quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Therezinha Hernandes - BRINCANDO COM A LÍNGUA: NÃO MALTRATE O PORTUGUÊS - Certas palavras, outras palavras, todas as palavras



Nesta semana me deliciei lendo a coluna “Fé no que virá”, com texto da professora Mírian Pereira (leia aqui),  em que ela expressa a ideia de que é preciso abolir preconceitos linguísticos com relação à fala – e tem toda razão.

 Ainda que por vias diversas, partilhamos a mesma opinião. Embora eu defenda a uniformidade na escrita, aprecio muito os falares regionais como expressão da cultura popular. Isso só nos engrandece e nos une como nação.

Quem me conhece sabe que jamais corrijo meu interlocutor. Vou explicar.
 
Entendo que seja necessário haver uniformidade na escrita para que o leitor não fique em dúvida sobre a mensagem, para que a compreenda de forma plena, justamente porque a escrita não possui a mesma riqueza expressiva da fala, à qual se acrescentam gestos, expressões faciais, diferentes entonações de voz. A ausência de pontuação, por exemplo, pode levar a confusões sobre o enunciado, ou mudar-lhe totalmente o sentido. Vejam-se os enunciados a seguir:
 
“Só você não conseguirá a resposta.”
“Só, você não conseguirá a resposta.”


Na primeira oração, “só” tem o sentido de “somente, apenas”, resultando em “Apenas você não conseguirá a resposta”; isto é, todo mundo conseguirá a resposta, menos você.
Na segunda, com a vírgula”, “só” adquire o significado de “sozinho, solitário”, o que muda o sentido da frase para “Sozinho, você não conseguirá a resposta”; ou seja: você não conseguirá a resposta se a procurar sozinho.

 O exemplo seguinte dispensa comentários:
“Se homem soubesse o valor que tem, a mulher sairia de quatro à sua procura.”

Mudando a vírgula de lugar, o significado também se altera:
“Se homem soubesse o valor que tem a mulher, sairia de quatro à sua procura.”

 No entanto, entristeço ao ver que a fala acaba sofrendo perdas quando se impõe um padrão escolhido quase aleatoriamente, como se apenas o falar de uma dada região fosse "certo", e todos os demais, "errados". Esse conceito de certo e errado é limitador.

Quaisquer tentativas de padronização da fala, de um lado, destroem a riqueza e a própria história da língua; de outro, são resultado de imposições e, por isso mesmo, refletem autoritarismo – o que já dissemos quando mencionamos a novilíngua de Orwell (para ler o texto, clique aqui).

 Como negar a beleza da música “Arrumação”(*), de Elomar Figueira Mello, escrita no falar sertanejo das barrancas do Rio Gavião? Muito embora não conheçamos muitas palavras e construções frasais do texto, por que não pesquisar para compreendê-lo e apreciar a poesia que brota da força do homem simples?

 Creio firmemente que não se deve privilegiar este ou aquele modo de falar em detrimento de todos os outros; que a língua não deve ser reduzida – ao contrário, os jovens têm o direito de conhecer todos os níveis de linguagem, de ampliar seu vocabulário e, com isso, ter acesso a todo tipo de conhecimento. Cabe a nós, professores, fornecer aos mais jovens ferramentas para que se desenvolvam no universo linguístico.
 
A língua é dinâmica - modifica-se, transforma-se, cresce com novos termos e construções, e por isso não há caminho para imposições e limitações sem que isso implique o cometimento de arbitrariedades.

 Marie Curie dizia que "não devemos temer o desconhecido, e sim procurar compreendê-lo". Transportando essa frase para o mundo das línguas, conhecer novas palavras, novas formas de expressão, buscar compreender os falantes do português em outras terras que não apenas a nossa, é uma sempre enriquecedora fonte de união e de fortalecimento nacional. 

Um comentário:

Anônimo disse...

Hoje, me deu vontade de dizer aqui: relendo Guimarães Rosa, pensei sem querer e sem querer pensar, na fala e na escrita do acauãzeiro-mor. Como é fascinante a influência que recebemos das nossas leituras. Ah... e parabéns à autora do texto compartilhado. A padronização é realmente destruidora.