quarta-feira, 20 de abril de 2011

Luís Pimentel - Grande homem mais ou menos

O velho relógio pendurado na parede suja marca 15 horas. Traduzindo: são apenas três da tarde e já estou bêbado. Nem almocei ainda e estou trocando as pernas e enxergando muito além ou aquém da paisagem. Nem sei se vai ter almoço hoje nesta casa.

Será que vai ter jantar?

Entre quatro paredes e inúmeros andares acima do chão, cambaleio e tropeço nos móveis. Me assusta tanta altura, mas me sinto em segurança. Se estivesse no chão, neste momento, já estaria juntando um rebanho de moleques à minha volta. As crianças adoram os bêbados. Que nem Deus, que protege os bêbados e as crianças nas horas difíceis. Põe a mão embaixo, é o que dizem. Amortece as quedas.

Bêbado feito um gambá. Velho feito um gambá e bêbado feito um gambá velho.

A velha rabugenta se aproxima. Porre maior que qualquer porre, arrastando pelos corredores as velhas sandálias de couro, velhas e gastas que nem ela. A latinha de biscoitos na mão:

– Bêbado já, a esta hora?
– Bêbado já. Esta hora já. Bêbado estou – respondo.

A velha resmunga qualquer coisa e dá as costas. Volta pelos corredores, arrastando as sandálias.

Bebo meio litro de água e acendo um cigarro. A fumaça invade o corpo feito lava de vulcão e sai pior ainda. Solto um palavrão cabeludo, apago o cigarro e cuspo da janela, acompanhando do parapeito a trajetória da saliva gosmenta e amarelada por doze andares.

Dá gosto ver. Acompanho até a hora em que a porcaria se esparrama lá embaixo, na calçada ou na cabeça de um desocupado. Como tem gente desempregada ou vadia nessa merda de cidade. Sei que também tem uns que trabalham, mas mesmo assim ficam zanzando pelas ruas. E sei que tem aqueles que não precisam trabalhar mesmo e estão cagando para o mundo, chutando chapinhas por aí e levando cusparadas de bêbado no quengo ou nos ombros. Quem manda passar por aqui?

A velha abstêmia abandona sobre a mesa a latinha de biscoitos, a mesma que me servia de marmita na época da repartição. Me olha de cara feia, como se fosse possível envergonhar um velho bêbado que já sente vergonha de tudo, e faz um comentário dos mais idiotas:

– Essa porcaria pode cair na cabeça de alguém, sabia?

Eu podia dizer que já caiu, já emporcalhou quem tinha que emporcalhar, mas me falta a paciência:

– E daí? Não estou lá embaixo.
– Porco – diz a velha, curiosamente sem ódio. “Porco”, como se dissesse “chato”, “bobo” ou “maluco”.

Quando eu trabalhava na repartição só enchia a cara nos finais de semana. Começava mais ou menos ali pela quinta-feira, depois do expediente. Litros de cerveja, garrafas e mais garrafas de conhaque, uísque, vinho, o diabo a quatro. Falando tanta bobagem que até sinto vergonha de lembrar, entre um porre e outro.

Agora sou outro homem, só bebo cachaça e mais ou menos todo santo dia. Chova ou faça sol ou faça até mesmo um tempinho mais ou menos. Também não frequento mais bar, nenhum bar. Evito me misturar com o rebanho de aposentados que enche a cara e conta mentiras a noite inteira. Eles às vezes até telefonam, insistem comigo, mas eu não vou.

Não quero a companhia de bezerros castrados, tristes e impotentes iguais a mim.

– Quer um café amargo? – a velha de novo, com as sandálias nos pés e a lata de biscoitos nas mãos. Come o dia inteiro, mas não engorda. Nem morre.
– Melhorar de quê?
– Do fígado, da cabeça, da bebedeira. Vai ao médico, criatura.
– Deus é pai. Só mesmo Deus, todo poderoso.
– Não esquece do que os filhos te dizem.

Os filhos também são muito esquisitos, puxaram à velha. Quase não me visitam, o que é até um favor que me fazem. Não preciso deles, de nenhum deles. Na verdade, não preciso de ninguém. Sou um homem independente. Bêbado e independente, mesmo quando caindo pelos cantos.

– Quer um copo d’água? Prefere um leite morno? Esquento a água do banho?

Sei que ela jamais vai me deixar em paz.

– Responde, mal-agradecido.

Ainda bem que estou ficando surdo, só assim me tornarei um homem livre.

Tem um boçal esperneando lá de baixo, gritando comigo e interrompendo os meus pensamentos. “Ah, é?” Vou à janela, estufo o peito. A cusparada dessa vez vai certeira e a resposta vem em seguida. Volto à janela e o desmiolado pergunta se já estou bêbado novamente, enquanto limpa a cusparada na camisa branquinha.

– Mais ou menos – respondo.

A velha salta em defesa do moço cuspido. Diz que é um rapaz direito da loja que tem lá embaixo. Insiste em que se o rapaz fosse violento poderia subir e me dar umas pancadas, que eu bem mereço. Solto uma gargalhada estrondosa, tomo mais um gole caprichado e despacho nova cusparada voadora. Ela me chama de animal incorrigível e eu respondo apenas, em absoluta paz comigo mesmo:

– Sou isso tudo mesmo. Quer dizer, mais ou menos.

Fecho as janelas sem olhar para o céu, deixo a velha falando sozinha e me arrasto até o quarto. Repito para mim e para as paredes sujas:

– Sei que sou um grande homem. Ou sou um homem mais ou menos, como todo grande homem.


Conto título do volume de contos Grande homem mais ou menos (Bertand Brasil, 2007).







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