domingo, 2 de maio de 2010

Quase Candango - Cineas Santos



De Brasília



Em mais de uma oportunidade, afirmei: seu Liberato não tocava viola, não fazia versos, não contava vantagens. Era um sertanejo morigerado, com vocação para pedra. Só grudado ao chão da caatinga, sentia-se em casa. Perfeitamente integrado ao seu habitat, não estendia suas aspirações além dos limites de suas roças. Ao longo da vida, empreendeu apenas três viagens. Em nenhuma delas fez boa colheita. Acontece que, em 1958, as chuvas se negaram a cair no sertão do Caracol. Levas e levas de catingueiros deixavam para trás roças, mulheres e filhos e rumavam para o imenso canteiro de obras no Planalto Central onde um presidente visionário pretendia plantar a capital do País. Magoado com a sovinice dos céus, seu Liberato, aos 55 anos de idade, encarapitado num pau-de-arara, foi tentar a sorte naqueles ermos onde sobrava trabalho e faltavam mulheres.

Dona Purcina, com sua alma cigana, vislumbrou naquele gesto desesperado do marido a possibilidade de levar os filhos para uma terra onde “corria dinheiro e tinha escola”. Para aquela camponesa semi-analfabeta, educar os filhos não era apenas aspiração; era obsessão. Enquanto seu Liberato cavava valas na terra vermelha do cerrado, dona Purcina urdia planos. Pensou tudo: abriria uma pensão familiar para fornecer boia aos candangos, construiria uma casinha para a família, o mais próximo possível de uma escola. O mais viria com o tempo.

O que ela não poderia imaginar é que o velho Liba, embora estivesse fisicamente no Planalto, seu espírito catingueiro jamais se ausentou do Campo Formoso, sua gleba, seu reino, seu mundo. Assim, o exílio doloroso durou pouco mais de oito meses. Ao saber que chovia no Piauí, juntou seus teréns e voltou correndo para o sertão. Por pouco, por muito pouco, dona Purcina não o expulsou de casa. Morria ali o sonho de construir “um futuro melhor” para os filhos. À época, eu não fazia a menor ideia do que fosse morar numa cidade grande. Na verdade, aquela aventura não me tentava. A exemplo do meu pai, eu começava a fincar raízes fundas na terra árida do sertão. Tenho (como meu velho) uma indeclinável vocação para pedra.

Plantada por mãos calejadas e regada com o suor dos candangos, Brasília nasceu acanhada. Mas, com o adubo do dinheiro e o fascínio do poder, cresceu rapidamente. Em pouco tempo, tornou-se uma espécie de Las Vegas do cerrado. Para lá migraram arrivistas, falsários e apostadores de todas as procedências. Gente que só aposta com o dinheiro alheio e nunca perde.

Brasília, “ninho de tédios” e de escândalos, faz 50 anos de existência e tem pouco a comemorar. De minha parte, não me canso de agradecer a seu Liberato por ter voltado para o sertão do Caracol. Como o canto das sereias, o poder vicia, inebria e alucina...



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