“O sul acaba no Paraguai"
Antonio Torres, in: Essa Terra
Não me lembro o mês nem o dia. Devia
ser janeiro porque era mês de férias. Podia ser qualquer dia da semana, menos
domingo ou segunda-feira: não havia missa nem feira. Domingo era dia de
descanso e reza. Muita reza para Nossa Senhora do Amparo e todos os santos;
segunda-feira acontecia os ajustes de contas entre patrões e empregados,
credores e devedores, donos de bodegas e bebedores do “pindura”. Só os
feirantes partiam em seus paus-de-arara ruidosos em busca de novos mercados e
retornavam na segunda-feira seguinte, abastecidos de novas mercadorias.
Acordamos na hora dos pássaros, mas
nesse dia não houve reza da Ladainha de Nossa Senhora, conforme o costume da
casa. Em vez de kyrie eleison, discussões, apelos e uma sentença
definitiva de nossa mãe: “Não pari filhos para morrer na ignorância do cabo da
enxada.” No calor da contenda, ficamos sabendo o que nos esconderam durante a
agitação da semana: estávamos de partida para Alagoinhas, cidade a menos de cem
quilômetros do Junco, e que era uma ida sem volta, definitiva, e somente a
passeio veríamos novamente a cidade fundada por nossos tataravôs.
Não me lembro se fiquei contente ou se
chorei. Lembro-me que uma vez, em romaria para a cidade de Candeias, passamos
por Alagoinhas e me assustei com o tamanho da cidade. Havia um movimento
intenso de automóveis pelas ruas e o povo andava apressado, como se levasse
fogo a alguém. Guedes, meu irmão mais novo, quando inquirido por mim, disse não
se lembrar da cidade. Na época ele era muito pequeno, quase um bebê, e não
devia se lembrar mesmo.
Na pequena cidade havia apenas três
carros: o Jeep dos Mandioca, a Rural Willis da Prefeitura e o caminhão de seu
Dema. Era, o caminhão, o transportador de ilusões, o realizador de sonhos, o
objeto do desejo quando subia a Ladeira Grande rumo ao desconhecido.
O dia
não amanhecera de todo e o caminhão roncou em nossa porta da casa da rua. A
agitação aumentou com a chegada de nossos vizinhos, primos, amigos e tios; até
nosso avô materno resolveu aparecer para a despedida. Rostos sonolentos e
tristes perambulavam dentro de casa ajudando no bota-fora. Mudança de sertanejo
não há muito que se carregar: uma rede, uma caneca de café e um papagaio.
Algumas vezes, um cachorro com nome de peixe.
Mas nós tínhamos algo além: três camas de mola com colchões de palha de
junco, colchas de retalhos, um jogo de sofá, presente do genro Arnaldo, um
amontoado de panelas de alumínio e cerâmica, e uma cristaleira, a menina dos
olhos de nossa mãe. Era tudo que se tinha e parecia ser muita coisa, porém não
encheu meio caminhão. O Junco era um ponto no mapa da miséria, não comportava
certos luxos.
O crepúsculo matutino se dissipava no
horizonte quando seu Dema buzinou em chamada de embarque. Tinha pressa em
partir por causa do calor na estrada. Mais ainda para se livrar do chororô dos
que partiam e dos que ficavam. A nossa mãe, embora de coração partido, não
arredou um milímetro em sua decisão: apenas beijou o nosso irmão Guidório, que
ficaria com o nosso pai até o fim do ano letivo; concluiria o 5º ano primário e
nas férias iria para Alagoinhas prestar os “Exames de Admissão ao Ginásio”.
Ainda me lembro da cara de choro de
Guidório, antevendo uma saudade que nos uniria para sempre tal qual irmãos
siameses. Até aquele momento o nosso choro havia sido apenas das surras da
nossa mãe quando nos flagrava em traquinagem. As lágrimas daquele instante tinham
uma dor mais profunda, aguda, dilacerante. Arranhava as entranhas e sufocava a
alma. Foram as primeiras de tantas outras; era o mundo cobrando o seu preço por
nos ter parido.
No pé da Ladeira Grande o caminhão
acelerou para pegar embalo na subida. O motor roncou medonho, perturbando a
sinfonia e harmonia da Natureza, fazendo voar assustados os bem-te-vis,
canários-da-terra, pintassilgos e arapongas em confabulação na beira da
estrada. Além da ladeira, uma revolução se fazia. Homens e ideais se
digladiavam em embate de morte. Aquém, um homem lutava bravamente para não marejar
os olhos. Em sua alma havia uma revolução maior do que todas as revoluções: a
de ver seus sonhos, desejos e afetos se dissiparem na poeira da estrada. Depois
que o caminhão fosse tragado pela linha do horizonte nada mais seria como
antes.
A pinga de outrora na bodega de Nelo
para molhar a garganta antes de ganhar o caminho da roça com os alforjes cheios
de mantimentos para a prole que o aguardava, agora servia para desmanchar o nó
que lhe sufocava. O nó da amargura. O intrincado nó da solidão. Mal desconfiava
que um dia um filho seu escreveria contando aquela sua angústia e colocaria
palavras não proferidas, não que não quisesse, mas por sentir vergonha da
vontade de gritar ao mundo logo cedo da manhã: “Benditas são as mulheres.
Elas sabem chorar”¹.
Ao subir a Ladeira Grande, pela
primeira vez pude ver o Junco lá embaixo: minúsculo, quieto, triste. Os
primeiros raios de sol iluminaram a torre da igreja desafiando o espaço:
imponente, impávida, querendo chegar até Deus. Uma rajada fria de vento sudeste
bateu em nosso corpo em cima da carroceria do caminhão, deixando os pelos da
pele eriçados. A torre da igreja sumiu entre os galhos de calumbi e olhamos para
frente. O horizonte se descortinou em um azul infinito, assim como infinitas se
fizeram a nossa saudade, as necessidades e humilhações no novo mundo, que nos
recebeu com o mesmo sentimento de desconfiança com o qual se recebe os
estrangeiros.
¹TORRES, Antonio. Essa Terra.
Rio de Janeiro: Record, 2001, p.67.
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