Inicia-se esta arenga com a velha anedota do cidadão (chamemo-lo Cipriano ) que, honesto, trabalhador, benquisto e respeitado de todos, era um exemplo de bom cidadão na cidadezinha onde morava. Atormentava-o, porém, um temor, um medo, um pavor, para ser mais preciso. Horrorizava-se com a ideia de não ter um sepultamento digno, ou seja, com um número razoável de acompanhantes. Dizia aos quatro ventos: “Defunto sem velório é cão sem dono”. E sofria, sofria como um condenado. Foi aí que um amigo industrioso apresentou-lhe uma sugestão: “Compadre Cipriano, vamos tirar isso a limpo: você morre de mentirinha e vamos ver o que acontece”. Ideia aceita e posta em prática: o próprio compadre encarregou-se de divulgar a má notícia. Comoção geral: a cidade inteira e mais alguns forasteiros compareceram ao “velório” de Cipriano que, teso no caixão, a tudo assistia com o maior comprazimento. O compadre, ao lado do ataúde, protegia o “morto” dos olhares indiscretos e despistava os mais curiosos. O ritual se cumpria: café, cachaça, prosa moderada, louvação às qualidades morais do “defunto”. Lá pelas tantas, o compadre segredou: “Hora de levantar, compadre: já vão fechar o caixão”. Cipriano sem abrir os olhos, respondeu baixinho: “Tá maluco, compadre! Você acha que vou estragar um enterro de tal grandeza?”. E mais não disse, pois sobre ele desceu a noite com a tampa do caixão.
José Elias Arêa Leão, que tem todos os atributos do finado Cipriano, não precisou passar por experiência tão radical para provar o quanto é querido em sua aldeia. Deu-se que, na semana passada, morreu um xará do Zé Elias. Um radialista apressado, à cata de um furo, jogou no ar a má notícia que caiu como uma bomba na cabeça de todos nós. Num átimo, telefonemas, e-mails, bilhetes puseram a Chapada em polvorosa. Até a dona Maria da Inglaterra abalou-se de sua casa, na periferia da cidade, para velar e prantear o nosso Menino Maluquinho. Atônitos e consternados, todos perguntávamos: “Por que o Zé Elias?”. A pergunta se justifica: se existe alguém em Teresina que mereça ser condenado à imortalidade eterna (perdoem a redundância) é justamente ele. Setentão, continua lépido, alegre, solidário, irreverente e traquinas como convém a um menino que, para a alegria dos adultos, se esqueceu de crescer.
No fundo, o que esperávamos mesmo era um milagre. E o milagre aconteceu: lá pelas tantas, com sua gaitada inconfundível e com seu passo de pato manco, ressurgiu o Zé Elias, rindo da morte anunciada. Não foram poucos os que, a exemplo de Tomé, fizeram questão de tocar-lhe o corpo para certificar-se de que nosso menino velho continua vivo.
Já se disse, com alguma razão, que nenhum homem é maior que a sua época, mas é inegável que alguns, com seu trabalho, com seu talento, com sua presença luminosa, são capazes de tornar menos ruim a época em que viveram. José Elias Arêa Leão é um deles. Se toda unanimidade é burra, como queria Nelson Rodrigues, está explicado o porquê da ausência de capim-de-burro nos arredores de Teresina: os que amam o Zé Elias comeram tudo.
Esta crônica do Luiz Andrioli traz uma verdade que poderia ser colocada em prática. Bastava a população se articular pra isso. Não sei aí na sua cidade, mas, em Maceió, o carnê do IPTU geralmente chega na ressaca do carnaval. É uma dívida que a gente só para de pagar quando bate a caçoleta, mas, mesmo assim, os herdeiros continuam a receber o tal carnê.
Os fogos de reveillon mal pararam de estourar e já temos na porta de casa as contas do ano novo. O IPTU é uma delas. O imposto deveria garantir a manutenção dos serviços municipais, como o pavimento das ruas, creches, postos de saúde, praças bem cuidadas, etc. Porém estamos no Brasil e sabemos que nem sempre o retorno é proporcional ao investimento quando se trata de dinheiro colocado na mão dos governantes.
Lembrei-me do IPTU esses dias, ao comprar pão na panificadora aqui no meu bairro. O padeiro disse que o forno estava com problema e o pão havia perdido a qualidade. Por causa disso estava havendo desconto no preço do pãozinho. Eu paguei sem reclamar, afinal, problemas acontecem.
Taí uma ideia boa e honesta que dou para os nossos prefeitos. Nem sempre eles acertam na qualidade dos serviços. Nada mais justo que tenhamos, em alguns casos, um descontinho no IPTU. Convido os contribuintes que acompanham esta crônica a uma volta pelo bairro onde moram. Se achar um buraco na rua, ele deveria garantir um desconto no IPTU. A mesma regra seria aplicada para uma praça mal cuidada, fila no posto de saúde...
Vamos cobrar dos prefeitos o mesmo tratamento honesto que o padeiro deu aos seus clientes. Fica a minha sugestão: serviço municipal mal feito, desconto no IPTU.
Se a moda pegar, muitas prefeituras ficarão devendo dinheiro ao contribuinte.
Não é sem motivo que o nome dele está associado ao do Rio de Janeiro. Antes de contá-lo aqui, recordemos a noite em que o padre Anchieta sonhou com São Sebastião, enquanto dormia atrás das barricadas de Mem de Sá, o comandante da conquista definitiva do Rio para os portugueses, então súditos de um rei homônimo do santo perpetuado pelas estampas religiosas, em reproduções imaginárias de seu corpo crivado de flechas.
Tal imagem tornou-se emblemática da intolerância, a simbolizar o martírio dos cristãos no Império Romano, e não só na era de Pilatos. Basta lembrar que Diocleciano (Caius Aurelius Velerius Diocles Diocletianus), proclamado imperador em 284 depois de Cristo, viria a declarar o cristianismo incompatível com o poder do Estado, desencadeando a “grande perseguição” que fez mártires na Itália, na África e no Oriente, até o reinado de Constantino I - de 306 a 337 -, o convertedor de Roma à cristandade.
A história do padroeiro do Rio de Janeiro começa pelo fim. Oficial romano do século III, ao ser denunciado como cristão foi condenado às flechadas, das quais sobreviveu. Mas não resistiu a outras torturas. Morreu flagelado no fogo. No Brasil, tornou-se um santo popular, identificado a Oxóssi nos cultos afro-brasileiros, quer a Igreja Católica considere (melhor dizendo, tolere) a nossa diversidade cultural ou não.
Foi Estácio de Sá quem acrescentou o nome de São Sebastião ao do Rio, ao fundar a cidade, no dia 1º de março de 1565. E o fez em honra a outro Sebastião, nascido em Lisboa em 1554, e rei desde os três anos de idade, já chamado de O Desejado, por ter vindo ao mundo depois da morte do seu pai, D. João. Ele só assumiria o poder em 1568, ou seja, três anos depois de ser homenageado à distância, no sopé do morro Cara de Cão, vizinho do Pão de Açúcar, por um capitão do exército da sua mãe, a regente D. Catarina, incumbido de expulsar os franceses, e liquidar a Confederação dos Tamoios, os maiores entraves à ocupação lusitana nestas paragens.
Dom Sebastião acabou tendo um trágico destino. Sua obstinação pelas conquistas de territórios africanos, e de entrar pessoalmente em combate, o levou a desaparecer em Alcácer-Quibir, no ano de 1578. Portugal viveu séculos à espera da sua volta. A expectativa desse impossível retorno gerou um estado de espírito passadista, o sebastianismo, de longa duração e alcance, pois chegou a este lado do Atlântico, influenciando o movimento insurrecional anti-republicano que provocou a Guerra de Canudos, entre 1894 e 1997.
Os historiadores também fizeram de Dom Sebastião um tipo inesquecível. É um dos reis portugueses mais estudados. E o poeta Fernando Pessoa não lhe negou verso, no papel de conquistador falhado, a desfazer a eterna ilusão do seu regresso:
Louco, sim, louco porque quis grandeza. Qual a sorte a não dá. Não coube em mim minha certeza; Por isso onde o areal está Ficou meu ser que houve, não o que há.
Voltemos a São Sebastião. Na noite de 18 de janeiro de 1567, José de Anchieta sonhou com ele, a bordo de um dos navios comandados por Mem de Sá, que, ao amanhecer do dia seguinte, iria atacar – junto com seu sobrinho Estácio -, os redutos do cacique Aimberê, na aldeia de Uruçumirim, hoje o bairro do Flamengo. No sonho de Anchieta, São Sebastião aparecia no meio da tropa, matando um índio atrás do outro. Como em dois dias de batalha dos cristãos não sobrou um único canibal, o apóstolo do Brasil exultou com a premonição.
Tropecei em José Teles zapeando por aí, já faz um tempinho. Li algumas opiniões dele sobre música e gostei muito. Descobri depois que tinha uma coluna de crítica musical no Jornal do Commercio de Pernambuco e, volta e meia, ia lá, xeretar, já que minha vida sempre foi muito ligada a música, por gostar apenas, por ser fã.
Minha opinião é de que existem dois tipos de música: a boa e a ruim, mas há também uma infinidade de gêneros para serem apreciados/consumidos e, como fã, me interesso também pelas impressões e opiniões de outras pessoas, principalmente as que me acrescentam conhecimento, caso dos textos dele. Visitava o site para xeretar mesmo. Lia e me divertia com seu humor inteligente, com a leveza e por vezes a fina ironia com que descrevia personagens, fatos, acontecimentos ligados ao showbisness. Não era constante, mas de tempos em tempos ia ao JC online, devorava as crônicas postadas, acho que aos domingos, numa coluna chamada CURTO E GROSSO que virou coletânea também pela Bagaço, salvo o engano. SALVO O ENGANO (se não me engano), aliás, é uma das expressões favoritas de Teles... Diz que vive salvoenganando-se...
E não faz muito tempo alguém me enviou um email repassando um texto de sua autoria como sendo de outro autor. Não era a primeira vez nem a última, infelizmente, que eu recebia textos assim e mais uma vez fiquei danada com o fato, imaginando porque há pessoas tão descuidadas/desrespeitosas, que recebem textos, não confirmam a autoria e vão reproduzindo inverdades, textos mutilados, autorias retiradas e substituídas com a maior desfaçatez.
“Tem rapariga aí?” é a pergunta de abertura da crônica “A música dos valores perdidos”, texto que fiz questão de reproduzir com a autoria restaurada na minha página, é uma das tantas crônicas deste livro leve, divertido e instrutivo deste jornalista cultural que, aliás, tem uma obra respeitável publicada pela Bagaço.
São 25 livros que tratam principalmente de boa música e se você ficar curioso em “Quem goitana foi Ellie Greenwich”, José Teles diz e diz outras “cositas más” sobre música, curiosidades sobre personalidades, shows, lançamentos, todas muito interessantes. É mesmo um mergulho no universo musical, leitura divertidíssima para as minhas férias que gostei e recomendo.
Serviço
Livro :“Quem goitana foi Ellie Greenwich – crônicas pop online” – José Teles, Editora Bagaço, 2009
“Quem goitana foi Ellie Greenwich – crônicas pop online” é um apanhado dos artigos que o jornalista publica a dois anos no JC Online, na coluna TOQUES DIGITAIS. São crônicas musicais que ele escreve "sem compromisso com notícia, por diversão", como relata o autor. Entre os textos, histórias dos bastidores de shows, comentários sobre discos, percepções curiosas sobre a música de décadas atrás.
JSA estacionou o carro na Rua Marechal Floriano, transversal da Avenida Araújo Pinho, bairro do Canela, por volta das dez horas da manhã. Abriu o porta-malas, retirou o equipamento de filmagem, testou câmera e microfone e, ao dar os primeiros passos em direção da passarela do Campo Grande para cumprir mais uma jornada da cobertura do carnaval baiano, percebeu que, em um carro estacionado ao lado do seu, um rapaz tentava sair do lado do carona com grande dificuldade, mal podendo se sustentar nas próprias pernas. Do banco traseiro saíram duas mulheres e um garoto portando umas faixas. JSA se aproximou e ofereceu ajuda. Reconheceu o rapaz que tinha dificuldade motora:
– Acho que lhe conheço. Você não é o Cacik Jonne, que era do Chiclete Com Banana?
– Sou eu mesmo.
Não. Estava enganado. Não poderia ser ele. O que ele via e ajudava a andar era algo como um paraplégico na tentativa de andar sem sua cadeira de rodas. Cacik Jonne era um rapaz alegre, forte, jovial, um dos ídolos da banda Chiclete Com Banana, e demonstrava tenacidade. Ao menos era assim a imagem que a sua câmera capturava em todos os carnavais ao passar pela pista do Campo Grande. Ali, naquele instante, ele via um rapaz amargurado, coração ferido, lágrimas disfarçando um olhar doído, triste. Não, decididamente havia algum engano.
– Acredite, sou eu mesmo, amigo. Há longos anos que venho lutando contra essa doença que consome os meus movimentos e se chama de “ataxia cerebelar degenerativa”.
A ataxia cerebelar degenerativa é a perda da coordenação muscular e motora por desordem no cérebro. Pode atacar o coração e, geralmente, ocasiona cegueira. Era um milagre ele ainda não ter perdido a visão.
– Surgiu uma luz no fim do túnel, um transplante de células-tronco embrionárias, custa caríssimo e a banda Chiclete Com Banana se nega a custear o tratamento ou a me indenizar pelos vinte anos em que lutei para colocar a banda no pedestal em que hoje se encontra. A história da banda é a minha história, ou vice-versa. É por isso que hoje resolvi vir pra rua protestar, juntamente com as minhas duas irmãs e o motorista, que era do Chiclete e foi demitido porque ficou do meu lado e agora trabalha pra mim, de graça.
Cacik Jonne entrou para a banda Chiclete Com Banana na sua formação inicial, a convite de Missinho. Era menor de idade, dezesseis anos, e foi preciso a autorização do seu pai para poder subir em trio elétrico. Em 86, em plena micareta de Feira de Santana, por desavenças internas, Missinho saiu da banda, deixando-a sem o seu cantor e líder. Bell e Cacik Jonne seguraram o pepino e não deixaram a peteca cair. Superaram as expectativas e ninguém notou a ausência do antigo líder, a não ser pela mudança no repertório e na dialética poética musical, tempos depois. Missinho seguiu carreira-solo e, posteriormente, foi engolido pela axé music que surgiu como um rolo compressor, esmagando tudo que não fosse um lê-lê-lê, laiaiá. E a banda Chiclete Com Banana, tendo um garoto que desfilava com cocar de cacique tocando sua guitarra eletrizante pelas ruas do Brasil, brilhou tal qual estrela de primeira grandeza.
JSA, sensibilizado, conduziu Cacik Jonne até os camarotes de tevê e pediu para que eles o deixassem permanecer no camarote, o que foi negado. JSA esbravejou:
– Hoje, só porque o rapaz se encontra nesta condição, vocês se negam a recebê-lo. Quatro anos atrás vocês ficavam se babando quando ele passava em cima do trio do Chiclete. Isso é uma desumanidade!
Viraram as costas para a passarela da apoteose do carnaval baiano e, desolados, retornaram para a Avenida Araújo Pinho, no Canela. No caminho, encontraram o pioneiro de programas de auditório da televisão baiana, Valdir Serrão, também conhecido como Big-Ben, nome de seu programa de auditório nos idos dos anos sessenta/setenta, responsável pela projeção de Raul Seixas no cenário nacional, ainda como “Raulzito e Seus Panteras”. Valdir Serrão estava com um trio elétrico independente e iria desfilar pela Avenida Sete cantando Raul Seixas, acompanhado pela banda itapagipana “Seqüestro Relâmpago”. Alda, irmã de Cacik Jonne, narrou o drama do ex-integrante do Chiclete Com Banana e, sem pestanejar, Valdir Serrão ofereceu o trio, mandou colocar as faixas de protesto, e disse que, no Campo Grande, em frente às câmeras, entregaria o microfone a ele, que poderia desabafar suas mágoas.
O trio estava programado para desfilar após a passagem do bloco “Apaches do Tororó”. Um problema técnico impediu que tal acontecesse. O bloco “Internacionais” entrou na passarela com Margareth Menezes arrastando multidões. Ivete Sangalo, puxando “Os Corujas”, nem esperou que a equipe de limpeza fizesse a faxina da passarela: invadiu e levantou poeira.
Valdir Serrão abriu o som e pediu explicações aos coordenadores do carnaval. Fora garantido que depois que o bloco “Internacionais” deixasse a passarela, ele poderia desfilar. Porém tal não aconteceu. Deram-lhe a palavra que, depois da Ivete Sangalo, ele entraria na Avenida, levando o protesto de Cacik Jonne à frente do “Camaleão”, que desfilaria depois. A emenda seria melhor do que o soneto. Seria.
O bloco “Camaleão” usou da mesma estratégia do “Os Corujas”, entrando na passarela ainda com metade do bloco da Ivete Sangalo dentro da pista. Não havia como Valdir Serrão passar.
De cima do trio de Valdir Serrão, Cacik Jonne viu a banda Chiclete Com Banana entrar na passarela. Seus olhos marejaram uma tristeza profunda e infinita e todas as dores do mundo pareciam refletir no seu olhar. O seu estado físico era nada, se comparado à sua dor moral, à sua angústia incontida de se ver impotente para participar daquela festa que ele ajudou a construir. Quatro anos antes ele estava lá, sorriso alegre no rosto, esbanjando energia, tocando para animar a multidão, foliões do Camaleão e foliões pipocas que acompanhavam a banda, aos milhares. Câmeras e câmeras disputavam o seu close. Dezenas delas, transmitindo para o Brasil e para o mundo, as mesmas que hoje lhe negavam o direito de mostrar a sua dor.
O universo conspirava contra Valdir Serrão. Depois de receber autorização para entrar na rabada do “Camaleão”, os músicos da banda “Seqüestro Relâmpago” tomaram posição e, ao fazerem o teste de som, uma surpresa: não havia som. Inexplicavelmente ocorreu uma pane no sistema de operação do som e todos, desolados, guardaram seus instrumentos; cabisbaixos, desceram do trio, inconformados com a desdita.
Cacik Jonne permaneceu em cima do trio elétrico. O Ara Ketu estava posicionado atrás do trio de Valdir Serrão e, para poder desfilar, seria preciso abrir alas para o trio elétrico quebrado. E só havia um caminho de passagem: a passarela do Campo Grande e a metade da Avenida Sete, até a Piedade, onde seria possível tirar o caminhão do roteiro dos blocos.
Assim, uma hora depois, o caminhão do trio elétrico, em silêncio, abriu caminho em cortejo fúnebre de quarta-feira de cinzas em pleno domingo de carnaval. A multidão ruidosa do circuito carnavalesco aplaudiu solidária à imagem de desespero e dor contida na vaga expressão daquele que, por vinte carnavais, fez balançar o chão da Avenida Sete em alucinantes acordes de frevos, marchinhas e depois, axé music.
Sustentado pelas irmãs Andiara e Alda, a sua odisséia física era consumida por uma dor visível e angustiante: a dor moral que somente aqueles que se viram abandonados pelos amigos conhecem a agudeza e a contundência profunda de suas estocadas no coração e a desfiguração irreparável que provoca na alma de quem a sente.
Durante alguns anos, tive um carrinho peba, ronceiro, sestroso que, justo por esses atributos, ganhou a alcunha de “jumentinho”. Vez que outra, em momento de maior necessidade, o ordinário me deixava na mão. Ainda assim, na hora de me desfazer do condenado, senti uma pontinha de tristeza. Como o carrinho era azul, julguei ser o motivo do apego. Não era. Na verdade, o que me ligava ao caranguinho era a placa: LVO – 0564. No desenrolar dessa arenga, vocês entenderão.
Dia de Reis, no Shopping da Cidade, eu participava, com vivo entusiasmo, da festa organizada pelo professor Vagner Ribeiro. De repente, durante a apresentação do Reisado de Mãe Feliciana, um dos mais antigos de Teresina, fui abordado por um cidadão humilde, idade inescrutável, com aquele ar de quem não foi acariciado pela vida. Maneiroso, pediu licença para aproximar-se, elogiou a iniciativa da festança (lembram-se daquela sensação do álcool na pele antes da picada da agulha?) e gaguejou: -Professor, eu gosto muito de reisado; sou do interior e acompanhava essa brincadeira quando era menino... Preparei-me para a facada. - Parei pra apreciar a brincadeira, deixei minha bicicleta ali na porta, com minhas ferramentas na garupa e veja o que sobrou dela! Com ar compungido, exibiu o arco de um cadeado pequeno, o arco sem o cadeado, naturalmente.
– Veja o senhor: a gente para pra assistir uma festa de santo e vem um malfazejo e leva o pouco que a gente tem... Agora tô aqui precisando de uma passagem pra voltar pra minha terra... Antes de cair no choro, o que me estragaria a maquilagem, saquei os caraminguás que trazia no bolso e entreguei-lhe. Num átimo, o cidadão soverteu-se na multidão. Com seus botões, deve ter dito: engabelei mais um otário...
O ruim dessa história é saber que está sendo depenado e não conseguir safar-se. Certa feita, em Salvador, resolvi conhecer a tão decantada Lagoa do Abaeté. Bruta decepção! Na verdade, o trem não passa de um barreiro escuro, cercado de areia branca. Nem tive tempo de curtir meu desapontamento. Fui encurralado por um enxame de ciganas, todas devidamente caracterizadas, com aquela prosa preguiçosamente envolvente: “com azeite de dendê, não vai doer nada,meu rei” ... Tentei vãmente desvencilhar-me da horda que, como hienas famintas, me cercavam por todos os lados. Uma me falou de “uma loura maldosa que só quer o seu dinheiro”; a outra, de “um sócio que está lhe roubando”, etc. Quando me libertaram, eu estava literalmente na lona. Retiraram-se cantando uma toada alegre e, naturalmente, comemorando a féria conseguida à custa de mais um otário...
Ao longo da vida tem sido assim: pressinto a facada, mas não consigo evitá-la. Aparvalhado, acovardado, deixo-me explorar sem reação como uma criança indefesa.
Antes que me perguntem onde a placa do carrinho entra nessa história, lembrem-se das letras LVO. Pois é: um amigo gozador decifrou o enigma com a mais absoluta propriedade: “Lá Vai o Otário”. Como diria meu irmão mais lúcido, cada um para o que nasce...
Em priscas eras, vivia no Rio de Janeiro um povo festeiro, mas também chegado a uma guerra. Acabou sendo varrido do mapa nas batalhas de 1565 e 1567, que resultaram na fundação da cidade e na sua conquista definitiva pelos portugueses, quando não sobrou uma única cabeça de índio para contar a história. No entanto, devemos a esse velho povo o gentílico carioca, pronunciado pela primeira vez num dia qualquer do ano de 1531, quase três décadas depois de o navegador Gonçalo Coelho, a serviço do rei de Portugal, D. Manuel I, o Venturoso, e com o florentino Américo Vespúcio a bordo – aquele que deu o nome ao continente americano -, haver feito a descoberta do Rio.
Os primeiros europeus a darem com os seus costados nestas águas de sonho, som e fúria, não viram a cor do que procuravam: o ouro. Só avistaram índio, papagaio e pimenta, o que já estavam fartos de ver, desde o Rio Grande do Norte, onde batizaram o primeiro acidente geográfico em que encostaram com o nome de Cabo de São Roque, porque era o dia desse santo. Arribaram para o Sul, indo até a Patagônia. Vinte e nove anos à frente, um certo capitão Martim Afonso de Souza desembarcou a sua tropa na praia do Flamengo, que então se chamava Uruçumirim. As mulheres da aldeia esfregaram as mãos e lamberam os beiços:
- Oba! A nossa comida vem andando até nós!
Os seus homens ficaram atentos a todos os movimentos dos recém-chegados. Mas não foi logo de cara que o tacape cantou na moleira deles. Deram-lhes um tempo. Os navegantes lusos souberam aproveitá-lo. E construíram uma ferraria para conserto de navios. Os indígenas acharam a construção muito engraçada. “Carioca, carioca!”, exclamaram, às gargalhadas. O que significava isto? Casa de branco. Mais tarde, carioca passaria a designar um rio que vinha do Cosme Velho e desaguava por ali onde é hoje as confluências das ruas Paissandu e Barão do Flamengo - e também os habitantes da cidade.
Ao levantar acampamento para ir fundar o povoado de São Vicente, no litoral de São Paulo, Martim Afonso deixou alguns de seus comandados, em missão exploratória. Mal sabiam eles que estavam sendo entregues, de mão beijada, aos temíveis canibais, que iriam lhes dar combate, para impedi-los de adentrar a vida ardente da imensa mata. Foram aprisionados e devorados.
Como marinheiros de primeira viagem, aqueles portugueses desconheciam as convenções de guerra nessas terras ignotas. Perdê-la, significava ir para o sacrifício. E este se fazia em festa, numa comemoração espetacular de uma vitória no campo de batalha, que durava muitas horas. Cantava-se, dançava-se, comia-se à tripa forra e enchia-se a cara com uma birita extraída do milho, que se chamava cauim.
Todas as tribos amigas, das aldeias próximas às mais distantes, eram convidadas. Assim, a festança atraía um público de mais de quatro mil participantes. Os folguedos terminavam com um banquete. De carne humana.
Os rituais canibalísticos eram a celebração da coragem do inimigo vencido. Ao devorá-lo, os vencedores estariam recuperando as energias despendidas nos combates. Os prisioneiros deixavam-se sacrificar de crista erguida. Questão de honra. Todos se sujeitavam ao tacape corajosamente, dizendo:
- Os meus me vingarão!
Isso dava sentido à execução e valor à carne do executado.
Os tupinambás, o velho povo do Rio de Janeiro desde milênios antes de os brancos chegarem, costumavam tratar as suas vítimas com algumas formalidades. Primeiro, os vencidos capturados passavam por um período de engorda e cuidados especiais, como o oferecimento de mulheres. Depois, eram colocados no centro de um círculo, para participarem dos ensaios das cantorias para a grande cerimônia já em preparação. Em seguida, eram interrogados, respondendo às perguntas com altivez. Exemplo:
- Sim, como convém a homens corajosos, partimos com o fim de aprisionar e comer vocês. Agora, conseguiram vencer e nos aprisionar, mas isso pouco importa. Homens valorosos morrem na terra de seus inimigos.
Quando chegava o grande dia, os prisioneiros enfeitavam-se de plumas como os outros, bebiam, cantavam, dançavam e, amarrados ao meio por uma corda, desfilavam por toda a aldeia, jactando-se de suas proezas no passado. As mulheres ofereciam-lhes pedras, exclamando:
- Vinguem-se!
Eles atiravam as pedras sobre a multidão. Isso fazia parte do programa da festa, da qual o carrasco não participava. Ficava concentrado, longe da fuzarca, aguardando o momento de ser chamado para cumprir a sua tarefa de justiceiro, com uma porretada de tacape na cabeça dos sacrificados.
Para os portugueses, os códigos de honra indígenas significavam apenas selvageria. E tremiam nas bases quando eram apanhados. Por isso os guerreiros tupinambás os chamavam de covardes. Mas não dispensavam a carne deles em seus repastos. Cunhambebe, o mais temido de todos os caciques, ficava triste quando não tinha um braço ou os dedos das mãos de um português para degustar.
A ironia da história (se tivesse sobrado índio para contá-la) é que foram os que eles achavam covardes os que acabaram vencendo a guerra, a ferro e fogo, no histórico (e abominável) genocídio de 1567, quando se apoderaram definitivamente de um território que lhes deu muito trabalho para conquistar. E o fizeram coalhando o mar de sangue – daí o nome da Praia Vermelha -, cortando as cabeças dos cadáveres e enfiando-as em estacas, num outeiro que batizaram como “da Glória”, exultantes pela vitória, conseguida graças ao poder dos seus canhões, muito maior do que os das flechas e tacapes dos nativos.
Eis o destino do Rio: em festa ou em guerra. Desde o tempo do carnaval dos canibais.
Interrompo minhas férias literárias para escrever aos navegantes foliões que, por uma feliz casualidade ou propositado planejamento, irão passar o carnaval em Salvador, capital dos baianos e das baianas, quer sejam como estreantes, quer sejam como veteranos, mas que ainda não conhecem todos os prazeres momescos atrás, ao lado, ou à frente do trio elétrico. Sabendo se conduzir no meio da multidão, o carnaval baiano é o mais tranqüilo e seguro do mundo.
A folia é dividida em três circuitos: Batatinha, Dodô e Osmar. O circuito Batatinha envolve o Centro Histórico (Praça Castro Alves, Praça Tomé de Sousa - onde fica a parte alta do Elevador Lacerda – até o Largo do Pelourinho); O circuito Osmar é o do Campo Grande e o Dodô do Farol da Barra a Ondina. Para quem não sabe, Batatinha foi um compositor baiano muito ligado a ACM e talvez por isso seja o grande homenageado; Dodô e Osmar foram os inventores do trio elétrico e é mais do que justo terem seus nomes eternizados na folia. Mas já há uma corrente muito forte defendendo a mudança para Ivete Sangalo e Chiclete Com Banana.
O circuito Batatinha é indicado para quem gosta do carnaval das antigas e existem várias opções, do frevo ao reggae, do samba à axé music. A Praça Castro Alves, a partir deste ano, será a desconcentração, o fim de linha dos blocos do circuito Osmar, cujo início se dá no Campo Grande e descem a Avenida Sete de Setembro. Nesse ponto fica o camarote do Olodum, a preços módicos, porém sem nenhuma regalia, a não ser o privilégio de se ver todos os eventos desse circuito que são obrigados a iniciar, passar ou terminar na Praça Castro Alves. Também há barracas de bebidas instaladas mais acima, onde trios elétricos fixos animam os foliões.
Na Praça Tomé de Sousa (topo do Elevador Lacerda) há palco fixo em frente à Prefeitura, com revezamento de atrações individuais e bandas; no Pelourinho, bandinhas de frevo e marchinhas animam o carnaval, circulando do Largo do Pelô (onde fica a Fundação Casa de Jorge Amado) ao Terreiro de Jesus. No ano passado aconteceu uma coisa interessante: Edna e eu brincamos atrás de uma bandinha que tocava um frevo muito gostoso. Depois descobrimos que era um bloco de evangélicos. Na Praça da Sé há palco para o reggae e o samba e também apresentações avulsas, não oficiais. No Terreiro de Jesus há várias barracas de bebidas e petiscos à disposição do folião, mas o preço cobrado no Pelourinho é sempre maior que nos outros lugares. No carnaval passado a latinha de cerveja custava dois reais, enquanto que, ao lado, na Praça da Sé, podia se comprar por um real.
No final da tarde da segunda-feira, no palco montado em frente à Prefeitura, na Praça Tomé de Sousa, acontecem o desfile e concurso de fantasia gay. Para aqueles que saem de casa e deixam o preconceito atrás da porta, é uma boa distração enquanto se descansa os pés e molha a garganta numa loira suada nas inúmeras barracas ao longo da praça. Ainda se tem uma visão privilegiada da Baía de Todos os Santos e a opção de descer o Elevador Lacerda e visitar o Mercado Modelo. Se não quiser enfrentar a fila de subida, que pode levar mais de hora, o ponto de ônibus fica em frente à Capitania dos Portos, cem metros adiante, e, por dois reais, você escolhe descer no Campo Grande, Barra ou Ondina. Ou voltar pra casa ou hotel.
O circuito Osmar é o principal do carnaval. A abertura se dá na quinta-feira, com a entrega simbólica da chave da cidade ao Rei Momo, cerimônia acompanhada pelo trio elétrico de Armandinho (o Dodô e Osmar). De quinta a sábado acontece o carnaval dos chamados blocos alternativos, que estão ficando cada vez mais concorridos, tanto pela acessibilidade financeira quanto pelas atrações. Armandinho, Dudu Nobre, Jorge Aragão, Gerônimo, Lazzo, Beth Carvalho, Ara Ketu, Olodum, Ilê Aiyê, etc., etc., etc. Foi assim no ano passado. Esperamos que este ano seja melhor ainda.
No domingo, às 11 horas, desfila o Apaxe de Itororó, seguido de blocos infantis e de cadeirantes. A partir das 13 horas, começa o carnaval oficial. O primeiro a desfilar é Os Internacionais; depois, Os Corujas, seguido do Camaleão, do Eva, das Muquiranas e tantos outros, capitaneados pelas atrações do “Axé Music “, que não vou citar quem são. Por volta das vinte horas acaba o desfile de blocos de trio e começa o de afoxés e afros, que leva a noite toda.
O desfile consiste em passar pela passarela do Campo Grande, se apresentar em quarenta minutos, e ganhar a Avenida Sete até a Praça Castro Alves. São quatro quilômetros do início ao fim, percorridos em marcha de baiano, em até cinco horas, caso não haja engarrafamento de trios na Avenida.
Enquanto o Rei Momo abre o carnaval na Avenida, no circuito Dodô acontece o chamado carnaval alternativo, onde a nata da axé music se faz presente. Como essas estrelas, de domingo a terça, desfilam no Campo Grande, durante o dia, o carnaval da Barra fica desfalcado de seus ídolos e somente depois das dez horas da noite é que começa a melhorar com a canja de alguns, subindo nos trios alheios ou puxando seus próprios blocos. O início se dá no Farol da Barra e o cortejo segue até Ondina, onde acontece a dispersão. São quatro quilômetros, percorridos entre três a quatro horas.
Na segunda-feira vale a pena sair no Mudança do Garcia, um bloco fundado pela esquerda dos anos setenta, e que continua irreverente e crítico político tal qual seus primeiros anos. Ele sai às 14 horas do início da Rua Leovegildo Filgueira (paralela ao Teatro Castro Alves), fim de linha do Garcia, e se dispersa logo depois de atravessar a passarela do Campo Grande. Não há cordas, nem trio elétrico, nem carro de apoio. Há apenas carroças e bandinhas de frevos, marchinhas e grupos de samba, alguns em mini-trios.
Quem sai em bloco só vê o carnaval do seu bloco. Ou seja: quase nada. O bom é curtir um pouco de tudo, seguir ao sabor dos acontecimentos, parar um pouco em cada canto. Tanto se pode ver o cavaquinho endiabrado de Armandinho, como o frevo de Moraes Moreira na Praça Castro Alves. Ou pegar quarenta minutos de show de Caetano Veloso, Gilberto Gil e Margareth Menezes em cima de um trio. Mesmo porque, brincar em bloco custa caro e os mais procurados por causa de suas estrelas são os mais enrolados no custo/benefício. Esses cantores e cantoras só se esmeram quando enxergam uma câmera de tevê. Longe delas, enrolam o quanto podem, principalmente os muito famosos. No ano passado eu cronometrei uma delas: em quarenta minutos só cantou duas músicas. O resto foi só falação.
Todo o circuito é coberto por câmeras monitoradas pela polícia, mas mesmo assim evite sair sozinho, transitar por locais ermos e ruas escuras. O lugar mais violento do carnaval é o final do circuito em Ondina, talvez porque os blocos só chegam lá quando é de madrugada e o folião está cansado e com reflexos reduzidos. Não saia com documento original, relógio, talão de cheque, cartão de crédito, telefone celular e divida o dinheiro em vários bolsos, para não chamar a atenção. Se o ladrão roubar um, sempre restará algum. Evite também o empurra-empurra dos blocos, principalmente os que arrastam multidões de foliões pipocas por causa do ritmo pesado, tais quais Chiclete com Banana, Harmonia do Samba e Psirico.
No mais, se você for pra lá e não for sair atrás do Chiclete ou Psirico, há uma grande chance da gente se encontrar.
A poesia me salva Do abismo. Da desesperança. É minha trincheira, Minha bandeira desfraldada Ao vento,(...) Sobre Poesia – Edna Lopes
Desde menina acredito que qualquer pessoa merece a felicidade e merece o amor, desde que lute por ele. Acredito porque sempre li os poetas e nunca duvidei da verdade da poesia. Ao ler um poema, meu mundo mudava. Nem compreendia o que lia, mas me sentia tocada na alma por essa forma de linguagem tão inusitada naquele universo de menina da roça. No princípio, li Francisca Julia, Casimiro de Abreu, Castro Alves, Olavo Bilac, Gonçalves Dias... Lia e decorava para dizer em voz alta, pois parecia música, aos meus ouvidos.
Lembro de quando li pela primeira vez um poema de amor. Nossa... Fiquei maravilhada! Devia ter uns 11 anos e saboreei cada palavra buscando um significado que nem sabia qual era: “(...) TE AMO: E AO TE AMAR ASSIM VOU CONJUGANDO OS TEMPOS TODOS DESSE AMOR, ENQUANTO SEGUE A VIDA, VIVENDO, E EU, VOU TE AMANDO... (...) TE AMAR: É MAIS QUE UM VERBO É A MINHA LEI, E É POR TI QUE O REPITO NO MEU CANTO: TE AMEI, TE AMAVA, TE AMO E TE AMAREI!” o autor era JG de Araújo Jorge, num livro encalhado na velha estante da escola, lacrado ainda. Foi realmente um achado. Depois me apaixonei por Vinícius de Moraes, paixão que perdura até hoje e mais um pouco descobri Drummond, Manuel Bandeira, Cecília Meireles, Jorge de Lima, Quintana e tantos, tantos mais.
Nas aulas de literatura brasileira, conheci as escolas literárias: Barroco, Arcadismo, Romantismo, Realismo, Naturalismo, Parnasianismo, Simbolismo, Modernismo, Pós Modernismo... Era uma aluna tão curiosa quanto voraz: mal descobria um novo autor que me interessava lá estava eu na biblioteca fuçando tudo que achava dele. E foi assim que descobri Neruda, Camões, Otávio Paz, Fernando Pessoa e seus heterônimos, Bertolt Brecht, Maiakóvski, Florbela Espanca, Baudelaire, Rimbaud e tantos outros. Conheci também uma plêiade de gênios que fazem poesia em prosa: os cronistas, mas aí já é outra história.
Aprendi muito com cada poeta que li. “Vivi” todas as fases: poesia panfletária, poesia marginal, poesia clássica, poesia erótica, poesia regional, universal... Poesia para todos os gostos e tempos de vida. Em todas, o reconhecimento do poder da palavra dita para encantar, embelezar, denunciar, anunciar, se fazer vida.
No cibermundo, um mundo encantado de possibilidades. Tanta gente maravilhosa que me encanta, que me deixa feliz em saber que a poesia é parte da vida, do sonho cotidiano, do prazer de ser quem é. Gente com pretensão apenas de ser gente. Aprendentes da vida e do sonho de se fazer poeta, mesmo quando a vida diz NÃO. Sem falar nas maravilhas dos clássicos que reencontro, nas surpresas, nas novidades que jamais saberia sem esse auxílio luxuoso da rede.
Um destaque especial para as brasileiras Adélia Prado e Cora Coralina. Estas são as minhas mestras mais que especiais: trouxeram-me um mundo com a visão especial do feminino, do sagrado, das corriqueiras vivencias cotidianas. Seria capaz de citar mais de uma centena de mulheres poetas de quem sou fã, com quem aprendo a olhar o mundo de forma mais terna e sensível. Olhar para além do que a visão fotografa e a emoção traduz.
Ler poesia, desde que sou leitora, é a minha principal e mais prazerosa fonte de reflexão, de diversão. Um vício mesmo. Ler um poema é me permitir acariciar a alma com dedos de nuvem, alimentar meus sonhos, minhas fantasias, iluminar minha vida, consolidar meus afetos. Aprendo, de verdade, a ser mais gente. Aprendo a amar mais a vida, a perceber mais meu semelhante com cuidado, carinho e respeito na forma com que se apresenta. Aprendi/aprendo com Mario Quintana algo fundamental que, ao meu coração, soa como um mantra: “Tudo já está nas enciclopédias e todas dizem as mesmas coisas. Nenhuma nos pode dar uma visão inédita do mundo. Por isso é que leio os poetas. Só com os poetas se pode aprender algo novo.”
Esse também é meu jeito de ler e viver a vida. O olhar da poesia é, definitivamente, meu modo de ser e estar no mundo e seria pretensão da minha parte querer ser compreendida de cara, aceita por isso. Não me incomodo nem um pouco com a opinião de quem acha isso romantismo exacerbado, estéril. Assumo que me faço musa (intrusa) de cada poema de amor que leio, protagonizo as tramas, os dramas, torço, sofro, vibro, tenho raiva, me indigno e, por vezes me emociono às lagrimas com cada imagem lida.
Continuo lendo os poetas e sei que lerei muitos, vida a fora. Sei que falam sério quando dizem da dor, da tristeza, da alegria, da paixão e da certeza do milagre do amor na vida vivida e/ou sonhada. Falam sério quando criam vidas, personagens, mesmo que os sentimentos aflorados no texto não tenham nada a ver com a vida de quem o escreveu por isso continuo acreditando no amor que leio, no amor que vivo sem medo, sem tristezas, com determinação.
Sempre me digo que, ao modo de Maiakóvski sou toda coração e agradeço a possibilidade de poder conduzir minha vida, absorver em minha alma a beleza e a emoção das prosas e versos que leio pois minha alma nunca duvidou da sinceridade da poesia e nem da felicidade que é viver o amor em sua inteireza e plenitude. Sempre me digo: Eu mereço! Ao ler um poema, minha alma brinca de ser feliz.
Há trinta e três anos, por minha conta e risco, arrebanhei um pequeno grupo de jovens (Paulo Machado, Rogério Newton, Fernando Costa, Alcide Filho e Margô Coelho), formei uma trupe mambembe e embrenhamo-nos pelos sertões do Piauí. Objetivo: ver, ouvir, ensinar, aprender, conviver. Amontoados num velho fusca verde-sonho, fomos a Oeiras, Floriano, São Raimundo Nonato e José de Freitas. Por falta de dinheiro para a gasolina do fusca, arquivamos o sonho. À época, nenhum de nós sabia que estava lançando ali as sementes do projeto A Cara Alegre do Piauí. Pouco tempo depois, eu e o Paulo Machado passamos a ministrar cursos de literatura piauiense para professores no interior do Estado. Quando Elias Arêa Leão assumiu a Secretaria de Cultura do Piauí, montamos uma trupe bem mais encorpada e voltamos a mambembar pelos sertões. Finalmente, em 97, na cidade de Parnaíba, o poeta e professor Fernando Ferraz batizou a cabroeira com o nome de A Cara Alegre do Piauí, usando um argumento irrefutável: “Há séculos, mostramos sempre a cara triste do Piauí. O máximo que conseguimos foi a piedade de alguns e o escárnio da maioria. Chegou a hora de mostrarmos a face luminosa de nossa gente: a rica e multifacetada cultura do Piauí”. Com o novo rótulo, o projeto ganhou asas e percorreu praticamente todo o estado do Piauí, de Parnaíba a Guaribas.
O grupo enriqueceu-se, com a participação de músicos, coreógrafos, escritores, professores, ecologistas, etc. Hoje, somos 30 voluntários a serviço da educação e da cultura do Piauí. Tantas fizemos, que fomos tema de um programa especial da Globo News, realizado pelo poeta Claufe Rodrigues. Curiosamente, nunca nos sentamos para traçar um plano de trabalho. Como time que joga junto há muito tempo, ao entrar em campo, cada um sabe o que vai fazer e faz com engenho e arte.
No final do ano passado, o Cara Alegre foi contemplado com um ponto de cultura (FUNDAC – MINC). A partir de agora, mais que eventos esporádicos, poderemos dar continuidade às ações iniciadas quando da visita do grupo a determinado município. Inicialmente, vamos oferecer cursos de história do Piauí e literatura piauiense para professores da rede pública de ensino. Para os alunos, oficinas de xilogravura, violão e flauta doce. No campo da música, estamos iniciando a gravação de um DVD – Pássaros da Terra - com os músicos mirins do Piauí.
Atendendo a exigência do MINC, vamos adquirir o kit multimídia: máquina fotográfica, filmadora, notebook, data show, etc. Na sede do Projeto – Rua 7 de Setembro – 671, estamos montando um pequeno estúdio para gravação de CDs e DVDs.
É gratificante coordenar um projeto que conta com a participação de pessoas do nível de prof. Santana, Erisvaldo Borges, Paulo Machado, Fonseca Neto, Catarina Santos, Luíza Miranda, Rosinha Amorim, Halan Silva, Luiz Romero, Tânia Martins, Gabriel Archanjo, Geni Costa, Graça Vilhena, Carlos Martins, Vanda Queiroz, Wilker Marques, para citar apenas alguns. A filosofia do projeto continua a mesma: o saber só faz sentido quando compartilhado. Assim seja.