Nesta
semana me deliciei lendo a coluna “Fé no que virá”, com texto da professora
Mírian Pereira (leia aqui), em que ela expressa a ideia de que é preciso abolir
preconceitos linguísticos com relação à fala – e tem toda razão.
Ainda que por vias diversas, partilhamos a
mesma opinião. Embora eu defenda a uniformidade na escrita, aprecio muito os
falares regionais como expressão da cultura popular. Isso só nos engrandece e
nos une como nação.
Quem
me conhece sabe que jamais corrijo meu interlocutor. Vou explicar.
Entendo
que seja necessário haver uniformidade na escrita para que o leitor não fique
em dúvida sobre a mensagem, para que a compreenda de forma plena, justamente
porque a escrita não possui a mesma riqueza expressiva da fala, à qual se
acrescentam gestos, expressões faciais, diferentes entonações de voz. A
ausência de pontuação, por exemplo, pode levar a confusões sobre o enunciado,
ou mudar-lhe totalmente o sentido. Vejam-se os enunciados a seguir:
“Só
você não conseguirá a resposta.”
“Só,
você não conseguirá a resposta.”
Na
primeira oração, “só” tem o sentido de “somente, apenas”, resultando em “Apenas
você não conseguirá a resposta”; isto é, todo mundo conseguirá a resposta,
menos você.
Na
segunda, com a vírgula”, “só” adquire o significado de “sozinho, solitário”, o
que muda o sentido da frase para “Sozinho, você não conseguirá a resposta”; ou
seja: você não conseguirá a resposta se a procurar sozinho.
O exemplo seguinte dispensa comentários:
“Se
homem soubesse o valor que tem, a mulher sairia de quatro à sua procura.”
Mudando
a vírgula de lugar, o significado também se altera:
“Se
homem soubesse o valor que tem a mulher, sairia de quatro à sua procura.”
No entanto, entristeço ao ver que a fala acaba
sofrendo perdas quando se impõe um padrão escolhido quase aleatoriamente, como
se apenas o falar de uma dada região fosse "certo", e todos os
demais, "errados". Esse conceito de certo e errado é limitador.
Quaisquer
tentativas de padronização da fala, de um lado, destroem a riqueza e a própria
história da língua; de outro, são resultado de imposições e, por isso mesmo,
refletem autoritarismo – o que já dissemos quando mencionamos a novilíngua de
Orwell (para ler o texto, clique aqui).
Como
negar a beleza da música “Arrumação”(*), de Elomar Figueira Mello, escrita no
falar sertanejo das barrancas do Rio Gavião? Muito embora não conheçamos muitas
palavras e construções frasais do texto, por que não pesquisar para
compreendê-lo e apreciar a poesia que brota da força do homem simples?
Creio firmemente que não se deve privilegiar
este ou aquele modo de falar em detrimento de todos os outros; que a língua não
deve ser reduzida – ao contrário, os jovens têm o direito de conhecer todos os
níveis de linguagem, de ampliar seu vocabulário e, com isso, ter acesso a todo
tipo de conhecimento. Cabe a nós, professores, fornecer aos mais jovens
ferramentas para que se desenvolvam no universo linguístico.
A
língua é dinâmica - modifica-se, transforma-se, cresce com novos termos e
construções, e por isso não há caminho para imposições e limitações sem que
isso implique o cometimento de arbitrariedades.
Marie Curie dizia que "não devemos temer
o desconhecido, e sim procurar compreendê-lo". Transportando essa frase
para o mundo das línguas, conhecer novas palavras, novas formas de expressão,
buscar compreender os falantes do português em outras terras que não apenas a
nossa, é uma sempre enriquecedora fonte de união e de fortalecimento nacional.
Um comentário:
Hoje, me deu vontade de dizer aqui: relendo Guimarães Rosa, pensei sem querer e sem querer pensar, na fala e na escrita do acauãzeiro-mor. Como é fascinante a influência que recebemos das nossas leituras. Ah... e parabéns à autora do texto compartilhado. A padronização é realmente destruidora.
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