terça-feira, 19 de julho de 2011

Maurício Melo Júnior - O reino do invisível

Foi assim. Um auditório repleto, coisa de difícil enfrentamento. Neste caso, no entanto, estamos num estágio ainda pior. Um auditório repleto de crianças, quase adolescentes ávidos para trucidar o coitado de um escritor desguarnecido de imaginação e esperanças. Uma horda de canibais modernos vazando curiosidade por todos os poros. O desespero aumentou quando percebi que era eu a vítima do delírio famélico daquela gente miúda, liliputianos a transpirarem sangue pelos olhos. Meu desespero aumentou quando descobri que não transitava no espaço do onírico. Na mais cruel das verdades percebi que não havia saída de emergência. Juro que invejei Hans Staden.

Como um herói despido, pisei o primeiro degrau da escada. Entrei no palco e, ateu convicto, apelei para o Senhor das Esferas – Seja o Deus quiser. E Ele foi generoso com este seu filho desgarrado. As crianças e adolescentes ansiavam que eu falasse de literatura, criação literária, essas coisas que edulcoram nossas vidas tão insossas.

Por que o senhor escreve?

Diante da primeira pergunta não temi, ao contrário desandei um rosário. Escrevo por um motivo muito simples: sou, em verdade, um grande mentiroso, e isso pode ser uma imensa mentira, afinal quem em sã consciência acredita em um embromador? Fato mesmo, buscando os cânones da veracidade, é que a fama de escritor é mais salutar que a de simulador, daí escrevo todas as minhas inexatidões e atendo convites para parolar com pubescentes hodiernos.

O diálogo não se deu desta maneira, afinal muitas das palavras aqui empregadas apanhei agora no dicionário, esse companheiro de horas infindas, mas o tom foi este mesmo. Além do mais quem falar daquela maneira, num arremedo danado do velho Camões, merece bons safanões, imensos apupos.

Esgotadas todas as agressões possíveis aos dicionários, voltemos à frieza dos fatos. Nós escritores – tenho a pretensão de ser um deles – somos vendedores de mentiras. Durantes horas, dias, meses, anos convivemos com pessoas que não existem. Mesmo assim conversamos com elas, compartilhamos todas as suas angústias, todas as suas esperanças. Choramos suas dores, rimos suas felicidades. E se por ventura algum desavisado aventureiro desdizer a mais vil e canalha destas criaturas nos tomamos de mágoas maternais e defendemos estes seres imateriais como quem se bate em favor de um filho.

Somos estranhos, reconheço.

O danado é que quase sempre nos apanhamos em dúvidas: Isso de fato aconteceu?

Ainda outra hora lembrei uma tarde vadia na Câmara dos Deputados. Sempre que conseguia estes espaços corria para a sala onde trabalhava Luiz Berto. E ficávamos ali a falar da vida alheia, mas posando de intelectuais a discutir os destinos artísticos da nação. Foi então que surgiu uma bela e jovem vate abraçada às suas produções. Era de fato uma moça interessada nos meandros da literatura tanto que, informaram-me, cursava letras numa faculdade qualquer. Berto leu as estrofes e, com uma incolor pergunta: o que você acha?, passou-me as folhas. Li. Levemente constrangido sentenciei: Lembra-me o poema Menina e Moça, de Machado de Assis. E a novel bardo pergunta com serenidade: Quem é Machado de Assis?

Terá sido isto verdade?

Vivo com meus comparsas o mundo das inverdades, mas mentimos apenas para a folha em branco. Ou a tela em branco. Resguardamo-nos numa ética que pode parecer estranha. E nos alimentamos de fantasias amando a veracidade, por isso desconfiamos sempre da vida. Ela nos espreita e nos surpreende em cada nova esquina. E há fatos que contamos desconfiando de nós mesmos, afinal a vida também é uma grande mentirosa.

Há tempos, num tempo onde ganhava o necessário para a sobrevivência dando aulas numa faculdade, fui abordado por um rapaz. Sou seu aluno, me garantia. Minha memória não chega a ser uma maravilha, mas também não costuma falhar com freqüência. E como tinha outras atividades profissionais, era fácil lembrar o rosto de cada freqüentador das poucas salas onde ministrava a ciência do jornalismo. Aquela cara, tinha certeza, me era totalmente desconhecida. E o moço insistia: sou seu aluno.

Depois de um breve interrogatório descobri o fato. O rapaz havia se matriculado em minha disciplina, mas já estávamos no final do semestre e ele não comparecera a nenhuma aula. E fazia um pedido singelo, que lhe aplicasse um teste capaz de o aprovar na matéria, pois, segundo me garantia, mesmo faltando a todas as aulas, conhecia em profundidade a matéria.

Que diploma de jornalismo eu poderia dar aquele moço?

Radicalizei. Fale-me sobre Ionesco.

Sobre quem, professor?

Eugène Ionesco.

Diante da cara de espanto do aluno retruquei. Ionesco, um dos pais do teatro do absurdo, era romeno e escreveu um clássico, A Cantora Careca, onde durante todo o espetáculo se procura a tal cantora que nunca aparece, pois simplesmente não existe. Meu caro, você é minha cantora careca. Você não existe.

Vivemos num mundo de delírios, mas procuramos sempre o caminho da sinceridade. É que ler mentiras nos parece um exercício bem honesto.


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