quarta-feira, 4 de maio de 2011

Cineas Santos - Ecos do Sertão

Faz um tempinho que, por minha conta e risco, venho tentando construir uma ponte cultural entre Teresina e o sertão do Piauí. Foi assim que nasceu o projeto A Cara Alegre do Piauí, em 1977. É ocioso dizer que os resultados alcançados ficaram muito aquém das expectativas. Nada de extraordinário: os sonhos voam; as pernas, quando muito, correm... O certo é, ao longo desses anos, nunca me passou pela cabeça a ideia de desistir da construção do necessário diálogo entre a capital e o interior.

         Agora mesmo, estou chegando do sertão - Canto do Buriti, São Raimundo, Anísio de Abreu e São João do Piauí - com a alegria de quem acredita no que faz. Posso lhes assegurar que, a despeito das dificuldades de toda ordem, há uma enorme efervescência cultural no interior do Piauí. Os pontos de cultura, presentes em toda parte, são pequenas usinas de beleza. Agregam jovens e adultos e evidenciam a importância da cultura como instrumento de resgate da cidadania e elevação da autoestima do povo.

         Das iniciativas culturais que vi, uma me deixou muito entusiasmado e feliz: trata-se do projeto EnCantadores  do Sertão,coordenado pelo prof. Gonçalo Carvalho Filho, em São João do Piauí. Como coordenador da Universidade Aberta do Brasil, Gonçalo resolveu envolver os alunos num projeto de grande alcance pedagógico e social. Em vez de teorias inócuas, experiências vivenciadas. O resultado não poderia ter sido mais feliz. Com poucos recursos, mas com enorme capacidade de trabalho, o grupo vem resgatando práticas culturais prestes a desaparecer. O projeto conta com o apoio da Associação Cidadania Verde, da Rádio e Portal São-joanense. Pelo menos uma vez por mês, o grupo se reúne na casa de um dos artistas da terra e realiza uma espécie de sarau onde cada um mostra o que pode e sabe fazer. Desses encontros, nasceram o CD do mestre Julimar do Pife e o DVD  Batuque do Brás. Trata-se de trabalhos artesanais, de aparência pobre, mas extremamente valiosos por contribuir para manter vivas tradições seculares. Dona Conceição Viana, de 77 anos de idade, traduz o sentimento dos batuqueiros: “A gente nasceu e se criou brincando com o Brás, a gente se considera uma grande família. O batuque do Brás nunca vai acabar porque nós somos muitos. Eu vou embora daqui a uns dias, mas têm os outros aí, os netos, os bisnetos, os tataranetos dele. Se ele fosse vivo,ficaria muito orgulhoso por estarmos dando continuidade ao trabalho dele”.

         Para quem acredita no poder restaurador da cultura, é gratificante ver o brilho nos olhos de figuras do naipe de Jonas, Dió, Dedício, Miltinho, Quibobô, Seu Berto , Xubéu e tantos outros. Gente simples que, com engenho e arte, faz jus ao título de encantadores do sertão. Longa vida a esse projeto luminoso.
        

terça-feira, 3 de maio de 2011

Conversa ao pé do rádio



Dois pintores de parede trabalham no hall do prédio ouvindo um radinho de pilha debaixo da escada. De repente o locutor interrompe a música technobrega para esbravejar contra o aumento da gasolina. Clama o povo a ir às ruas protestar.

– Mermão, a gasolina tá cara mermo. Um absurdo. O locutor tem razão: a gente precisa se unir e protestá.  – disse o pintor de rodapé.
– Se continuar assim, aonde é que a gente vai parar? – resmungou o outro pintor, mexendo o balde de tinta – Temos que ir à rua mesmo, gritar contra esse aumento descarado de preço. Quem já viu isso?!
– A gente temos que fazer faixa e cartaz como aqueles tal de cara-pintada fazia.
– Pode ser. Gritar palavras de ordem contra os donos de posto, tipo “abaixo a ditadura da gasolina!”
– É... Ouvi dizê que o culpado desse aumento é um tal de Cartel. Esse cara deve ser gente muito importante no governo.
– A gente grita contra ele também... Mas me diga uma coisa: quanto é que tá custando um litro de gasolina?
– E eu lá vô sabê! Cumé que vô sabê se só ando de bicicreta?!


domingo, 1 de maio de 2011

Antônio Torres participará de Encontro com Jornalistas Escritores

O baiano Antônio Torres, nascido no arraial do Junco, hoje, cidade de Sátiro Dias, será uma das atrações dos Encontros com Jornalistas Escritores, que será realizado nos dias 25 e 26 de maio, em São Paulo , dentro do Congresso Mega Brasil de Comunicação. O evento tem a curadoria de Audálio Dantas e será integrado por quatro sessões, duas matinais, de 9h30 às 11h30, e duas noturnas, de 19h30 às 21h30. Torres começou ainda menino no jornalismo, como repórter do Jornal da Bahia e aos 20 anos já estava em São Paulo , na Última Hora. Atuou também na publicidade e lançou seu primeiro romance, Um cão uivando para a lua, aos 32 anos, com grande sucesso. O que viria a repetir-se com o lançamento seguinte, Os homens dos pés redondos. Seu maior sucesso, Essa terra, com fortes traços autobiográficos, foi lançado em 1976, ganhando uma edição francesa em 1984, o que lhe abriu o mercado internacional. Hoje tem seus livros publicados em Cuba, Argentina, França, Alemanha, Itália, Inglaterra, Estados Unidos, Israel, Holanda, Espanha e Portugal. São dele, ainda, Balada da infância perdida, Um táxi para Viena d’Áustria, Meu querido canibal, O nobre sequestrador, Pelo fundo da agulha e O cachorro e o lobo. Vive atualmente em Itaipava, Petrópolis, no Rio de Janeiro. Torres participará da quarta e última sessão, na noite do dia 26 de maio, ao lado de José Hamilton Ribeiro (Pantanal amor baguá e Vingança do índio cavaleiro) e de Regina Echeverria (Furacão Elis e Cazuza, preciso dizer que te amo).

Também vão participar do ciclo nas demais sessões Caco Barcellos, Eliane Brum, Juca Kfouri, Laurentino Gomes, Maurício de Sousa, Moacir Japiassu, Ricardo Kotscho, Ziraldo e Zuenir Ventura. Para os participantes do Congresso Mega Brasil o evento é gratuito. Para estudantes o preço de todo o ciclo é R$ 50 (ou R$ 20 se quiser participar de uma única sessão).

Informações sobre o evento podem ser obtidas pelo site www.megabrasil.com.br, telefone (11) 5576-5600, Twitter (twitter.com/megabrasil), Blog (www.congresso3em1.blogspot.com) e Facebook (http://migre.me/3Tdkp).




sábado, 30 de abril de 2011

Luís Pimentel - Jamelão e suas histórias


Das inúmeras histórias que enriquecem o folclore do samba a respeito do humor indigesto e inimitável de Jamelão, uma é imbatível. Dizem que convidado para receber uma (mais uma) homenagem em São Paulo, por conta dos não sei quantos anos de idade, o maior intérprete (“puxador é maconheiro ou ladrão de carro!”, dizia ele) do carnaval brasileiro fez a perguntinha: “Tem dindim?”. “Não, mestre, é só uma homenagem”. Um brinde à resposta:

– Homenagens não pagam minhas contas!

José Bispo Clementino dos Santos – o nome já era um enredo – nasceu no Rio de Janeiro, no dia 12 de maio de 1913. Morreu no dia 14 de junho de 2008. Aos nove anos vendia jornais nos subúrbios, onde conheceu o sambista Gradim, que o levou para a Estação Primeira de Mangueira. Começou a carreira no rádio, participou de alguns conjuntos e orquestras, entre elas a Tabajara, de Severino Araújo. Seu reconhecimento veio no final dos anos 50, quando gravou Exemplo e Ela disse-me assim, de Lupicínio Rodrigues.
No começo dos anos 40 Seu José Bispo já pontificava nas rodas de samba históricas da Praça Onze. Em 1945 participou de um programa de calouros na Rádio Ipanema, onde nasceu o apelido que o tornou célebre na verde e rosa e em todas as cores da MPB. Segundo contou em depoimento no Museu da Imagem e do Som, no Rio, o apresentador anunciou determinada música “a ser interpretada por Jamelão". Quando ouviu isso, ainda se perguntou: "Quem seria esse tal de Jamelão?" Para sua surpresa, o Jamelão era ele. O apresentador inventou na hora o apelido que pegou para sempre.

Além da maestria nos sambas-enredo, Jamelão cantava bem qualquer coisa que caísse em seu repertório. Ninguém melhor do que ele no samba-canção ou nos boleros. Encerrando com outra historinha do figuraça: na saída de um show coletivo, entre vários artistas, a jovem cantora se aproximou:

– Mestre, eu quero beijar sua mão.
– Precisa não. Primeiro, porque não sou pai-de-santo. Depois, porque não sei onde você andou com essa boca.


Juvenal Azevedo - Um cão uivando para a imortalidade



Antônio Torres é um dos candidatos à vaga deixada por Moacyr Scliar na Academia Brasileira de Letras. Segundo os entendidos nos meandros da ABL, Torres é, ao lado de Nerval Pereira, um dos favoritos a envergar o fardão dos imortais.

Na minha opinião, Nerval é um jornalista sério, estudioso e competente, mas falta a ele a chamada bagagem literária. Já Antônio Torres, ademais de suas qualidades pessoais e de caráter, tem uma farta bagagem de livros escritos, publicados e aplaudidos tanto pela crítica quanto pelo público, aqui e no exterior.
Desde sua primeira obra, à qual poderíamos sem exagero classificar de obra-prima, “Um cão uivando para a Lua”, de 1972, até seu livro mais recente, “Sobre pessoas”, de 2007, Torres mostrou ser, fundamentalmente, um escritor.

Um escritor talentoso, dominador de seu ofício, como em “Os homens dos pés redondos”, “Essa terra”, “Carta ao Bispo”, “Adeus, Velho”, “Balada da infância perdida”, “Um táxi para Viena d’Áustria”, “O centro de nossas desatenções”, “O cachorro e o lobo” (que recebeu o Prêmio Hors-Concours de Romance da União Brasileira de Escritores em 1998 e foi traduzido para o francês), “O circo no Brasil”, “Meninos, eu conto” (traduzido para o espanhol na Argentina, México, Uruguai), para o francês (no Canadá e na França), para o inglês (nos Estados Unidos) e ainda para o alemão e o búlgaro, além de ser incluído na antologia dos “100 melhores contos do século”, de Ítalo Moriconi, “Meu querido canibal”, “O nobre sequestrador”, “Pelo fundo da agulha” e “Minu, o gato azul”, uma delícia de livro infantil.

E o que espero que aconteça na ABL, em junho próximo, é o reconhecimento de que aos escritores de ofício se deve abrir o reino dos céus literários. Seria também o auto reconhecimento da Academia a um escritor por ela agraciado em 2000 com o Prêmio Machado de Assis pelo conjunto da obra. 

Como a vaga em questão é a de Moacyr Scliar, não custa lembrar que Torres e Scliar se conheceram pessoalmente em 1985, num circuito de palestras pela Alemanha, sendo que foi numa viagem de trem de Colônia para Bielefeld que a amizade se consolidou. Segundo Torres, “fomos só nós dois no trem”. E acrescenta: “Já havíamos conversado em Frankfurt, mas foi tudo muito rápido. Depois daquela viagem para Bielefeld, ficamos amigos para sempre. No Brasil, costumávamos frequentar a casa um do outro entre o Rio e Porto Alegre. E o maior presente que ele me deixou foi seu artigo com o título “Meu querido Antônio Torres”, quando do lançamento do livro “Meu querido canibal”.

Bem. Desconhecedor dos rituais e cânones da Academia Brasileira de Letras, não sei se ao escrever este artigo estarei colaborando ou não para incrementar a candidatura de Torres à imortalidade, de vez que, se consultado fosse, meu amigo quase milenar Antônio Torres, por seu caráter e modéstia que beira a humildade, me impediria de fazer esta declaração pública de amizade e admiração por suas qualidades, tanto pessoais quanto literárias.

Que o Torres e, principalmente, os membros imortais da Academia me perdoem, mas em certas ocasiões calar seria, isso sim, inoportuno. Avante, imortais, façam justiça. Deem a Antônio Torres a cadeira de Moacyr Scliar que, certamente, onde quer que esteja, terá sua aprovação.

Juvenal Azevedo é jornalista e publicitário. Publicação original no site http://www.difundir.com.br/site/c_mostra_release.php?emp=1098&num_release=41274&ori=I



sexta-feira, 29 de abril de 2011

Edna Lopes - Porta-Voz Celestial



Mal amanhece se ajoelha, faz suas orações e liga o rádio. Ocupa-se das tarefas da casa, mas não descuida de ouvir, atenta, os louvores, os comerciais de produtos sacros enquanto aguarda ansiosa a pregação do Fulano de Tal, autoridade eclesial com o dom da palavra e muitos conhecimentos nas hostes celestiais.

Arruma a casa, lava a roupa, faz comida, mas a atenção no que o pregador fala está em primeiro plano e mal acaba o programa, corre ao telefone para avisar as amigas e parentas dos recados que Deus mandou a cada uma delas.

Nem o Anjo Gabriel pareceria mais íntimo...





domingo, 24 de abril de 2011

Engabelação Pascal

De Coelhinho da Páscoa

Talvez a Igreja me excomungue, mas, Páscoa, para mim, é só um motivo para se engordar mais de tanto se comer chocolate, seja em forma de ovo, de barra ou de bombons. O meu filho mais novo faz a festa nesse dia.

Aqui, neste mundo cibernético, já li tanta coisa sobre a Páscoa que só não vai faltar ovos nos supermercados da vida porque andam confundindo Zé Carroceiro com Zeca Roceiro. Já falaram até que a “Páscoa cristã é a celebração do Êxodo”, esquecidos que judeus e cristãos são inimigos históricos, apesar de o responsável pelo cristianismo ter sido judeu. Aliás, foram os próprios judeus que entregaram Cristo aos carrascos romanos, o que levou o Papa Pio XII, dois mil anos depois da crucificação, a não titubear na hora de escolher entre a cruz da Suástica e os descendentes de Abraão: lembrando Judas Iscariotes, beijou a face judaica.

Tenho saudades das minhas aulas de catecismo na Escola Brazilino Viegas, cuja professora Marilda caprichava nos ensinamentos sem nenhuma paixão ou ressentimento. Dizia que a páscoa era a celebração da vida, a Ressurreição de Cristo, a libertação do material pelo espiritual. E havia missa para as crianças no domingo e a gente cantava assim:

“Coelhinho da Páscoa
Que trazes pra mim?
Um ovo, dois ovos,
Três ovos assim;
Um ovo, dois ovos,
Três ovos assim.

Coelhinho da Páscoa
Que cores tu tens?
Azul, amarelo,
Vermelho também;
Azul, amarelo,
Vermelho também.”

À tarde havia brincadeira na rua: pau-de-sebo, quebra-pote, corrida de saco, boca-de-forno, pega-pega, cirandas e outras brincadeiras.

Foi num domingo de páscoa que fiz a primeira comunhão. Eu e mais todos os colegas da escola. Na catequese, a professora dizia que a comunhão seria o suprassumo da totalidade cósmica e que seríamos conduzidos pelas mãos do Espírito Santo até a presença de Deus. A hóstia deveria dissolver na boca em silêncio meditativo e que ficaríamos tão leves que seríamos capazes de voar. Criou-se uma expectativa enorme a respeito do sagrado momento da Comunhão que não pensava noutra coisa a não ser na hora de degustar meu passaporte para o Divino. Chegado o dia, chegada a hora, chegada a minha vez, a decepção foi tão grande que aquela foi a minha primeira e única comunhão. Anos depois eu soube que não funcionou em mim porque não havia contado todos os pecados ao santo confessor. Mas aí já era tarde para encarar um padre e confessar que fiz sexo antes de casar.

Atualmente catequese saiu da grade curricular das escolas. Cada um com direito a seu credo, à sua religião, vez que o Brasil é um país laico, cada um com seu direito de adorar a quem bem quiser. Lembro-me da aflição e constrangimento do meu colega Crispim, um filho de uma ialorixá tendo que se submeter aos rituais católicos. E ainda ouvir a professora de Religião dizer - na verdade a professora revivia o papel dos jesuítas - que o Candomblé era coisa do Satanás.

Ou era assim, ou era assado.

Nesta semana pascal fiquei de olhos esbugalhados com as manifestações sobre o tema em epígrafe, tanto em alguns blogs, quanto em sites de relacionamento. Mensagens tais que mais parecem copiados de cartão de boas festas, aqueles enviados no fim do ano. Com a globalização, já inventaram até o texto multifuncional, podendo ser usado em qualquer ocasião. Não acredito na sinceridade retirada do baú das letras em forma de mensagem, feito os aerogramas de natal da nossa briosa Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos nos tempos das diligências. A engabelação em tais mensagens é pura e cristalina. Por isso, para tais escribas, só me resta repetir o célebre pedido de Jota Cristo nos últimos instantes de sua existência como homem:

– Perdoai, ó Pai! Eles não sabem simplesmente dizer: feliz páscoa!

sábado, 23 de abril de 2011

O Foguete e as lágrimas


Era um cavaleiro solitário. Ideologicamente solitário. Em tempos que vereador prestava juramento de fidelidade, não aos poderes, mas aos mandatários constituídos, ter cisma ideológica era crime contra a moral e aos bons costumes e o pseudocriminoso se tornava um pária, estigmatizado socialmente para todo o sempre.

Dizia-se que ele era um comunista de carteirinha, desgarrado da Coluna Prestes, infiltrado pelos cossacos para perverter a pacata gente da terra, embora ninguém ali, salvo umas duas exceções, soubesse o que era ser comunista, muito menos cossaco, e pior ainda, Coluna Prestes. Não acreditava em santo e comia carne na Semana Santa, justificavam-se, assim, seus detratores. Podia ser muçulmano ou judeu, ter outro preceito religioso, mas ali, naquele lugar, sob a influência do padre, judeu, muçulmano e comunista era tudo uma coisa só: o Anticristo.

Chamava-se José Jacinto de Melo, primeiro oficial de cartório do distrito de Sátyro Dias, vereador no raiar do novo município, mas não entrou para história pelos seus feitos cartoriais, pela sua falta de Fé ou pela sua atuação política (que não se sabe se foi boa ou ruim). A história, que se conta, reservou um lugar nos seus anais para o Mestre Zezito Fogueteiro, o pirotécnico, reverenciado até hoje, principalmente nas noites de junho, e o povo mais antigo chora sua falta no Sábado de Aleluia.

O Judas, em Sábado de Aleluia, de Zezito Fogueteiro, iniciava o espetáculo no cair da tarde, em desfile apoteótico pelas ruas da cidade, montado no jegue Cemirréis, acompanhado de dezenas e dezenas de crianças e adolescentes, que diziam impropérios contra o famigerado traidor de Cristo. Vestido a caráter, de paletó, gravata e chapéu, depois de concluída a volta olímpica, era pendurado no cadafalso (que ficava embaixo do tamarindeiro existente perto do Mercado) à espera de sua sentença, que vinha após a leitura do seu testamento, um primor de irreverência e sátira aos homens notórios da cidade. Ninguém escapava da “herança” do Judas, nem mesmo o padre e o prefeito. Milhares de pessoas se aglomeravam em volta de um caminhão, improvisado como palanque, para se divertir com a leitura do testamento, que era escrito em quadras: “Para o meu amigo Prefeito/ como não tenho o que deixar/ Deixo a minha vassoura/ Para a cidade ele limpar”. Eram versos picantes e divertidos, que levavam de uma a duas horas para seu desenredo final.

Feita a leitura do testamento, o povo corria para a calçada da igreja para se deliciar com o espetáculo que viria a seguir. Por questão de segurança, e também de perícia técnica, o Judas era aceso à distância, da calçada da igreja, onde havia uma estaca enfiada na terra e dela saiam dois fios de arame até o umbigo do famigerado. Em cada um dos fios existia um foguete luminoso, que ficava em extremidades opostas; o primeiro rojão a ser aceso era o da igreja, que corria pelo arame até o cadafalso, acendia o pavio que desencadeava a queima dos fogos no corpo do boneco e acendia também outro foguete, que retornava para a igreja. O primeiro foguete era chamado de “gato”; o segundo, de “gato de resposta”. O ir e vir por si só já era um espetáculo multicolorido. Após a chegada do foguete “gato de resposta” à estaca da igreja, se iniciava a queima do Judas, com as bombas explodindo em série, soltando fogo e fumaça da barriga, gerando um espetáculo de puro êxtase visual, transformando o Sábado de Aleluia em verdadeira manifestação de congraçamento cristão. Vinha gente de outras cidades assistir ao espetáculo. O povo da roça comparecia em massa, contentando o padre, que no dia seguinte teria os óbolos consideravelmente aumentados.

Apagadas as chamas da glória (ou o fogo justiceiro dos vingadores de Cristo), tudo voltava a ser como dantes no quartel de Abrantes. Zezito Fogueteiro, ou José Jacinto de Melo, tão amado e admirado, retornava à odisséia de ser o proscrito solitário Cavaleiro da Esperança, sem coluna e sem seguidores, porém seus foguetes rasgavam o breu da noite seguinte, em estouro de bombas de “resposta” ou em chuva de lágrimas policromáticas, em anunciação da Ressurreição de Cristo.

- Judas morreu!
- O cavalo é teu! 

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Cineas Santos - Das vezes em que salvei Cristo

No final do milênio passado, convidaram-me para ministrar um curso numa cidadezinha perdida no sertão do Piauí. Terra pobre, gente simples, mas extremamente hospitaleira. Não sei se por falta de um hotel decente ou por excesso de generosidade, hospedaram-me na Casa Paroquial, deferência só concedida aos “do andar de cima”. O padre era um típico pároco do sertão: rotundo, comilão, bonachão, ostentando na carantonha bovina o resignado ar dos mansos. Tinha alguma sensibilidade cultural e gostava dos temas ligados ao folclore. À noite, depois do jantar, digo, depois da ceia digna de um bispo em desobriga, fomos para a biblioteca prosear um pouco. Falamos de Leonardo Motta, Câmara Cascudo, Fontes Ibiapina. Conversa de compadres velhos.

Talvez pelos excessos da ceia, dormi mal e acordei cedo. Levantei-me e fui vistoriar o quintal da Casa Paroquial. Entre as fruteiras, havia um autêntico umbuzeiro do sertão: atarracado, tortuoso, com galharia impenetrável. Lembrei-me daquela descrição antológica de Euclides da Cunha. Naquele umbuzeiro empoleiravam-se as galinhas para dormir. De repente, me dei conta de algo insólito no chão: era a imagem de um Cristo crucificado, ou melhor, o que restara dela. Na verdade, faltavam-lhe as duas pernas, um dos braços e a mão direita. Não bastassem tantas mutilações, a imagem estava recoberta de titica de galinha. Experimentei uma sensação estranha, misto de piedade e indignação. Eu sabia que era apenas uma imagem de gesso, dessas que se compram a preço de banana em fim de feira. Mas aquela imagem, com certeza, fora benta. Diante dela, centenas de fiéis persignaram-se, desnudaram-se, confessaram-se arrependidos de suas culpas e, naturalmente, imploraram pela salvação de suas almas. Era, portanto, uma imagem impregnada do que há de mais humano em nós: a fé. Transumana, se me permitem o termo. Agachei-me e, com alguma dificuldade, consegui resgatá-la. Enrolei-a num jornal velho e levei-a para os meus aposentos. Na hora do café, pedi ao velho pároco que me desse aquele Jesus mutilado. Ele me olhou com uma pontinha de desconfiança e perguntou: Pra que você quer isso? Expliquei-lhe que sou vidrado em coisas antigas e que pretendia restaurá-la. O padre, que não era nada bobo, propôs o seguinte: Deixa isso aí e te dou uma novinha, trazida de Roma, benta por Sua Santidade. Declinei da oferta e, para comover o vigário, recitei o belo poema “Gesso”, de Manuel Bandeira, que termina assim: “Hoje esse gessozinho comercial/É tocante e vive, e me faz refletir/ Que só é verdadeiramente vivo o que já sofreu”. O padre acabou aquiescendo, e o Cristo mutilado e obrado veio comigo. Guardei-o em casa. Com o tempo, esqueci-me da sua existência. Como qualquer cristão relapso, só me lembro de Cristo nos momentos de agrura.

No domingo passado, mandei limpar o quarto das inutilidades e eis que a imagem de Cristo, recoberta de poeira e pátina, veio à tona. A cidadã que limpava os trastes me perguntou: Posso jogar isso no lixo? Antes de dizer não, perguntei-lhe: Por quê? Sem rodeios, respondeu-me: Isso me incomoda. Foi aí que me dei conta de que Cristo, mesmo reduzido a escombros, continua incomodando, ou seja, continua vivo. Resolvi guardá-lo num sarcófago improvisado. Como sou um pecador inconverso, mas honesto, confesso que não agi desinteressadamente. O raciocínio é simples: por duas vezes, em menos de dez anos, salvei aquele Cristo do lixo. Se Ele é, como rezam as Escrituras, todo compaixão e amor, há de me salvar pelo menos uma veizinha. Espero e confio.




quarta-feira, 20 de abril de 2011

Luís Pimentel - Grande homem mais ou menos

O velho relógio pendurado na parede suja marca 15 horas. Traduzindo: são apenas três da tarde e já estou bêbado. Nem almocei ainda e estou trocando as pernas e enxergando muito além ou aquém da paisagem. Nem sei se vai ter almoço hoje nesta casa.

Será que vai ter jantar?

Entre quatro paredes e inúmeros andares acima do chão, cambaleio e tropeço nos móveis. Me assusta tanta altura, mas me sinto em segurança. Se estivesse no chão, neste momento, já estaria juntando um rebanho de moleques à minha volta. As crianças adoram os bêbados. Que nem Deus, que protege os bêbados e as crianças nas horas difíceis. Põe a mão embaixo, é o que dizem. Amortece as quedas.

Bêbado feito um gambá. Velho feito um gambá e bêbado feito um gambá velho.

A velha rabugenta se aproxima. Porre maior que qualquer porre, arrastando pelos corredores as velhas sandálias de couro, velhas e gastas que nem ela. A latinha de biscoitos na mão:

– Bêbado já, a esta hora?
– Bêbado já. Esta hora já. Bêbado estou – respondo.

A velha resmunga qualquer coisa e dá as costas. Volta pelos corredores, arrastando as sandálias.

Bebo meio litro de água e acendo um cigarro. A fumaça invade o corpo feito lava de vulcão e sai pior ainda. Solto um palavrão cabeludo, apago o cigarro e cuspo da janela, acompanhando do parapeito a trajetória da saliva gosmenta e amarelada por doze andares.

Dá gosto ver. Acompanho até a hora em que a porcaria se esparrama lá embaixo, na calçada ou na cabeça de um desocupado. Como tem gente desempregada ou vadia nessa merda de cidade. Sei que também tem uns que trabalham, mas mesmo assim ficam zanzando pelas ruas. E sei que tem aqueles que não precisam trabalhar mesmo e estão cagando para o mundo, chutando chapinhas por aí e levando cusparadas de bêbado no quengo ou nos ombros. Quem manda passar por aqui?

A velha abstêmia abandona sobre a mesa a latinha de biscoitos, a mesma que me servia de marmita na época da repartição. Me olha de cara feia, como se fosse possível envergonhar um velho bêbado que já sente vergonha de tudo, e faz um comentário dos mais idiotas:

– Essa porcaria pode cair na cabeça de alguém, sabia?

Eu podia dizer que já caiu, já emporcalhou quem tinha que emporcalhar, mas me falta a paciência:

– E daí? Não estou lá embaixo.
– Porco – diz a velha, curiosamente sem ódio. “Porco”, como se dissesse “chato”, “bobo” ou “maluco”.

Quando eu trabalhava na repartição só enchia a cara nos finais de semana. Começava mais ou menos ali pela quinta-feira, depois do expediente. Litros de cerveja, garrafas e mais garrafas de conhaque, uísque, vinho, o diabo a quatro. Falando tanta bobagem que até sinto vergonha de lembrar, entre um porre e outro.

Agora sou outro homem, só bebo cachaça e mais ou menos todo santo dia. Chova ou faça sol ou faça até mesmo um tempinho mais ou menos. Também não frequento mais bar, nenhum bar. Evito me misturar com o rebanho de aposentados que enche a cara e conta mentiras a noite inteira. Eles às vezes até telefonam, insistem comigo, mas eu não vou.

Não quero a companhia de bezerros castrados, tristes e impotentes iguais a mim.

– Quer um café amargo? – a velha de novo, com as sandálias nos pés e a lata de biscoitos nas mãos. Come o dia inteiro, mas não engorda. Nem morre.
– Melhorar de quê?
– Do fígado, da cabeça, da bebedeira. Vai ao médico, criatura.
– Deus é pai. Só mesmo Deus, todo poderoso.
– Não esquece do que os filhos te dizem.

Os filhos também são muito esquisitos, puxaram à velha. Quase não me visitam, o que é até um favor que me fazem. Não preciso deles, de nenhum deles. Na verdade, não preciso de ninguém. Sou um homem independente. Bêbado e independente, mesmo quando caindo pelos cantos.

– Quer um copo d’água? Prefere um leite morno? Esquento a água do banho?

Sei que ela jamais vai me deixar em paz.

– Responde, mal-agradecido.

Ainda bem que estou ficando surdo, só assim me tornarei um homem livre.

Tem um boçal esperneando lá de baixo, gritando comigo e interrompendo os meus pensamentos. “Ah, é?” Vou à janela, estufo o peito. A cusparada dessa vez vai certeira e a resposta vem em seguida. Volto à janela e o desmiolado pergunta se já estou bêbado novamente, enquanto limpa a cusparada na camisa branquinha.

– Mais ou menos – respondo.

A velha salta em defesa do moço cuspido. Diz que é um rapaz direito da loja que tem lá embaixo. Insiste em que se o rapaz fosse violento poderia subir e me dar umas pancadas, que eu bem mereço. Solto uma gargalhada estrondosa, tomo mais um gole caprichado e despacho nova cusparada voadora. Ela me chama de animal incorrigível e eu respondo apenas, em absoluta paz comigo mesmo:

– Sou isso tudo mesmo. Quer dizer, mais ou menos.

Fecho as janelas sem olhar para o céu, deixo a velha falando sozinha e me arrasto até o quarto. Repito para mim e para as paredes sujas:

– Sei que sou um grande homem. Ou sou um homem mais ou menos, como todo grande homem.


Conto título do volume de contos Grande homem mais ou menos (Bertand Brasil, 2007).







segunda-feira, 18 de abril de 2011

Edna Lopes - Profética

Estava tão certa de que o marido tinha amantes que passou a desconfiar até da própria sombra. Imaginava que era a vizinha, a colega de repartição, a moça do supermercado, a prima oferecida, a amiga da irmã...
Passou a viver no inferno e transformou a vida dele e dos filhos num purgatório, um tormento de lamúrias, queixas, acusações.

Ele, por sua vez, jurava de pés juntos que era delírio, que a desconfiança dela era infundada, que ele nunca dera motivo para que ela agisse assim, que ciúme tinha limites...
O convívio passou a ter clima de guerra fria. Se trazia um presente, ouvia:
– Culpa! Mil vezes culpa! A troco de que me traz esse presente se não é por culpa?
Se ele esquecia algum item da feira, mais reclamações, acusações:
– Desleixado, irresponsável! Aposto que da feira dela ele não esquece nada!
Se se atrasava:
– Eu não disse? deve tá por aí, farreando com a “rapariga”! – a lamúria e o choro estavam garantidos. Não adiantava os filhos dizer que ela exagerava, que não tinha provas e ela respondia:
– Terei!
Passou a rejeitá-lo na cama:
– Não me toque! Já tem quem lhe satisfaça!
O dito cujo, como não tinha mais sossego em casa, passou a chegar cada vez mais tarde. Aceitou o convite para o futebol, para o churrasco no clube, para o happy hour ...Sempre sozinho, mas, um dia, convidou uma amiga para jantar, outra para dançar, outra para tomar um drinque... Gostou de se sentir solteiro e arranjou uma namorada, duas... três...

Meses depois, chegando de mais de um fim de semana dormindo fora, já bem tarde da noite, estacionou o carro, jogou as chaves na estante e foi tomar banho. A mulher desfiou o costumeiro rosário das reclamações e ele nem ligou. Ela, enfurecida, perguntou:
– Posso saber por que você não se defende mais, não reclama mais do meu comportamento?
– Simples: você estava certa! Eu resolvi aceitar sua sugestão: arranjei uma amante.
Ela para, respira fundo, encara os filhos e grita:
– Eu não falei?!




domingo, 17 de abril de 2011

A Carta


Rabiscou um papel de carta, colocou no envelope, fechou, selou e jogou na caixa do Correio. Retornou a casa calculando o dia que chegaria a resposta. 

Três dias depois, cedo da manhã, sentou-se à porta à espera do carteiro. O agiota lhe dera o prazo até as três da tarde. Ou paga o que deve, oooou...

O carteiro não tardou. Estava com uma carta na mão. Carta, não, a salvação. Reconheceu o envelope. Reconheceu a caligrafia. Era da sua mão trêmula. O coração acelerou aflito.

– Mas, mas, mas... balbuciou, incrédulo.
– Faltou colocar o endereço do destinatário – explicou o carteiro.
– Mas como?! Está aqui, ó, do mesmo jeito que a minha filha falou pra mãe dela, por telefone: Maria Anderlaine 73 Arrôba Guimeio Ponto Com! Vixe, Maria Mãe de Deus, bem que eu sabia que ela tinha esquecido de dizer o tal do cepi!