Os do Norte chegaram arrastando seus sonhos. E o Norte era longe, improvável. Traziam também na bagagem vastas emoções, culturas. Pela estrada cumprida – no mar ou na terra – corriam tantas vidas, tantas paisagens, tantas cores que preenchiam as retinas mais amplas e abertas. E com suas cargas entranhadas na pele, os do Norte espalharam-se por todas as partes.
Um deles, de nome Nabuco, Joaquim Nabuco, falava de noites escurecidas pela opressão onde a resistência fazia nascer desejos libertários. Pelas pregações que fazia, o negro Tobias que esfaqueara de morte o patrão num engenho de Pernambuco não matara um homem, mas séculos de humilhação e dor. Foi contra os incontáveis lanhos abertos nas costas de seus pares que investiu o pobre escravo. Depois da abolição, ainda prenhe de ideário renovador, o agora maduro jurista sofreu por não ver realizado o projeto de inclusão social que sonhou para os deserdados da sorte e se voltou para seus escritos e sistematizou uma academia para abrigar as letras do Brasil. Hoje perpetua-se, com gingado de dândi, na calçada da instituição.
Ao seu lado, sentado numa escrivaninha, tentando arrancar alguma poesia da rigidez do bronze que lhe segura sempre na mesma posição, outro do Norte, Manuel, de sobrenome Bandeira. Este nunca conseguiu chegar em Pasárgada, no entanto escreveu passos líricos em quilômetros incontáveis de terras espalhadas por todos os continentes. Semeou versos em cada palmo desse chão, seduziu a todos com as belezas de sua criação. Sua voz de tísico, de homem com pulmões capazes de tocar tangos argentinos se ouviu alta, em palavras fortes e indissolúveis. Se fez herói trabalhando somento verbos e sentimentos: “Não faço versos de guerra, não faço porque não sei, mas num torpedo suicida darei de bom grado a vida na luta que não lutei.”
Por tudo isso está ali, na calçada de um edifício alto, de muitos andares, com incrição no pilar principal: Palácio Austregésilo de Athayde. Este também era nortista. Foi numa conversa com Rachel de Queiroz, também filha da terrinha, que o assunto surgiu: “Você precisa ouvir o Athayde. Ele tem mais de 90 anos e uma lucidez invejável. É da raça cearense.” “Dona Rachel, ele estudou no seminário de Fortaleza, mas é pernambucano de Caruaru…” “Meu filho, quando o menino é bonito todo mundo quer ser o pai.” Athayde não era necessariamente um homem bonito, portava mesmo uma feiúra danada, mas as palavras saiam com facilidade e explendor de sua imaginação. Em essência foi cronista, homem de jornal, conhecedor dos rigores da linguagem e sua necessidade na defesa dos direitos naturais do bicho humano.
Hoje se caminha pelos espaços desses edifícios – o palácio propriamente dito e o menor, o mais clássico, o dito Petit Trianon – respirando os prazeres da cultura. Quem preferir pode subir outros andares, onde se cuida de negócias que sustentam numerários, de minha parte vadio olhando livros, reedições bem cuidadas de obras raras e fundamentais – João do Rio no cinema, cartas de Machado de Assis. A língua portuguesa, essa nossa pátria tão judiada, olvidada, precisa de defesas, imunidades que mantenham suas particularidades, suas características seminais. Penso nisso ao cumprimentar o gramático Bechara, outro do Norte. E sigo sem saber bem o que fazer.
Como peixe-agulha encantado com a luz de lanternas, pulo em outro barco chamado por um cartaz imenso – Presença Poética do Recife / Exposição Sobre o Centenário de Mauro Mota. Desculpe a fraqueza desta memória, meu poeta, mas seu nome estava escondido numa prateleira mais alta de minha cabeça e há muito que não esticava o braço até lá. É também que este país, esta máquina de moer talentos é tão eficiente em sua faina cruel que as vezes nos entregamos ao sentimento ruim e em tempos mais eufóricos esquecemos os primores de ontem. Coisas do bicho humano, você sabe.
O certo é que passei por um passado que me parecia distante, imemorial, sem lembrar que era parte primordial de meu âmago. O Recife, os canaviais, os engenhos. Tudo isso que foi seu desfilava sob meus olhos de saudade. Livros, poemas, análises de sabor sociológico, o fabrico de uma cabeça inquieta que ousou pensar Pernambuco como pedaço do Nordeste, mas também por isso, síntese do vasto mundo. Daí o carinho pelas tecelãs, pelas moças assustadas com os tiros da guerra e encantadas com a beleza nova de homens vindos de outros Nortes. E a vida em família, entre filhos e amigos. A beleza de Hermantine, a que tinha mãos feitas para construir destinos. O primitivismo artístico brotado das telas de Marly, a de mãos feitas para expressar o belo. Um cochicho com Gilberto Freyre. Um abraço em Chacrinha, o bonachão nortista Abelardo que veio saber de sua glória chegando à Academia. Muitas lembranças, meu velho.
Tudo se transmuta, quando preciso, em poesia. As estantes centenárias da biblioteca me mostram Ferreira Gullar, também do Norte, pedindo a Bandeira que leia seu livro de estreia, Um Pouco Acima do Chão. No mesmo patamar, um volume magro com poemas de Ascenço Ferreira traz dedicatória fraterna ao mesmo Bandeira. É tanta vida a se olhar, moço, que sigo carregando o orgulho de também ter vindo do Norte e poder juntar as forças de um talento miúdo para falar de esferas infindas.
Penso no tanto que Pernambuco, bicho atrevido que gosta de falar para o mundo, plantou neste solo fértil. E sento para ouvir Carlos Fuentes falar de outros mundos. O México rebelado, Pedro Páramo, gente que conversa com fantasmas, as possibilidades infindas da literatura.
O mundo é grande e não tem porteiras. E as academias quando querem sabem encontrar os caminhos da atividade, do saber e da grandeza.
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