No final do milênio passado, convidaram-me para ministrar um curso numa cidadezinha perdida no sertão do Piauí. Terra pobre, gente simples, mas extremamente hospitaleira. Não sei se por falta de um hotel decente ou por excesso de generosidade, hospedaram-me na Casa Paroquial, deferência só concedida aos “do andar de cima”. O padre era um típico pároco do sertão: rotundo, comilão, bonachão, ostentando na carantonha bovina o resignado ar dos mansos. Tinha alguma sensibilidade cultural e gostava dos temas ligados ao folclore. À noite, depois do jantar, digo, depois da ceia digna de um bispo em desobriga, fomos para a biblioteca prosear um pouco. Falamos de Leonardo Motta, Câmara Cascudo, Fontes Ibiapina. Conversa de compadres velhos.
Talvez pelos excessos da ceia, dormi mal e acordei cedo. Levantei-me e fui vistoriar o quintal da Casa Paroquial. Entre as fruteiras, havia um autêntico umbuzeiro do sertão: atarracado, tortuoso, com galharia impenetrável. Lembrei-me daquela descrição antológica de Euclides da Cunha. Naquele umbuzeiro empoleiravam-se as galinhas para dormir. De repente, me dei conta de algo insólito no chão: era a imagem de um Cristo crucificado, ou melhor, o que restara dela. Na verdade, faltavam-lhe as duas pernas, um dos braços e a mão direita. Não bastassem tantas mutilações, a imagem estava recoberta de titica de galinha. Experimentei uma sensação estranha, misto de piedade e indignação. Eu sabia que era apenas uma imagem de gesso, dessas que se compram a preço de banana em fim de feira. Mas aquela imagem, com certeza, fora benta. Diante dela, centenas de fiéis persignaram-se, desnudaram-se, confessaram-se arrependidos de suas culpas e, naturalmente, imploraram pela salvação de suas almas. Era, portanto, uma imagem impregnada do que há de mais humano em nós: a fé. Transumana, se me permitem o termo. Agachei-me e, com alguma dificuldade, consegui resgatá-la. Enrolei-a num jornal velho e levei-a para os meus aposentos. Na hora do café, pedi ao velho pároco que me desse aquele Jesus mutilado. Ele me olhou com uma pontinha de desconfiança e perguntou: Pra que você quer isso? Expliquei-lhe que sou vidrado em coisas antigas e que pretendia restaurá-la. O padre, que não era nada bobo, propôs o seguinte: Deixa isso aí e te dou uma novinha, trazida de Roma, benta por Sua Santidade. Declinei da oferta e, para comover o vigário, recitei o belo poema “Gesso”, de Manuel Bandeira, que termina assim: “Hoje esse gessozinho comercial/É tocante e vive, e me faz refletir/ Que só é verdadeiramente vivo o que já sofreu”. O padre acabou aquiescendo, e o Cristo mutilado e obrado veio comigo. Guardei-o em casa. Com o tempo, esqueci-me da sua existência. Como qualquer cristão relapso, só me lembro de Cristo nos momentos de agrura.
No domingo passado, mandei limpar o quarto das inutilidades e eis que a imagem de Cristo, recoberta de poeira e pátina, veio à tona. A cidadã que limpava os trastes me perguntou: Posso jogar isso no lixo? Antes de dizer não, perguntei-lhe: Por quê? Sem rodeios, respondeu-me: Isso me incomoda. Foi aí que me dei conta de que Cristo, mesmo reduzido a escombros, continua incomodando, ou seja, continua vivo. Resolvi guardá-lo num sarcófago improvisado. Como sou um pecador inconverso, mas honesto, confesso que não agi desinteressadamente. O raciocínio é simples: por duas vezes, em menos de dez anos, salvei aquele Cristo do lixo. Se Ele é, como rezam as Escrituras, todo compaixão e amor, há de me salvar pelo menos uma veizinha. Espero e confio.
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