em ameaça de morte:
- Que porra foi que você fez com meu nome?
- Eu? Nada. Tenho certeza de que coloquei o "l"!
- Colocou, sim. Mas escreveu "Glay", seu... seu!
- Ora... E Glay não é o mesmo que Vliado?
- (impublicável)

domingo, 28 de junho de 2015

A Missa


Diante das circunstâncias, eu confesso essa minha agonia que, antes de ser dilema, se transformou em paradoxo: o meu irmão Dimas não gostava de missa, de padre ou de qualquer religião. Não era ateu, porém ficava à toa na escolha do ser ou não um cético ou um crente. Antes de se casar, cumpria suas obrigações de católico, apostólico, romano todo santo dia; depois que se casou, sua cara-metade, dizendo-se agnóstica, proibiu a palavra “religião” dentro de seus domínios.

Ao contrário dele, eu vivia na sacristia, ajudando a celebrar missa e a entornar o vinho canônico nos descuidos do padre. Era um temente a Deus e me confessava toda semana para poder ter direito a degustar uma hóstia consagrada inteira e sentir a leveza do corpo diáfano flutuando no espaço, conforme o que se garantia nas aulas de catequese. Toda comunhão, uma decepção. Nunca conseguia sentir essa sensação. Era dominado por um sentimento de culpa e me sentia o mais vil pecador, ignorado ou castigado por Deus na hora de gozar do nirvana cristão. Uma vez criei coragem e confessei ao padre esse meu desapontamento. Ele creditou ao meu confessar sem estar devidamente arrependido. “Arrependei, cretino!”, esbravejou, apontando a minha culpa para uma sacristia cheia de coroinhas e beatas. Em vez de baixar a cabeça sentindo a culpa do pecado pelo não arrependimento, joguei uma praga de urubu no padre e nunca mais ele pôde ouvir confissão de alguém: na semana seguinte fugiu com uma beata que vivia, dia e noite, enchendo o saco de Santo Antônio, pedindo casamento em troca de flores e velas. Ambos foram proibidos de frequentar a sacristia e tiveram que mudar de cidade.

O paradoxo se deve ao fato dos papéis se inverterem trinta anos depois: eu perdi a fé em padre e em missa e o meu irmão Dimas se tornou um carola de carteirinha, daqueles que são convocados para ler as epístolas e está a ponto de virar diácono, com direito a fazer sermão e de ler a Bíblia quando o padre estiver com preguiça de cumprir sua obrigação canônica. Dimas reviu seus conceitos no dia que sua mulher virou discípula do seu melhor amigo, um ateu legítimo, um radical do pancosmismo, materialista convicto, discípulo de Holbach e seguidor do marxismo. Dimas tinha o maior apreço por esse seu amigo e, ao ler o bilhete deixado pela mulher, dizendo que partia com Raimundão Poeta em busca de sua afirmação interior, odiou todas as formas de ateísmo e tomou o fato como um castigo exemplar de Deus por sua pretensa heresia.

 O dilema era que, estando eu em Alagoinhas, cidade no litoral norte da Bahia, às vésperas das festas juninas, Dimas me chamou para ir à missa de Santo Antônio, que é celebrada toda terça-feira, na igreja de São Francisco de Assis, para fazer uma avaliação de sua atuação como pré-diácono.

Desde o dia que um padre se negou a rezar missa de corpo presente no enterro do meu pai, por pura preguiça, passei da indiferença para a rejeição aos padres, mesmo sabendo que algum justo – se é que existe algum – pagaria pelos pecadores. Mas também não podia fazer uma descortesia ao meu irmão. Eu era seu hóspede. Vesti a minha domingueira – apesar de ser uma terça-feira – e o acompanhei até a igreja.   

Entrar no Convento dos Frades, ou Igreja dos Capuchinhos, ou ainda Convento de São Francisco de Assis, foi como caminhar no túnel do tempo em viagem de retorno ao passado. Nada havia mudado na pintura e na decoração interna. A maioria dos fiéis presentes era de amigos ou colegas, ex-militantes do Clube São Domingos Sávio, a escola de coroinhas mantida por Frei Fidélis. A novidade era o meu irmão que nessa época só ia à missa se a mulher lhe desse a devida permissão. Como ela não dava, ele nunca ia e ainda pousava de ateu, esconjurando os padres e seus adeptos.

Os santos, os mesmos, continuavam em seus nichos laterais sob a luz de vela. Velas estas que só são apagadas na Sexta-Feira da Paixão, quando os santos são cobertos por mortalhas roxas. Apesar de ser um convento franciscano, abriga outros santos cristãos: São José, Santo Antônio, Nossa Senhora das Dores e São Domingos Sávio. São Francisco abençoa os seus fiéis na nave-mãe, no altar-mor, onde fica a sua estátua de mais ou menos um metro de altura, com o braço direito estendido em sermão aos pássaros. Acima dele, dois anjos carregam Cristo ressuscitado para o Seu trono, ao lado de Deus, o seu pai.

Atrás do altar existe uma ala em que os outros frades assistem à missa e ficam rezando o terço. É um ambiente sombrio, iluminado apenas por um refletor de um Cristo crucificado em tamanho natural, de um realismo fantástico, incomum, assustador, e Ele parece nos cobrar a culpa pelas chagas no Seu corpo, pelo Seu martírio mortal.

Se não houvesse um hiato de 30 anos e as pessoas ao meu redor não tivessem pintados os cabelos de branco – inclusive eu –, diria que o tempo transcorrido seria apenas de um sermão a outro, ou então que o convento e eu envelhecemos juntos, tricotando nosso cotidiano com a linha invisível do Tempo. 

O envelhecer junto é parar a ação do Tempo sobre o nosso corpo, é banhar-se diariamente na fonte da juventude, à luz de nossa compreensão da decadência corporal. É ficar imune à corrosão ácida da sucessão das eras ante nossos olhos. Por isso que os filhos são vistos como eternas crianças pelos pais, que se assustam quando eles dizem que já são donos do próprio nariz e jogam a realidade tal qual como ela é, sem meneio nem pinceladas floridas de aquarela. Nessa hora, teme-se olhar para o espelho e ver desnudar sua imagem real, descobrindo-se andando de mãos dadas com o implacável Senhor dos Séculos: o Tempo.

Iniciada a missa, todos de pé, o padre (ou frei, como são chamados os capuchinhos) disse o introito “Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo” e, no “amém”, desapareceu atrás do altar. O coral abafou o ruído da queda. Em vez de antífonas, uma súplica desesperada do meu irmão, dublê de diácono: “Há algum médico aqui que possa socorrer o padre?” Não havia. Mas surgiu uma multidão de curiosos querendo sacudir o badalo do padre, que se levantou pálido, zonzo, aéreo. Fora só um desmaio provocado pelo intenso abafamento.

Enquanto se providenciava um substituto para continuar a missa, lembrei-me de uma outra cena, trinta e cinco anos antes. O padre, na hora da consagração do vinho, suspendeu o cálice e falou: “Do mesmo modo, ao fim da ceia, tomou o cálice em suas mãos, abençoou, e deu aos seus discípulo dizendo...” nesse exato instante ele ergueu os olhos para a janela aberta na parede lateral do altar, com vista para o imenso pomar do convento, e viu uns moleques roubando laranjas, as suas laranjas. Não se conteve e emendou a fala de Jesus com a sua indignação: “Ladrões! Canalhas! Moleques sem vergonha!”. A plateia, também chamada de assembléia, tomou um susto. Quando Jesus Cristo dissera isso? Pensou-se que o padre havia enlouquecido. Generalizou-se o tumulto. O padre quis se explicar, mas não deixaram e ele saiu do altar direto para uma casa de repouso.  Depois foi transferido para outra paróquia e dele não se soube mais notícias.

Lembranças indeléveis que teimam em aflorar nostálgicas. Lembrei-me da última missa, trinta anos atrás, e da cara de espanto de Luciene quando lhe comuniquei a minha decisão de ir embora da cidade, partir no primeiro trem no dia seguinte, com destino a Salvador. Ela chorou no meu ombro. Um choro sincero, honesto, inconformado pela perda iminente. Ela sabia que seria uma viagem só de ida, sem retorno, um adeus definitivo, sem a esperança do “até a volta”. Seria inútil qualquer apelo para ficar. A cidade já tinha chegado ao meu limite.

Por onde andará Luciene? São trinta anos sem saber notícias e, pela primeira vez nesse ínterim, pensei em seus olhos azuis marejados e escurecidos pela tristeza. E me dei conta de que nunca me preocupei com o seu destino ou de ao menos saber de seu estado físico-emocional. Ela representava o meu último elo de ligação ao passado e eu queria esquecer completamente e quase teria conseguido se não estivesse ali, no templo das últimas lembranças. Por onde andará Luciene?

O padre foi substituído e a missa reiniciada. O meu irmão leu as epístolas de São Paulo aos Coríntios e ainda teceu outros comentários. Como ele é político, sabe dominar a platéia, envolver o povo. Em outras palavras, sabe enganar a torcida.

Antes do rito da comunhão, o celebrante pediu para que saudássemos uns aos outros em nome de Cristo. Primeiro, saudei os que estavam sentados no mesmo banco que eu; depois parti para os do banco da frente; ato contínuo, me virei para saudar o povo do banco de trás e não consegui abafar um grito de surpresa:

– Luciene!