terça-feira, 22 de novembro de 2011

Maurício Melo Júnior - Poemas para Alagoas


Impossível lembrar o dia, impossível lembrar as emoções, se é que as tive. Uma certeza? Vinha nos braços de minha mãe e trazia apenas a leveza despreocupada de meus poucos meses. Foi a primeira vez que vi Alagoas e por ali fiquei na deslembrança de minha primeira infância. Coisa de três anos depois voltei para Pernambuco, mas a terra de massapê coberto de cana e o rio Camaragibe formando barrancos miúdos já me eram íntimos, tinham-se feitos como partes da argamassa que me criou.

Como a vida precisa ser vivida nos espaços que oferece aos homens, fui caminhando, tocando os dias. Vez que outra, sobretudo nos finais de ano, voltava, percorria na procissão do Bom Jesus as ruas de Matriz de Camargibe e de maneira involuntária absorvia todos os ensinamentos daquela gente marcada pelo melaço da cana e os gritos da usina. Fiz tudo que me outorgava a idade. Andei a cavalo, brinquei de finca e quando a idade permitiu conheci matadores e cantei pelos bares: “Matriz é terra boa / é meu natural. / O amor que tenho a ela / É grande e sem igual.”

A cidade tinha seus poetas, como o parnasiano Fabrício Braga, meu tio, que escrevia sonetos contando seus amores pela terra. Outros vinham da vizinhança, do Passo, como seu Nelson, um poeta de verve popular. Sempre chegava proclamando seu bordão: “Se o Passo não fosse o Passo eu não passava pelo Passo, mas como o Passo é o Passo, eu passo pelo Passo”. E nas horas de desamores por sua terra recitava: “Eita Passo do Camaragibe / Cidade triste e atrasada / Tem meia dúzia de gente / O resto não vale nada.”

Os poetas nem sempre são muito justos, pois o Passo fomentou uma das maiores culturas deste país. Foi no balcão da loja que o pai mantinha na cidade que Aurélio Buarque de Holanda ouviu pela primeira vez o termo ôxente, e saiu à cata de saber do que se tratava. Descobriu ser uma corruptela da expressão “ô gente”, e nunca mais parou de estudar a língua portuguesa. E deu no que deu.

Posso dizer que conheço Alagoas e o quanto me dói ler o noticiário que gera. Isso já atingia o poeta Jorge de Lima. Sempre que vinham falar com ele sobre a violência de seu estado, ele, que também foi vítima de tal violência, retrucava: “As minhas Alagoas são outras”. Esta mesma frase usei muito quando há poucos anos alguns amigos falavam da corrupção que se espalhou pelo país no bojo de um governo que se dizia inovador e progressista, mas que nacionalizava práticas doentias. E pensei voltar à carga diante da recente notícia do IBGE apontando o estado como o campeão brasileiro em analfabetismo.

Verdadeiramente as minhas Alagoas são outras, como também são outras as Alagoas dos alagoanos reais. Como o Brasil definido por Machado de Assis, existe sim uma Alagoas real e uma outra oficial. E, tenham certeza, a primeira é mais vítima que responsável pela segunda. O açúcar que fundou a província, também a afundou, pois no bojo de suas ambições foram criadas todas as desigualdades que hoje maculam a terra de um dos maiores juristas brasileiros, Pontes de Miranda.

Outro dia ouvi alguém confessar o estranhamento de não conhecer nenhum benefício feito por luminares, como a doutora Nise da Silveira, às Alagoas. Isso é argumento de quem não conhece os fatos. Graciliano Ramos no relatório que enviou como prefeito de Palmeira dos Índios ao governador Álvaro Paes, em 11 de janeiro de 1930, fala desolado da instrução pública da época. “Instituíram-se escolas em três aldeias: Serra da Mandioca, Anum e Canafístula. O Conselho mandou subvencionar uma sociedade aqui fundada por operários, sociedade que se dedica à educação de adultos. Presumo que esses estabelecimentos são de eficiência contestável. As aspirantes a professoras revelam, com admirável unanimidade, uma lastimosa ignorância. Escolhidas algumas delas, as escolas entraram a funcionar regularmente, como as outras. Não creio que os alunos aprendam ali grande coisa. Obterão, contudo, a habilidade precisa para ler jornais e almanaques, discutir política e decorar sonetos, passatempos acessíveis a quase todos os roceiros.”

Mestre Graça fez mais. Depois que se tornou Diretor da Instrução Pública, uma espécie de Secretário de Educação da época, mandava as professoras estudarem novos métodos de ensino no Recife, comprava fardamento para os alunos e, uma revolução, pioneiramente instituíu a merenda escolar. Mas os roceiros não podiam se dedicar às discussões políticas e à leitura de sonetos, como logo descobriu o escritor ao ser demitido do cargo, preso e deportado para o Rio de Janeiro.

Esta prática espalhou-se pelo país. No dia 2 de abril de 1963, diante de todos os governadores do Nordeste, do presidente João Goulart e do general Castelo Branco, na cidade de Angicos, no Rio Grande do Norte, o aluno mais velho da primeira turma formada pelo método Paulo Freire escreveu no quadro: “Há trinta anos, o dr. Getúlio veio aqui matar a nossa fome de barriga. Agora o senhor veio matar a nossa fome de cabeça”. Acabada a festa, quando todos iam embora, o general falou para o Secretário Estadual de Educação, Calazans Fernandes: “Meu jovem, você está engordando cascavéis nesses sertões”.

O resta da história já se sabe. Um ano depois, liderando um golpe militar, Castelo Branco se fez presidente e começou a esmagar as cascavéis, experiência seguida por seus sucessores.

Assim caminha a educação deste país. Felizmente muitas experiências procuram quebrar esta desgraça, como os sarais poéticos que acontecem nas periferias de São Paulo e Brasília, onde se lê sonetos e se fala de política pública, mas a mediocridade que ainda domina Alagoas, segundo nos informa o IBGE, insiste em expulsar Graciliano Ramos de sua terra.

Tenho esperanças e mesmo não sendo poeta, acalento o sonho de escrever versos que possam ser lidos por todos os alagoanos, por todos os alagoanos de fato.


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