terça-feira, 9 de agosto de 2011

Maurício Melo Júnior - Renunciar palavras, frases inteiras

Nas mãos repousavam os originais de um clássico. Um papel amarelado pelo tempo, descolorido pela ação de tantos dias, iluminado pelo olhar atento de incontáveis leitores. Um clássico. Na página agora frágil e preciosa, num tempo de muito ontem, o autor, determinado e conciso, riscou o título já impresso com a força da máquina tipográfica: O Mundo Coberto de Penas. Sobre a frase riscada, a nomeação definitiva: Vidas Seccas. Assim mesmo, com dois cês, como exigia a gramática da época. 1938.

Alguma mensagem ainda oculta naquele caminho tantas vezes percorrido? Segui em frente debatendo-me com outras tantos riscos, outras tantas correções, outras várias necessidades de se apurar a linguagem, secá-la, enxugá-la, extrair de cada palavra o máximo de suco e delícia. Um ofício danado de incertezas e revisões este de botar no papel as vidas imaginadas.

No mesmo dia me deitei sobre outro emaranhado de palavras escritas numa letra miúda, maldita, ilegível. Um caderno escolar pautado e ocupado da primeira à última página em todos os espaços possíveis. O autor devia ser muito pobre, posto ter economizado cada milímetro do papel, como se temesse faltar brancura onde pontear suas idéias. Branco mesmo, de fato, somente parte da primeira página onde se podia ler com alguma clareza uma única frase: Memórias de um Menino de Engenho, com um risco forte cortando as três primeiras palavras.

Como daquele mato não me pareceu possível retirar algum coelho, parti para outro encanto. Um volume massudo, gordo, farto, coronelístico. A primeira palavra do texto datilografado com esmero foi preservada: Nonada. Também o título, desenhado com caneta colorida, em letra de forma, com certa simetria sobre o papel – Grande Sertão: Veredas.

O que se seguia depois do Nonada era um desembestar de riscos feitos com a precisão de uma régua. Cada uma daquelas frases renunciadas era encoberta pela fúria de muitos riscos, inviabilizando em definitivo sua leitura. Sobrevivia apenas aquilo que era do desejo do autor. Nada além disso deveria prosperar, entrar para eternidade. Nonada, senhor, apenas não se deve correr o risco de macular uma obra com os erros possíveis de serem corrigidos, encobertos.

Num outro caderno, este preenchido na solidão de uma fazenda sertaneja por uma mocinha que tentava se livrar da ameaça de uma tuberculose, a letra de professora bem aplicada foi me dando lições de humanismo e brasilidade. A tal moça, na verdade, de bem comportada tinha apenas a letra e carinha inocente. Era uma danada. Primeiro burlava a vigilância paterna que a queria muito cedo na cama. Quando todos dormiam, ela, sorrateira, acendia uma lamparina e deitada no chão da sala viajava com sua criação.



O curioso é que numa conversa meio antiga a moça agora amadurecida e consagrada confessou-me não saber o paradeiro dos originais daquele livro que não gozava de sua simpatia. “É um livrinho chinfrim”, dizia prenhe de injusta modéstia. Pergunto então ao novo dono como aquilo chegou a sua imensa biblioteca. Contou-me uma estranha saga. Comprou de uma viúva a quem prometeu só revelar sua existência depois que a autora tivesse ido para o sempre. Assim fez e assim pude contemplar a renúncia de uma nordestinada bonita. No título escrito à mão podemos ler A Quinze, e sobre o A inicial um O soberano e definitivo.

Ler todas aquelas pérolas preenchidas de vacilos e determinações nos aponta para a carga humana que pesa sobre os ombros de seus autores.

Há pouco, queimando pestana com um Juazeiro centenário, li emocionado um texto ditado a um datilógrafo pelo padre milagreiro. Depois o patriarca do Cariri fez algumas correções no texto e o assinou. Era uma carta dirigida a um amigo com sugestões à Constituinte de 1932, entre elas um artigo proibindo a venda de terras brasileiras a qualquer estrangeiro, sobretudo quando estas terras estivessem em áreas de interesse primário da nação, como as matas, as vazantes dos rios, o litoral.
Quanta atualidade.

Momento houve em que velho amigo retirou da prateleira um baú de madeira pejado de papéis soltos e aparentemente desconexos. Telegramas escritos no verso, guardanapos de hotéis e restaurantes, folhas avulsas, algumas páginas datilografadas, um carnaval, um cafarnaum desgraçado. Só identifiquei que dali surgiu um livro clássico, o início de uma série fundamental e incompleta, quando li o papel envelhecido que cobria tudo aquilo: Casa-Grande & Senzala.

Seu autor publicou outros dois volumes, como se sabe, e morreu jurando que tinha escrito o quarto tomo: Mausoléus e Covas-Rasas, que teria sido roubado de sua casa. Bem desgraçado o certo ladrão de sabedorias. Havia ainda um livro com a iconografia necessária para melhor se entender a formação social do Brasil, mas este o mestre não conseguiu levar adiante.

Mergulhado nestas lembranças, sentindo o cheiro dos velhos papéis, revejo a solidão necessária ao escritor. Lidar com a palavra e suas armadilhas é ofício para quem ousa desafiar a eternidade. Indubitavelmente a morte nos espreita numa esquina. Ficarão os sonhos que deitamos no papel, caso nenhum deus do esquecimento queira nos brindar com suas graças. Mesmo assim ainda corremos o risco de alguma viúva nos resgatar do limbo.

E como o futuro parece ser uma ordem, uma artimanha da arte e do conhecimento, vale a pena tomar precauções e reescrever, reescrever, reescrever. Literatura é labuta para quem sabe renunciar a facilidades.


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