quinta-feira, 9 de julho de 2009

Anotações sobre o romance



Por Antônio Torres


Introdução às oficinas literárias Para gostar de ler (e escrever) romance, realizadas na Casa do Saber do Rio de Janeiro, às terças-feiras de julho de 2009.







1.


Segundo o mestre Aurélio, o romance é a “transposição artística da vida em longa narrativa dos atos e sentimentos de personagens imaginárias”.


2.


Mestre Houaiss: “Obra narrativa escrita em língua românica, em prosa ou em verso”.

Prosa, mais ou menos longa, na qual se narram fatos imaginários, às vezes inspirados em fatos reais, cujo centro de interesse pode estar no relato de aventuras, no estudo de costumes ou tipos psicológicos, na crítica social etc.”


3.


Outras definições:

“Composição poética narrativa do romanceiro popular, em particular a de tema amoroso”.

“Descrição marcada pelo exagero e pela fantasia (vai fazer um romance para contar um simples incidente...)”.

“Fato real que, por ser muito complicado, parece inacreditável.”

Etc.


4.


Grande Enciclopédia Larousse Cultural: “Gênero literário em prosa relativamente longa, caracterizado pela narração de acontecimentos fictícios, mas geralmente verossímeis, relacionados a uma ação centrada num enredo, na análise de personagens, ou no exame de uma situação”.

Portanto, o romance requer narrador/narradora, personagem central/ protagonista (ou narrador/personagem), personagens secundários, cenário, trama, subtramas, fabulação, começo, meio e fim, não necessariamente nesta ordem.


5.


De Honoré de Balzac: “É preciso desfolhar toda a vida social para ser um verdadeiro romancista, porque o romance é a história secreta das nações”.


6.


Roland Barthes: “Ato de sociabilidade, o romance institui a literatura”.


7.


Alain Robbe-Grillet: “Só a escrita romanesca constitui a realidade”.


8.


Antes de sabermos que o romance é tudo isso e mais alguma coisa (por exemplo: que em parte é um legado da Antiguidade, e sucedâneo do poema épico, mas que na Europa medieval considerava-se romance um fenômeno de língua, ou seja, tudo o que não era escrito em latim), pois antes que fôssemos informados de tudo isso, a palavra já descia melodiosamente em nossos ouvidos, por significar namoro, caso amoroso etc., deixando-nos a imaginar enredos que incluíam encontros fortuitos e lenços perfumados. Nas tertúlias ancestrais aos pés dos fogões, para espantar o medo da noite num remoto sertão, romance era uma história de amor e aventura cantada ao som de uma viola, como a do Pavão misterioso, ou de bravura, como A chegada de Lampião ao inferno. Não é por acaso que a poesia de cordel, forte legado ibérico ao Nordeste brasileiro, popularizou-se como rimance, significando isto romance com rima.


9.


“No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus”. Assim começa o Evangelho Segundo São João. Para nos dizer que o dom da palavra é uma graça divina. Ao dar fala ao homem, Deus o teria distinguido no reino animal. Afinal, Ele o criara à sua imagem e semelhança. “E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, e vimos a sua glória, como a glória do unigênito Pai, cheio de graça e de verdade”.


Recorro a este memorável texto bíblico por dois motivos. Primeiro, pela sua beleza literária. Segundo: considerada o livro dos livros, o mais lido de todos os tempos, no mundo ocidental, a Bíblia é um caso exemplar de fabulação, a começar pelo Primeiro livro de Moisés chamado Gênesis, o mito dos mitos, que verdade científica alguma conseguiria suplantar no imaginário humano. Revisitemos o seu início, ainda que tão somente pelo prazer de reler o mais admirável de todos os textos:


No princípio criou Deus os céus e a terra.

E a terra era sem forma e vazia; e havia trevas sob a face do abismo; e o espírito de Deus se movia sobre a face das águas.

E disse Deus: Haja luz. E houve luz.

E viu Deus que era boa a luz; e fez Deus separação entre luz e as trevas.

E Deus chamou a luz Dia; e às trevas chamou Noite. E foi a tarde e a manhã o dia primeiro.


Etc.


Tão conhecida quanto essa história é a da própria Bíblia.


Nascida no deserto com Moisés, no século 13 antes de Cristo, ela reúne uma coletânea de livros escritos por diferentes autores ao longo de vários séculos. Os que se relacionam à aliança de Deus com o povo judeu estão no Antigo Testamento. Já o Novo Testamento apresenta os relatos concernentes à aliança de Jesus Cristo com todos os povos. O conjunto dessa obra sagrada tem exercido uma poderosa influência na literatura. Nem é preciso um grande esforço de memória para lembrar alguns títulos de romances e de contos de inspiração bíblica. Cinco casos exemplares: “Esaú e Jacó”, de Machado de Assis, “Absalom, Absalom” e “Desça, Moisés”, de William Faulkner, “O hóspede de Job”, do português José Cardoso Pires, e o recentíssimo “Caim”, da nossa contemporânea Márcia Denser.


Esse poder de sedução da Bíblia, para os escritores, se explica. Além de suas revelações, que fundamentam as crenças cristãs, nela encontram-se todas as matrizes literárias: a mítica, a trágica, a épica, a lírica, a dramática. E tudo com fabulação, estilo, uso estético da linguagem, no que se inclui a qualidade poética, sem a qual não se chega à literariedade.


Portanto, se no princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, o Verbo se fez literatura, já como uma criação do homem, a quem Deus deu a fala. E ele, o bicho-homem, fabulista, fabulador, fabuloso por natureza, da palavra falada chegou à escrita. E ela, a literatura, se desenvolveu com o próprio desenvolvimento da espécie, pela sua necessidade de contar histórias e de preservar a sua memória. Mas a literatura só ganharia existência concreta, ou seja, corpo, forma, difusão e perenidade, a partir do advento da imprensa, no século 15 depois de Cristo.


Povos primitivos já desenvolviam uma rica produção de lendas, mitos e histórias, por vezes associada à música, à dança e à dramatização, em espetáculos religiosos e profanos. E assim se formou a tradição da literatura oral, que gerou grandes poemas épicos, os textos sacros e as representações dramáticas das civilizações antigas da Europa e da Ásia. Na Idade Média, baladas, poemas, contos, gestas, adágios e adivinhações da cultura popular passaram à forma escrita, através de mãos eruditas. O avanço seguinte viria com a palavra impressa. E aqui cabe um tributo ao alemão Johannes Gensfleisch Gutenberg, o inventor dos caracteres móveis que dariam origem à tipografia, e daí às artes gráficas, à imprensa, sem as quais a indústria editorial não viria a existir.


Resultaram desse processo obras como o “Mahabharata” e o “Ramayana”, da Índia, a “Odisséia” e a “Ilíada”, de Homero, o “Edda” escandinavo, e a própria Bíblia.


10.


O primeiro verdadeiro romance da literatura universal foi o “Dom Quixote”, que teve a sua primeira parte publicada em 1605, sendo que a segunda sairia em 16l5. E com ele Cervantes pôs em xeque as ilusões e princípios estéticos de toda a literatura anterior à sua. O tempo agora era outro. A Espanha deixara de ser um conquistador do mundo para tornar-se o país da burocracia. Todo o seu heroísmo de conquistador havia se degradado. Dom Miguel de Cervantes fez mais: expandiu as fronteiras do romance, tornando um espaço entre o real e a imaginação, levando o leitor ao terreno da dúvida. “O engenhoso fidalgo da Mancha” viria a fazer o mais patético dos empedernidos a rir-se de si mesmo. E a partir dele, o romance passou a ser um desestabilizador das certezas humanas. Além disso, Cervantes inaugurou a figura triangular herói-mediador-objeto do desejo, e com isso compôs a estrutura profunda do romance ocidental.


A sinopse do “Dom Quixote”:


Um fidalgo provinciano que passava o tempo todo a ler romances de cavalaria, acabou por se identificar com os heróis de suas histórias preferidas. Um dia, vestiu uma velha armadura, armou-se de espada e lança, e partiu para uma louca aventura. Ao encontrar um bando de tropeiros de bestas, parou para conversar com eles. E tentou persuadi-los de que ali pelos arredores havia uma camponesa chamada Dulcinéia, que era a mulher mais bonita do mundo e a senhora de seus sonhos. Os tropeiros deram-lhe uma surra e o levaram de volta para casa, onde o padre do lugar, ajudado por um barbeiro, queimou solenemente todos os seus livros. Sua loucura, porém, era incurável. Ele voltou a montar em seu cavalo, o Rocinante, e partiu de novo, desta vez na companhia de um fiel escudeiro chamado Sancho Pança, que tudo faria para remediar as consequências dos desatinos que a desvairada imaginação do amo acarretavam. Vencido em combate, foi forçado, por juramento, a abandonar a sua aventura, quando, então, percebeu a fatuidade da sua quimera, e morreu, deixando a Sancho Pança a realidade de uma existência desprovida de heroísmo e fantasia.


11.


Certo, o romance moderno nasceu na Espanha, no século 17, mas cresceu na Inglaterra do século 18, com a revolução industrial, quando o campo marchava para a cidade e Londres se tornava a maior capital do mundo, enchendo-se de bordéis, criando o cartão de ponto e o comportamento padronizado da vida operária. Expandiu-se no século 19, quando chegou ao apogeu, pelo conjunto da obra de um elenco de gigantes: Tolstoi e Dostoievski, Eça de Queirós e Machado de Assis, e Flaubert, Sthendal, Balzac, Dickens...


12.


No século 20, um irlandês pede a palavra. Ora muito bem, estava tudo muito bom, mas chegara o momento de dar uma sacolejada nessas histórias com começo, meio e fim. Afinal, a mente humana não funciona de forma tão linear, mas por fluxos de consciência. O mundo já estava em plena era da psicanálise, que tanto se valeu da literatura. Pois agora a literatura iria se valer da psicanálise. Ao tempo cronológico interpõe-se o tempo psicológico e os monólogos interiores. E esse tempo não era mais o do grego Odysseus, o homérico Ulisses, rei de Ítaca, e sim o de um outro Ulisses, representado pelo anônimo corretor Leopold Bloom, que não tinha nenhuma Tróia para conquistar epicamente, montado num cavalo de pau. A aventura desse outro Ulisses resumia-se a gastar as solas dos seus sapatos, perambulando pela cidade de Dublin, por todo o dia 16 de junho de 1904, cruzando pelo caminho com a mulher, Molly, e um jovem chamado Stephen Dedalus.


Paródia da “Odisséia”, o “Ulisses” de James Joyce quebra a estrutura tradicional do romance, e, ao combinar características de lenda, reportagem, farsa, drama, sinfonia, tratado escolástico, referências simbólicas emprestadas da mitologia, da história e da literatura, ele faz da experimentação de linguagem, invenção de palavras e inovações estilísticas a sua grande novidade. Foi um escândalo.


13.


O século 20 foi também o de Marcel Proust, Virgínia Woolf – que a crítica situa entre Joyce e Proust -, Franz Kafka, Thomas Mann, Ítalo Calvino, Cesare Pavese, Sartre, Simone e Camus, Marguerite Duras e Boris Vian, e da tropa de choque norte-americana, comandada por William Faulkner, John dos Passos, Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway, os antecessores de William Styron, Norman Mailer, Truman Capote, Carson McCullers, Saul Bellow, Flanery O’Connor, Salinger, Phillip Roth. Sem esquecermos a Beat Generation de Jack Kerouac, que botou o pé na estrada em ritmo de jazz, muita birita e marijuana, ouvindo Allen Ginsberg recitar: “Eu vi as melhores cabeças da minha geração destruídas pela loucura, morrendo de fome, histéricos, nus, arrastando-se pelas ruas do bairro negro de madrugada em busca de uma dose violenta de qualquer coisa...”


E, de lá para cá, Paul Auster, Don Delillo.


14.


América hispânica: ninguém escrevia ao coronel. E aí o coronel escreveu “Cem anos de solidão”. E a utópica “pátria grande” sonhada pelo cubano José Marti entrou no mapa do mundo, no qual García Márquez, Borges, Cortazar, Vargas Llosa, Juan Rulfo, Juan Carlos Onetti, Cabrera Infante e etc. se tornaram nomes familiares.


15.


No Brasil, os modernistas de 1922 (Mário e Oswald de Andrade à frente), propugnavam por um rompimento com a norma lusitana, e que viéssemos a escrever de acordo com a nossa fala. Mas foram os romancistas de 30 – Rachel de Queiroz, Jorge Amado, Graciliano Ramos e José Lins do Rego -, que o realizaram com um grande poder de fogo. Os traços dessa geração: Rachel – o depoimento vigoroso e solidário, contra um quadro social deplorável. Jorge Amado – a extraordinária capacidade de criar personagens, de contar histórias; a linguagem desabusada. Zé Lins – a fabulação. Graciliano – o estilo.


16.


Vida que segue: João Guimarães Rosa – o grande rio que nasce em Cordisburgo, Minas Gerais, e deságua no Mississipi, onde William Faulkner fundou um território mítico e nele inscreveu a sua legenda. Os dois eram primos. E aparentados de James Joyce, mas, em relação a este, tiveram a vantagem das vastidões continentais, dos espantos de um continente que, se já não era mais o Novo Mundo, mundo ainda novo era.


E que mistérios tem Clarice?


Os dos rios que correm para dentro de si mesmos.


E era nesses rios que ela mergulhava, até as profundezas de outras audazes mergulhadoras, chamadas Virgínia Woolf e Katherine Mansfield.


17.


Quando Clarice chegou, cá estava Lygia Fagundes Telles, assentada no seu trono de rainha paulistana das Letras. Autora de um best-seller, “As meninas”, é no conto, porém, que ele se torna ainda mais admirável, como podemos conferir em “Antes do baile verde” e “A estrutura da bolha de sabão”. Lygia pertence à geração de Fernando Sabino, Autran Dourado, José J. Veiga, Antonio Callado, José Cândido de Carvalho, Rubem Fonseca, Dalton Trevisan, Murilo Rubião, Carlos Heitor Cony, os cirurgiões plásticos que fizeram as costuras finais nas extirpações, iniciadas pelo Modernismo de 22, às adiposidades da última flor do Lácio, ou seja, os barroquismos, a verborragia e o empolamento de linguagem que herdamos dos colonizadores portugueses.


18.


Minha geração encontrou a estrada da modernidade asfaltada. Da Manaus de Márcio Souza à Porto Alegre de Moacyr Scliar, e, um pouquinho depois dele, João Gilberto Noll. E todas as veredas levavam às Minas Gerais de Oswaldo França Júnior, Ivan Ângelo, Wander Piroli, Roberto Drummond, Carlos Herculano Lopes. Ao Rio de Nélida Piñon, Sérgio Sant’Anna, e do gaúcho-carioca Flávio Moreira da Costa. À Bahia de João Ubaldo Ribeiro, Marcos Santarrita e Sônia Coutinho. À São Paulo de Ignácio de Loyola Brandão, João Antônio, Raduan Nassar. Ao Paraná de Domingos Pellegrini Júnior, ao Pernambuco de Raimundo Carrero etc., etc., etc.


19.


Agora, temos mais escritores por metro quadrado do que leitores. Tanto que ficou difícil saber quem é quem. Mas todos, ou quase todos, podem ser vistos nos cadernos culturais da imprensa, nas livrarias e em mais de um milhão de blogs de tudo quanto é canto deste imenso país.







Títulos, inícios e finais de romances memoráveis.




Por Antônio Torres

Texto apresentado nas oficinas literárias Para gostar de ler (e escrever) romance, realizadas na Casa do Saber do Rio de Janeiro às terças-feiras de julho de 2009.


Imagem: www.adventistadapromessa.com.br/dijap/Palavra...


1.


Não soaria estranho, ou desnecessário, dizermos hoje que o primeiro romance moderno da literatura universal foi O Engenhoso Fidalgo D. Quixote da Mancha? Quatro séculos depois de vir ao mundo, o título de Cervantes consagrou-se de forma simplificada. Dom Quixote e pronto. Por mais (vá lá) engenhosa que tenha sido a criação original, a criatura dispensou o toque criativo do seu criador. E passou a cavalgar com suas próprias pernas através do tempo, vindo a ser memorizado sucintamente, de estalo. E mais: o emblemático Dom Quixote acabou sendo dicionarizado como um substantivo do qual derivaram alguns adjetivos. Assim:


Quixote 1. Aquele que age como Dom Quixote. 2. Pessoa sonhadora, ingênua, romântica.

Quixotesco 1. Que diz respeito a Dom Quixote, próprio ou característico de Dom Quixote. 2. Relativo a Quixote ou que envolve quixotada. 3. Fig. Diz-se do que ou de quem é generosamente impulsivo, sonhador, romântico.

Quixotismo 1. Comportamento próprio de ou semelhante ao de Dom Quixote. 2. Modo quixotesco de sentir ou agir. 3. Fanfarronice, bazófia.


Nem sempre títulos criativos se tornam memoráveis. Por exemplo: “O coração é um caçador solitário”, de Carson McCullers. Bonito, não? O romance rendeu um filme igualmente emocionante. Alguém aqui se lembra?


Vivo dizendo: “Meu reino por um título!” Umzinho assim: “Em busca do tempo perdido”, “Neste lado do paraíso”, “Suave é a noite”, “Reflexos num olho dourado”, “Balada do café triste”, “O som e a fúria” – este sacado por William Faulkner a partir de uma fala escrita por Shakespeare para Macbeth “É (a vida) uma história contada por um idiota, cheia de som e de fúria, significando nada”. Outros de Faulkner que me encantam: “Enquanto agonizo”, “Luz em agosto”. Um tal de Dee Brown saiu-se com este: “Enterrem meu coração na curva do Rio”. Só matando esse cara. Os que mais me humilham: “Memórias póstumas de Brás Cubas”, “Grande sertão: veredas”, “Cem anos de solidão”, “Jornada de um imbecil até o entendimento” (Plínio Marcos), que parece parafrasear o célebre “Jornada de um dia para dentro da noite” (Eugene O’Neill). Um caso curioso: Graciliano Ramos deu ao que se tornaria mais lembrado de seus livros o seguinte título: “O mundo coberto de penas”. Foi o editor Augusto Frederico Schimit quem sugeriu que ele o trocasse para... “Vidas secas!” Este foi na mosca. Um título que não sai dos meus ouvidos: “Um país, o coração”, do poeta gaúcho Carlos Nejar. Outro: “A República dos sonhos”, de Nélida Piñon.


Alguém aqui ficaria com inveja dos autores de títulos como “Hamlet”, “Madame Bovary”, “O vermelho e o negro”, “Crime e Castigo”, “Anna Kariênina”, “Dom Casmurro”, “Ulisses”? Agora, roamos-nos.


Em casos assim, foram as obras que fizeram os títulos.


À parte isso, quais os ingredientes de um titulo genial?


Originalidade, significação, abrangência, ritmo, cadência, imprevisibilidade. O título surpreendente, que mata a pau, é um golpe de mestre. E um golpe de sorte, claro.


2.

Criar e coçar é só começar?


“No meio do caminho da vida, tendo perdido o caminho verdadeiro, achei-me embrenhado em selva tenebrosa”.


Em seu livro “E a história começa – dez brilhantes inícios de clássicos da literatura”, Amós Oz cita a primeira frase de “O Inferno” de Dante como possibilidade de um exemplo padrão para todas as histórias, argumentando que “No meio do caminho da vida” é, mais ou menos, onde todas as histórias começam.


“Então – ele prossegue -, você se senta e se pergunta o que deveria vir primeiro; como chegar a esse début do meio do caminho? Sentando-se. Rabiscando a página. Amassando-a. Jogando-a fora. Rabiscando a página seguinte: formas, flores, triângulos, losangos, uma casa com uma pequenina chaminé, um gato pelado. Amassando outra vez. Jogando fora. [...] Na verdade, isso acontece o tempo todo, não apenas com romancistas, mas com todos os que escrevem o que quer que seja”.


“É a espera” – assim começa “Os desencantados”, romance de Budd Schulberg baseado na relação de um jovem roteirista de Hollywood, aspirante a escritor, com uma estrela cadente da literatura norte-americana, facilmente identificável como Scott Fitzgerald. O que o narrador/personagem dessa história esperava? Talvez uma idéia salvadora para o roteiro de um filme que não estava conseguindo escrever.


Não foram poucas as vezes em que Clarice Lispector se viu diante de uma máquina de escrever se dizendo: “É a espera”. Ela achava que não havia outro jeito de começar, senão esperando, esperando, esperando, até que a primeira frase caísse em seu colo. Como se, enquanto você espera, seu subconsciente trabalha a seu favor.


Mas ora, o que conta é o começo salvador que baixa nas teclas como num passe de mágica, com o poder de fazer com que se leia o romance e dele nunca se esqueça, como aconteceu com este leitor quando, ainda na adolescência, bateu os olhos na primeira página do “Dom Casmurro” e levou um choque. Foi no momento em que Bentinho confabulava sobre o passageiro ao seu lado no bonde de volta para casa. A frase: “conhecia-o de vista e de chapéu”. Isto não provocara apenas um grande impacto no jovem leitor. Parecera-lhe uma verdadeira aula de texto literário, por seu modo de dizer tão diferente do que ele estava acostumado a ouvir. E onde estava a diferença: na linguagem e estilo desconcertantes de que aquela frase era apenas um começo.


Do “Dom Casmurro” e sua Capitu passemos a “Anna Kariênina”:


“Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”.


De cara, já adivinhamos a trama que desfolha todos os lençóis da história secreta de uma nação, no caso, a Rússia do século 19. A partir de um caso de adultério, Tolstoi pôs todo aquele século num romance que recentemente ganhou no Brasil uma tradução à altura, feita pelo caro romancista e contista Rubens Figueiredo, em primorosa edição da Cosac Naify.


- Suba, Kinch! Suba, seu jesuíta execrável!


O leitor aqui voltaria a se lembrar desta fala do começo do “Ulisses” ao fazer suas pesquisas sobre o Rio de Janeiro do século 16, para escrever o romance “Meu Querido Canibal”, e se deparar com o papel ambíguo dos jesuítas no Brasil, ao tempo da colonização portuguesa. Sobretudo o do padre José de Anchieta que, em selvas e águas de som, sonho e fúria, agia com um rosário numa mão e uma espada na outra, atuando, ao mesmo tempo, a serviço de Deus, para catequizar os silvícolas, e do rei de Portugal, ao consentir que fossem exterminados, em caso de resistência à sua catequese.


- Suba, Kinch! Suba, seu jesuíta execrável!


Conheceria James Joyce a história do José do Brasil?


De Joyce a Faulkner, em “Intruder in the dust” (“O intruso”, no Brasil, ou “O mundo não perdoa”, em Portugal):


“Era precisamente meio-dia nesse domingo quando o xerife chegou à cadeia com o Lucas Beauchamp embora toda a cidade (e todo o concelho, para falar a verdade) já soubesse desde a véspera à noite que o Lucas matara um branco”.


“O rapaz estava lá, à espera. Fora o primeiro a chegar e estava preguiçosamente a fingir-se ocupado ou pelo menos inocente...”


Bom, só são uns começos, para se gostar de ler os romances de que tratam.


3.


(Personagem: figura humana fictícia criada por um autor).


Na antiga Grécia ele era épico. Um arquétipo, um modelo, como Ulisses e Aquiles. Ou trágico como Édipo Rei. Esse herói clássico estava acima dos homens comuns, por ser nobre de sangue azul, mas sujeito às vicissitudes humanas, das quais o calcanhar de Aquiles serve de exemplo. Os épicos geraram o romance. Os trágicos, o teatro.


A partir do renascimento, entra em cena o herói moderno, no papel do homem-comum, cuja nobreza está no seu caráter, nas suas ações, na sua própria condição. No entanto, o que vai se consagrar na modernidade é a figura do anti-herói, que é patético. O primeiro deles fundou a literatura moderna. Precisa dizer de quem se trata?


4.


(Diálogos: falas fictícias, que podem ser mais convincentes do que as verdadeiras).


Do conto “O fim”, de Jorge Luis Borges. Cenário: uma bodega no pampa argentino. Personagem 1. Um negro a dedilhar um violão, numa longa espera (7 anos) do personagem 2, um cavaleiro que chega, sem que se saiba qual o conflito que existe entre os dois.


“Sem alçar os olhos do instrumento, onde parecia buscar alguma coisa, o preto disse com doçura”:


- Já sabia eu que podia contar com o senhor.

O outro, com voz áspera, replicou:

- E eu contigo, moreno. Uma porção de dias te fiz esperar, mas aqui vim.

Houve um silêncio. Por fim, o negro respondeu:

- Estou me acostumando a esperar. Esperei sete anos.

O outro explicou sem pressa:

- Mais de sete anos passei sem ver meus filhos. Encontrei-os naquele dia e não quis mostrar-me como um homem que vive às punhaladas.

- Já compreendi – disse o negro. – Espero que os tenha deixado com saúde.

- Dei bons conselhos a eles, que nunca são demais e nada custam.

- Fez bem. Assim não se parecerão a nós.

- Pelo menos a mim – disse o forasteiro e acrescentou como se pensasse em voz alta: - Meu destino quis que eu matasse e agora, outra vez, põe-me a faca na mão.

O preto, como se não ouvisse, observou:

- Com o outono se vão encurtando os dias.

- Esta luz que fica me basta – replicou o outro, pondo-se de pé. Perfilou-se diante do negro e falou-lhe como cansado:

- Deixa em paz o violão, que hoje te espera outra espécie de desafio.

Os dois encaminharam-se à porta. O negro, ao sair, murmurou:

- Talvez neste me vá tão mal como no primeiro.

O outro respondeu, com seriedade:

- No primeiro não te saíste mal. O que se deu é que querias chegar ao segundo.

Afastaram-se um pouco da casa, caminhando a par. Um lugar da planície era igual a outro e a lua resplandecia. De repente olharam-se, detiveram-se e o forasteiro tirou as esporas. Já estavam com o poncho no antebraço, quando o preto disse:

- Uma coisa quero pedir-lhe antes que cruzemos ferros. Que nesta briga ponha toda sua coragem e toda a sua manha, como naquela outra de há sete anos, quando matou meu irmão.

Talvez pela primeira vez em seu diálogo, Martim Fierro tenha ouvido o ódio. [...]

E assim, numa sequência de diálogos exemplares, numa construção labiríntica, e cuja tensão se assemelha a toques sutis em fios desencapados, Borges conta o fim do mais lendário bandoleiro argentino.


5.


(Tempo cronológico-tempo psicológico: o primeiro se processa num plano objetivo; o segundo, é subjetivo. A propósito deste, é ler “Ulisses”, de Joyce, “talvez a mais fiel radiografia jamais feita da consciência humana”, na abalizada opinião de Edmund Wilson).


Faulkner cruza os dois tempos o tempo todo na primeira parte de “O som e a fúria”, que tem sua ação centrada nas oscilações da memória de um oligofrênico, que mistura os acontecimentos que vivenciou com o que vivencia, dos três aos trinta e três anos de idade. Na segunda parte deste romance encontra-se tudo o que é preciso saber sobre a relação tempo cronológico-tempo psicológico, fluxo de consciência, monólogo interior:


“Quando a sombra do caixilho apareceu nas cortinas era entre sete e oito horas da manhã e então eu já me encontrava no tempo outra vez, e ouvia o relógio. Ele era do meu avô, e quando o pai o deu para mim disse: Quentin, eu lhe dou o mausoléu de toda esperança e de todo o desejo; é mais do que penosamente possível que você irá usá-lo para adquirir o reducto absurdum de toda a experiência humana [...] Eu o dou a você não para que se lembre do tempo, mas para que possa esquecê-lo por alguns momentos e não gaste todo o seu fôlego tentando conquistá-lo. Porque nenhuma batalha se vence ele disse. Elas não são nem ao menos disputadas. O campo de batalha revela ao homem somente a sua loucura e desespero, e a vitória não é mais do que uma ilusão de filósofos e loucos”.

(Em tempo: a mais recente tradução de “O som e a fúria” (muito elogiada, por sinal), é do querido poeta Paulo Henriques Brito, que ministra um curso de formação de escritores, na PUC - Rio).


6.


Por fim, um final antológico - de Scott Fitzgerald:


“Gatsby acreditava na luz verde, no orgiástico futuro, que ano após ano surgia e se afastava de nós. Se esse futuro nos iludiu, pouco importa: amanhã correremos mais depressa, ergueremos mais os braços... Até que uma bela manhã...


E assim, barcos contra a corrente, partimos em busca de um passado que não volta”.







quarta-feira, 8 de julho de 2009

Banda de Pífano da Bela Vista

A Banda de Pífano da Bela Vista faz apresentação especial para o blog no Casamento da Rosinha.


Afinal, quantos anos vai fazer Audálio Dantas?

Por Ricardo Kotscho

Audálio Dantas é um alagoano muito supimpa, como quase todos os alagoanos, e muito amigo do escritor Antonio Torres, colaborador deste blog. Por sugestão dele, do Tote de Irineu, hoje publico este texto-homenagem do Ricardo Kotscho, publicado originalmente em seu blog "Balaio do Kotscho".


FELIZ ANIVERSÁRIO, AUDÁLIO.




Nos últimos dias, comecei a receber e-mails de amigos comuns me perguntando se não iria escrever nada sobre os 80 anos do Audálio Dantas. Como sabem, aqui no Balaio o leitor é também pauteiro.


Nem eu, que sou amigo e parceiro deste grande jornalista e cidadão desde os anos 60 do século passado, sabia da iminência de tão importante efeméride.


Sabia que Audálio há tempos tinha passado dos 70, ainda em plena e produtiva atividade, mas não que estivesse próximo de se tornar um octogenário.


Para quem não sabe ou não se lembra, ele foi o líder dos jornalistas paulistas na resistência à ditadura militar e teve papel fundamental na resistência à ditadura militar naqueles trágicos dias do assassinato de Vlado Herzog. Foi dirigente sindical e deputado federal, mas nunca deixou de ser um repórter eternamente com ânimo de principiante.


Atualmente editor da revista Negócios da Comunicação, poderia escrever milhares de caracteres sobre a sua brilhante carreira, com passagens marcantes nos bons tempos das revistas O Cruzeiro e Realidade, ou como autor de um monte de livros, mas fiquei com aquela dúvida na cabeça: ele já vai mesmo fazer 80 anos?


Achei melhor consultar primeiro sua mulher, a onipresente e dedicada Vanira, mas ela também não me ajudou muito com sua enigmática resposta:


“Você me perguntou se ele vai fazer 80 anos (no dia 8 de julho). A resposta é não e sim. E aí é melhor que ele lhe explique ou lhe confunda mais”.


No dia seguinte, Audálio resolveu desfazer o mistério escrevendo-me de próprio punho a verdadeira história sobre a sua idade.


“Pois então, resolvo a questão. Confusão desse tipo é coisa lá de cima, tá aí o Lula que não me deixa mentir.


Seguinte: lá no Tanque d´Arca, onde nasci, tinha cartório, escrivão e tudo mais, porém meu pai, homem de muito capricho, achou que para o menino ficaria melhor um registro em Maceió, portentosa capital do Estado de Alagoas.


Foi deixando, foi deixando, e quando resolveu eu já estava taludinho e, segundo várias testemunhas, muito inteligente. Merecia até estudar.


Andava pelos 7 anos e, garantiam, poderia ter um brilhante futuro na Marinha Brasileira, onde poderia estudar de graça. E foi para apressar a possibilidade de ingresso na Escola de Aprendizes Marinheiros que me botaram mais três anos nas costas.


Assim, meu caro, tenho duas idades: a oficial, no papel, e a verdadeira, mas só consta da tradição oral, familiar.


Escolha aí a que você prefere festejar. Aceito presentes em duplicidade. A conclusão desta história é: a Marinha perdeu a oportunidade de contar com a minha contribuição.

Lá eu seria, no mínimo, capitão-de-mar-e-paz. Quem sabe, até um almirante daqueles cobertos de galões e medalhas. O mais provável, porém, seria pegar uma cana por considerar legítima a Revolta da Chibata…


Taí, escolha as armas.


Do seu amigo e ex-quase marujo


Audálio”




Nota do blog: Como vocês podem ver, nem só no arraial do Junco as atrapalhadas cartoriais acontecem. Eu mesmo fui registrado um mês antes de ter nascido, conforme pode ser lido em "Carta de Apresentação", publicada aqui como "Crônicas".