sábado, 6 de dezembro de 2008

MINI-CONTO DE NATAL

De menino

Viera da roça, fugindo da seca e da precisão. Chegara na véspera do Natal e no dia seguinte crianças brincavam na rua, exibindo seus presentes: bolas de futebol, carros, bonecas, bicicletas. Ele observava todo o movimento de sua janela. Um garoto o viu e se aproximou:

– Oi! Sou Mário. Pegue seu presente e venha brincar conosco!

Ele desviou o olhar para o chão. Envergonhado, procurou a mãe.

– Mãe, quem é papai-noel que deu brinquedo a todos os meninos da rua e a mim não?

A mãe não soube responder. De onde vieram, papai-noel se chamava cesta básica e carro-pipa.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

CAMINHANDO SOB AS ESTRELAS


A Dulce e Célia; Armando e Nivaldo
Os dois casais de namorados se encontravam pontualmente às seis horas da noite na porta da igreja. Trocavam algumas palavras e seguiam passeando pela calçada em sentidos opostos e em passos ritmados, de modo que pudessem se encontrar na parte do fundo. Novamente outra parada para conversa a quatro e depois seguiam adiante, até novo encontro no ponto de partida.

As duas eram vizinhas de parede, amigas de infância e cúmplices na paixão aflorada. Recolhiam-se antes que o motor da luz silenciasse, mas continuavam a consumir querosene de candeeiro até os grilos cansarem de sua sinfonia. Seus pais, para a época, eram liberais, porém suas mães se esmeravam no zelo da honra e dos bons costumes: permitiam que elas namorassem além de seus olhos sob a condição de não ficarem paradas na calçada, em chamego de mulher perdida.

Os dois namorados se fizeram amigos nos encontros marcados ao longo da calçada. Um deles era forasteiro, vindo no volante da Petrobrás mudar o conceito econômico do lugar. O outro era nativo, lidava com afazeres agrícolas, e, apesar de passar a maior parte do seu tempo envolvido com a roça, possuía trejeitos citadinos e ares de sincera fidalguia.

Uma das moças era oriunda da roça, mas não deixava trespassar a timidez das mulheres da zona rural. No seu rol de amizades havia mais garotas da cidade e com elas aprendia a desenvoltura dos flertes. A outra moça era professora. No meio de tanta gente ignorante do saber ler, era tratada como um ser superior. Vestia-se elegantemente e nem mesmo para o trabalho abria mão de belos sapatos de salto alto. E eram eles, os sapatos, que marcavam a cadência dos passos na calçada. Às vezes, quando se detinha em delongas com o outro casal ou com outro ser passante e sua mãe não escutava o toc-toc harmônico do salto fino sobre o cimento, ela saía à porta e chamava a filha à responsabilidade. 

As caminhadas que esses casais deram em torno da igreja, se medidos milimetricamente, dariam a volta ao mundo e ainda sobrariam passos. Mas um dia a Petrobrás transferiu o seu motorista para outra cidade e o casamento teve que ser apressado. Depois de casados, se mudaram para muito longe e o outro casal também quis abreviar as caminhadas, trocando alianças aos pés do altar. Neste ínterim, a cidade ganhou luz elétrica vinda diretamente dos gigantescos geradores de Paulo Afonso, silenciando o velho motor a diesel do gerador. A sinfonia noturna do salto do sapato em passos cadenciados no compasso das quimeras, fora substituída pelo fade desarmônico da televisão e pelo diálogo encurtado de jovens apressados sem tempo de escutar o prelúdio das estrelas, visível e audível apenas para os corações apaixonados.




domingo, 30 de novembro de 2008

OS INSTANTES FINAIS DE NELO

Para Antonio Torres
Um grande escritor
Um grande irmão.



Meninos, eu conto!

No momento em que Nelo subiu no cadafalso não sentiu orgulho ou vaidade de sua proeza suicida. Nem pena, queixa ou comiseração por si mesmo. Sentiu apenas o fardo pesado da responsabilidade de não se arrepender quando o nó da corda apertasse, mortalmente, o seu pescoço. Não haveria tempo para retroceder. Antegozava a cara de espanto do seu irmão Totonhim, na manhã seguinte, quando viesse ao seu encontro. E a incredulidade que dominaria a cidade na hora do almoço. As notícias ruins têm asas, voam mais rápidas que o pensamento. E ninguém tem apetite com um cadáver à sua porta, esperando um convite para sentar à mesa. Seria lembrado e comentado por muitos verões.

Sua vida desfilou em flashes consecutivos e, no delírio da loucura, viu caixõesinhos azuis perpassando nas paredes em cortejo fúnebre de cachorro, e o lobo, atordoado, seguia os homens de pés redondos que viajavam de táxi para Viena D’Áustria, ouvindo Amadeus, ou não ouvindo ninguém, ou talvez, ouvindo o apelo das suas vísceras famintas, expostas ao calor inclemente da seca que torra o juízo, e da fome que torna o vivente civilizado em um dublê de canibal.

Na indignidade da vida, seria um morto digno, assim epigrafou a sua carta ao bispo de Alagoinhas, a qual arrazoou a sua atitude extrema, sua vindita fatal. Não queria perdão, réquiem, exéquias ou missa em dó maior. Enquanto vivo, foi explorado pela família, traído pelos amigos e incompreendido pelo irmão. Ninguém nunca lhe perguntou sobre a sua saúde, suas angústias, seu medo ou se precisava de alguma coisa, ao menos, uma palavra de carinho, um conforto, um gesto de solidariedade. Não. O mundo, esse imenso circo, é que lhe devia perdão.

Quando a balada da sua infância perdida ficou pronta, estava mais desnorteado que cego em tiroteio. Na selva de pedra a realidade era outra. O frio, a fome e a solidão eram companheiros constantes. Poderia fazer coro com Luiz Gonzaga e cantar “penei, mas aqui cheguei”, porém seus acordes eram agoniados e lamentosos, mais lembravam um cão uivando para a lua. Seu prólogo no Sul Maravilha foi cheio de sofrimento e exaustão física e mental. Seu prelúdio na vida sentimental foi um amontoado de erros e equívocos. Seu desfecho foi uma tragédia grega.

Haverá os que julgarão prematuro e irresponsável o seu último ato. Outros o chamarão de louco, principalmente aqueles que não mais irão chupar o seu sangue feito sanguessugas. Outros encontrarão motivos suficientes para encher a cara na bodega de Pedro Infante. Porém, nenhum indagará sobre os reais motivos que o levaram a brincar de Deus. Ou sabem e se calam, incomodados pela consciência desnuda, cada um carregando a própria culpa.

Quando Nelo retornou para essa terra, queria apenas ser o centro das desatenções. Achou que o tempo havia mudado o povo e seus interesses mesquinhos, os fuxicos, as fofocas, a ganância e a exploração dos que seguem caminho e conseguem melhorar de vida. Segundo Nego de Roseno, protagonista de uma acirrada disputa por um pé de feijão que levou Nelo a tomar destino do Sul Maravilha, os que fracassam nessa terra não têm hora nem vez no meio dessa gente. São relegados à escória, escorraçados do convívio social. São uns aproveitadores, uns abutres, que se dizem nobres, mas não passam de sequestradores, nobres sequestradores do suor alheio, cujo resgate só será pago no dia de São Nunca.

Tudo isso reviu Nelo, no tênue instante que separou o retesamento da corda e o fim dos seus estertores. E ainda teve tempo de ver a imagem de sua mãe passando a linha pelo buraco da agulha e do seu pai, na sombra do juazeiro, construindo seu caixão. Sem mágoa, angústia ou ressentimento, se despediu:

- Adeus, velho! Cuide bem de Minu, meu gato azul.


N. A. – Nelo é o personagem central do livro “Essa Terra”, e aqui neste conto está citada toda a obra do escritor Antonio Torres, que pode ser conferida em www.antoniotorres.com.br

sábado, 29 de novembro de 2008

CONTO DE NATAL

De Noel

É difícil dizer qual festa era a melhor em Alagoinhas: micareta, São João ou Natal, cada uma com sua peculiaridade, mas posso assegurar que o Natal era uma festa alegre, de participação popular e de muita animação.

O Clube dos Dirigentes Lojistas espalhava vários alto-falantes pelo circuito comercial e o povo era bombardeado ininterruptamente com mensagens e músicas natalinas. Quem ficava em casa, com o rádio ligado, sofria o mesmo bombardeio da emissora de rádio AM, única modalidade de radiodifusão de então; a freqüência modulada (FM) surgiu muitos anos depois.

Impossível não se envolver com o clima e o espírito natalino. Era uma afronta passar a véspera ou o dia do Natal sem provar da simplicidade da ceia dos parentes e amigos. Simples, porém farta. Bebidas a escolher. Comida a enjoar. Nada de nozes, panetone, castanha do Pará, iguarias que nada tinham a ver com a cultura e tradições da terra. Para azar do galináceo gigante, o peru era essencial.

O ápice da festa era o parque de diversões. Ocupando uma imensa área com seus brinquedos endiabrados, divertia mais do que o trio elétrico na micareta. Trem-fantasma, montanha-russa, autorama, roda-gigante, jogos eletrônicos, tiro ao alvo, caça ao pato e a bizarra Monga, a mulher-macaco, a surrealidade fantástica do jogo de espelho. Todo mundo sabia que era mentira, mas não ficava um valente sem correr quando Monga, uma gostosona em trajes sumários, se transformava em gorila e ameaçava abrir a jaula.

Do mesmo jeito assustador era o trem-fantasma. Mesmo sendo aconselhado a não descer do trenzinho sob qualquer circunstância por causa do trilho eletrizado, um infeliz não suportou o medo e pulou fora, na escuridão, vindo a morrer eletrocutado. Deixou um natal triste para a família e o parque com um brinquedo a menos, interditado pela polícia técnica.

Nessa época a urbe alagoinhense girava em torno dos cem mil habitantes. Desse total, metade ficava em casa recebendo os amigos e a outra metade se divertia no parque, normalmente os casais de namorados ou os solteiros em busca de acasalamento. Estes últimos preferiam sentar à mesa dos vários bares improvisados que circundavam os brinquedos. Paquera, bebidas e tira-gostos, pois ninguém era de ferro.

Eu ajudava um tio em um armazém de secos e molhados, um dos maiores da cidade, e, para compensar o tamanho da loja, ganhava um salário de fome. Ele dizia que se fosse para pagar mais, contratava um estranho. Isso me obrigava a fazer malabarismo com o salário, apenas o mínimo do necessário para ter sempre uma reserva para gastar com a namorada, principalmente em época de festa natalina. Além de pagar os bilhetes dos brinquedos da donzela, tinha também que bancar o pirralho do cunhado, o segurador de vela, o atrapalha-amasso. Não sei se era azar ou trabalho feito, mas toda namorada que arranjava tinha um irmão menor a nos acompanhar.

O Juizado de Menores marcava cerrado nas barracas de bebidas alcoólicas. Quando era flagrado menor de idade bebendo, a barraca era fechada e o dono levado para a Delegacia, onde passava a noite no xilindró. A reincidência valia prisão por mais dias e pesadas multas. Ao menor infrator nada acontecia a não ser o constrangimento de ter que sair da mesa sem pagar a conta.

Havia dois amigos maiores de idade: Luiz de Tenô, vindo do arraial do Junco, e Valdevino, companheiro de outros bares. Havia os menores: meu primo Paulo, meu irmão Décio e eu. A gente ia para o parque junto, exceto Valdevino, e, quando chegávamos lá, parávamos na barraca mais movimentada porque chamava menos a atenção para a presença de menor na turma. Barba e bigode despontando, Paulo e eu passávamos despercebidos, dava para enganar a torcida; Décio, o mais novo, bebia apenas refrigerante. Depois que a gente se instalava, fazia a festa: whisky, tira-gosto e cerveja. Muita cerveja. Às vezes juntava mais gente na nossa mesa e o dono alargava o sorriso, sem desconfiar que quase todo mundo estava abaixo da idade das responsabilidades. Queria vender; queria lucrar.

Por volta da meia-noite aparecia Valdevino, trajando um colete do Juizado de Menores. Policiais militares faziam sua segurança. Dirigia-se à nossa mesa, sem demonstrar a menor intimidade conosco. Pedia nossos documentos. Ameaçava prender o dono da barraca por vender bebida alcoólica à menor de idade. Mandava a gente ir embora sem pagar a conta nem olhar para trás. Obedecíamos como cordeirinhos. Antes de sairmos, na maior desfaçatez, aplicava um sermão em Luiz de Tenô, chamando-o de irresponsável e ameaçando prendê-lo também caso reincidisse na infração. No outro dia nos instalávamos em outra barraca e o processo se repetia, inclusive o sermão.

Essa farra durou por alguns natais, até uma noite que Valdevino não compareceu. Ficamos sem saber o que fazer, especulando motivos para a ausência do salvador da pátria. Esperamos até três horas da manhã, o parque foi esvaziando, a barraca também, e colocamos o plano B em operação. Retirada estratégica. Saía um de cada vez para não dar na vista; o último fingia que ia tirar água do joelho e se mandava no meio do povo. O dono da barraca desconfiou e segurou Luiz de Tenô, o último a ficar. Como a conta estava alta e ele com pouco dinheiro, penhorou sua corrente de prata e o relógio banhado a ouro.

No outro dia fizemos uma vaquinha e resgatamos os objetos do Luiz. Passamos na casa de Valdevino para saber do acontecido. Ele estava no hospital, com algumas costelas fraturadas. Segundo seu irmão, fora atropelado quando se dirigia ao parque e o motorista evadira-se do sinistro. Ninguém anotara a placa do carro. Coitado do Valdevino: passaria duas semanas internado, o que nos obrigou a bebermos a conta-gota, pois ainda havia dez dias de festa e diversão pela frente.

No Natal seguinte eu já morava em Salvador. Apesar de haver festa no Largo na Lapinha, parque de diversão em Água de Menino, e amigo comissário do Juizado de Menores, não foi mais possível aplicar o golpe. A cidade era outra, os amigos eram outros e o Tempo havia devorado a minha inocência. 



terça-feira, 18 de novembro de 2008

CORRAM QUE A POLÍCIA VEM AÍ!

A rapaziada do arraial do Junco anda meio tiririca com a Polícia que de vez em quando aparece para estragar a festa em torno do quiosque do Jânio. Ou seja, estacionam seus mini-trios elétricos para rodadas etílicas sem se incomodarem com a perturbação do sossego alheio. Alguns alegam que não há nada para se fazer na cidade e por isso se divertem ao som das suas músicas preferidas que, geralmente, não são as preferidas da vizinhança.

Em Salvador, a Secretaria do Meio Ambiente resolveu limitar os decibéis nas casas noturnas e isso, segundo os comerciantes do ramo, está causando um enorme prejuízo, pois, a partir da meia-noite, eles são obrigados a reduzir o som a limites de rádio de pilha.

Quando eu tinha bar aqui em Maceió havia uma placa bem grande afixada em local visível: “É proibido som de carro”. Isso fez os vizinhos arrefecerem os ânimos e se tornarem os mais freqüentes fregueses. Vizinho de boteco é bom como cliente; como inimigo é péssimo negócio. Além do mais, som alto, em vez de prazeroso, torna-se uma tortura aos ouvidos e ataca o sistema nervoso.

O abuso do som alto vai de encontro a três leis diferentes: a Resolução 204 do Contran; o Art. 42 e 65 do Código Penal e o Art. 54 da Lei de Crime Ambiental.

A Resolução 204 do Contran prevê:

Art. 1°. A utilização, em veículos de qualquer espécie, de equipamento que produza som só será permitida, nas vias terrestres abertas à circulação, em nível de pressão sonora não superior a 80 decibéis - dB(A), medido a 7 m (sete metros) de distância do veículo.

As penalidades são previstas no Código Nacional de Trânsito:

Art. 228. Usar no veículo equipamento com som em volume ou freqüência que não sejam autorizados pelo CONTRAN:

infração - grave;
Penalidade - multa;
Medida administrativa - retenção do veículo para regularização.

Já na Lei de Contravenção Penal encontramos os seguintes Artigos:

Art. 42. Perturbar alguém, o trabalho ou o sossego alheios:

I - com gritaria ou algazarra;

II - exercendo profissão incômoda ou ruidosa, em desacordo com as prescrições legais;

III - abusando de instrumentos sonoros ou sinais acústicos;

IV - provocando ou não procurando impedir barulho produzido por animal de que tem guarda:

Pena - prisão simples, de 15 (quinze) dias a 3 (três) meses, ou multa.

Art. 65. Molestar alguém ou perturbar-lhe a tranqüilidade, por acidente ou por motivo reprovável:

Pena - prisão simples, de 15 (quinze) dias a 2 (dois) meses, ou multa.

Na Lei de Crime Ambiental, encontramos o seguinte:

Art. 54. Causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora:
Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
§ 1º Se o crime é culposo:
Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano, e multa.

Como podemos observar, o usuário de som no carro que não observa a tolerância permitida, está incorrendo em vários crimes devidamente tipificados em nossas Leis, podendo até ser preso e processado por isso.

Portanto, antes de ligar seu mega-amplificador e levantar a tampa traseira do seu carro, pense na sensibilidade auditiva das pessoas ao redor e de que o seu gosto musical não será necessariamente o do seu vizinho. Observar tal norma de comportamento o levará a uma convivência harmônica com a vizinhança além de evitar outros aborrecimentos e constrangimentos previstos em lei.




segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Cadê a Vergonha Dessa Gente?

Wilton amava Pedrito, que amava Robério, que amava Wilson, que amava Joaquim que odiava Wilton, que odiava Cafuringa, que amava Muriçoca, que amava Joaquim. Um dia Wilton rompeu com Pedrito. Pedrito amava Muriçoca, que amava Cafuringa, que amava Joaquim, que amava Wilton.

Muriçoca rompeu com Joaquim que se uniu a Wilton. Marta ama Pedrito. Marta é a primeira suplente e torce pela queda de Muriçoca que se não conseguir dois terços dos votos dos vereadores terá suas contas definitivamente rejeitadas e sua posse no dia primeiro irá para o beleléu. De cara, já conta com três votos contra: o da relatora, o de Geckson e o de Marta, que, claro, não vai votar pela moralidade, mas para sua própria sobrevivência política.

Muriçoca promete fidelidade canina a Joaquim se for salvo pelo gongo. Joaquim torce o nariz porque gato escaldado tem medo de água fria. Salvar o pescoço de Muriçoca é trair seus eleitores. É dizer que Muriçoca tinha razão quando discursava inflamado disparando ofensas a todo mundo, inclusive ao próprio Joaquim.

Há vereadores da base de Joaquim articulando para aprovar as contas de Muriçoca e fazê-lo refém da base governista. Se tal acontecer, isso será uma indecência, um golpe naqueles que acreditaram no projeto de mudanças e que ninguém jamais ouviria novamente o nome de certas figuras. Quem traiu uma vez, não terá o mínimo constrangimento em trair a segunda, como está Muriçoca na iminência de trair o seu atual grupo a troco de salvar o próprio pescoço. Logo eles, seus amigos, que passaram a mão por cima dos seus erros administrativos. Logo eles que cederam o palanque a Muriçoca, mesmo sabendo que o mesmo tiraria votos do candidato Tonho. Sem o menor despudor, Muriçoca passará a fazer parte da bancada governista e, como o lobby a seu favor é muito grande, não estranhem se ele se transformar no novo presidente da Câmara de Vereadores.

Como votarão os atuais vereadores da oposição? São quatro, mas Muriçoca votará a seu favor, claro. Marta, como já disse, deve votar contra. E os outros dois? Zé Martins e Eduardo votarão contra ou a favor, de antemão sabedores que serão traídos por Muriçoca? Para Eduardo, a saída de Muriçoca o colocará na primeira suplência. Para Zé Martins, é mais confiável ter Marta na Câmara no próximo ano do que o Muriçoca, que seguirá as ordens do chefe Joaquim.

Joaquim me garantiu que não vai se meter nessa berlinda indecorosa. Mesmo assim, façamos pressão sobre os vereadores porque votar a favor das contas de Muriçoca é depor contra todos os homens de bem que votaram em Joaquim acreditando em mudanças. Votar a favor é dar um tiro de misericórdia na decência humana.




sábado, 15 de novembro de 2008

A CHEGADA DO CIRCO

Assim como o ímã e o gelo impressionaram a Macondo do colombiano Gabriel Garcia Marques, a Petrobrás, com suas máquinas maravilhosas, e o circo de variedades e touradas, de Zé Linguiça, maravilharam a Macondo do baiano Antonio Torres. A chegada da Petrobrás, no Junco, foi um momento inesquecível, de emoções indescritíveis. As aulas da professora Serafina foram suspensas, os presos comuns foram perdoados, os presos políticos foram anistiados e soltos (para que dessem testemunho do progresso), o padre Edson rezou missa solene e o cabo de turma da Geofísica, empreiteira da Petrobrás, recebeu a chave da cidade, em cerimonial de gala. Era a apoteose apoteótica de um povo embasbacado pelo cheiro da gasolina, muito bem traduzido no espetáculo pirotécnico proporcionado por Zezito Fogueteiro.

O Gran-Circo de Variedades e Touradas, de Zé Linguiça, chegou na poeira dos caminhões da Petrobrás, mexendo com os sonhos e ilusões daquela gente simples e carente, principalmente, de emoções. Foi nele que, pela primeira vez, o povo se deliciou com um show de verdade, de um artista cantado e tocado nos quatro cantos do mundo: Osvaldo Fahel, o seresteiro da Bahia, do Brasil, do mundo, cuja voz chegava até ali pelas ondas hertzianas da Rádio Sociedade de Feira de Santana. E fez coro com a música “Morena Bela”, vibrou e chorou com os acordes do “Adeus do Baiano”, música que expressava a tristeza do baiano ao deixar o seu estado natal:
Moço, quem deixa a Bahia
Não parte contente não
Leva uma pedra de gelo
No lugar do coração.”

Quem, naquela delirante plateia, não já havia pensado em largar tudo e se mandar para São Paulo no primeiro caminhão-pau-de-arara que aparecesse?
O circo, coberto de lona colorida e esburacada, foi apelidado de “Circo Tomara Que Não Chova”. Naquela terra, que não chovia nunca, nem precisava de cobertura. A alma do circo, o palhaço, era o próprio Zé Linguiça, que não tinha graça nenhuma. Mas, naquele curto momento, ele se sentia o maioral, o melhor de todos. Não existia um referencial. A rumbeira, parte integrante de qualquer espetáculo circense daqueles tempos, era uma bailarina gordinha e desajeitada, que insistia em imitar a sensualidade das odaliscas. Por ser a esposa do Zé Lingüiça, a plateia se comportava educadamente, sem assobios ou gritos desrespeitosos. A orquestra, desafinada, era composta pelos intrépidos toureiros, que se vestiam a caráter, feito toureiros de Espanha. Jovens e garbosos, atraiam as mulheres como açucareiro atrai formiga. Raro não se sentir inveja do elegante “Valete”, o mais famoso e o mais assediado. Não a inveja lúgubre dos corações mesquinhos que corrói a alma, mas a ardente vontade de se tomar parte nos loiros da glória, de se ser parceiros nos braços da fama. E das mulheres.
A marcha “Toureiro”, na voz de Nelson Gonçalves, tinha um apelo sentimental e era tocada repetidas vezes, chamando o povo para o espetáculo. Cantava a valentia do toureiro e do amor por sua amada d’além-mar:
“Toureiro,
Sou toureiro de Madri,
Sou toureiro, sou valente,
E nunca na arena
Um touro eu perdi.
Mas, se eu sou um bom toureador,
É porque Manolita Bonita
Me deu o seu amor...” 

Olé! Quantos ali, olhando o céu estrelado pelos buracos da lona, não sonhavam com o amor de Manolita de Espanha? Totonho de Praxedes, meu primo carnal, foi um deles. Dormiu extasiado nos braços macios e perfumados de Manolita Bonita e acordou horas depois nos braços cabeludos e suados de Zé da Perninha, farmacêutico, adepto do empirismo, e especialista em desmaios por queda. Entregou-se aos braços de Morfeu no alto do galinheiro do circo, no último degrau, e deu uma embocada brilhante, hilariante, e o povo não sabia se acudia ou se ria. Durante muito tempo esse episódio foi relatado nas rodadas etílicas e por isso ele jurou vingança.

Quem ri por último ri melhor, lembrou-se meu primo Totonho desse ditado popular. Todos ainda haveriam de se curvar ao seu talento. Treinou duro com os bezerros no curral da roça do seu pai. Adquiriu jeito e trejeitos do valente Valete, seu ídolo. E assim, como a vida imita a arte, ou vice-versa, tal qual o coronel Aureliano Buendia que, diante do pelotão de fuzilamento se recordou da tarde em que seu pai o levou para conhecer o gelo, Totonho de Praxedes, diante dos chifres assustadores do touro, recordou-se da noite em que seu pai o levou para conhecer o circo. Ao acordar, na farmácia de Zé da Perninha entre esparadrapos e éter, teve a lucidez de perceber que o líquido hemático que tingia de vermelho as mãos e a camisa do farmacêutico não era apenas o sangue que se esvaía de suas veias; por aquela fenda também escorria seu orgulho ferido na chifrada. Suspirou triste e resignado ante a constatação de que a vergonha daquela empreitada mal sucedida doía mais do que a imensa ferida aberta no seu peito. 

- Hoje tem espetáculo?
- Tem sim senhor!
- E o palhaço o que é?
- É ladrão de mulher! 


quinta-feira, 6 de novembro de 2008

DE JOÃO DA CRUZ A BARACK OBAMA


No arraial do Junco primitivo o negro foi mero figurante na geografia sócio-cultural, sem nenhuma importância no desenvolvimento econômico. Ou seja, não houve o elemento negro na preparação da terra nem movimentando as engrenagens urbanas.
Dizem que João da Cruz quando apeou no sagrado solo junquês trazia um negro escravo na garupa. Só um. Sendo ele um simples vaqueiro, é difícil de se entender para que ele queria um escravo e como o mantinha sob o seu jugo no ir e vir da inospitalidade sertaneja. Seria ele um cavaleiro e o negro o seu fiel escudeiro ou andava na contramão da história quando a escravidão negra só era possível no litoral, nas casas grandes e senzalas, principalmente?
Quem assistiu ao filme “Narradores de Javé”, viu o quanto o povo puxa a brasa para a sua sardinha na hora de narrar os fatos históricos. Javé era uma cidade do tamanho do Junco, que ia ser inundada pela barragem. Disseram que, se a cidade tivesse um fato histórico, a inundação seria barrada. E a população tratou de escrever a história da cidade, cada um enaltecendo ao seu modo os feitos heróicos do fundador de Javé. Assim como os narradores de Javé, os narradores do Junco deram um negro escravo a João da Cruz para enaltecer sua qualidade econômica à luz da História.
Quando pesquisava para o livro “arraial do Junco”, alguns depoentes se orgulhavam de sua porção nobre d’além-mar, propositadamente esquecidos de que o nosso DNA branco se esvaíra ao longo das eras, diluído nos constantes cruzamentos do caboclo com o índio. Ou melhor: com a índia. Não se sabe de nenhuma cabocla se deitando com o índio. Estas, se casavam com os primos, gente de nome e sobrenome. Principalmente sobrenome. Quando não havia primo para se casar, fugiam na garupa do cavalo do primeiro curiboca que aparecia.
A nossa mestiçagem é fruto genuíno do cruzamento do branco com o índio, mais propriamente com a índia, e quando o negro pisou o solo junquês, este já estava com sua povoação devidamente constituída em sua linhagem genética e fortemente segregacionista em suas relações sócio-culturais. O Junco que recebeu bem alguns negros remediados, foi o mesmo que desdenhou de outros renegados da sorte. Havia o “Doutor Fulano” e o outro que era apenas “Negão”. Negão tinha nome, mas ninguém sabia ao certo. Para que nome se sua sina de escravo continuava? A bajulação ao primeiro vinha da afirmação racista “preto com alma branca” enquanto que o segundo era visto como negro de senzala.
Fujo do arraial do Junco para a corrida final de Fórmula 1, em São Paulo, no último domingo, onde todo mundo aplaudiu um branco, mas teve que se curvar reverente a um jovem negro que mostrou ao mundo a igualdade da cor. No meio da semana, outro negro entrou pela porta na frente nos anais da História ao eleger-se presidente dos Estados Unidos e, por extensão, Imperador Supremo do Resto do Mundo. Meu finado avô, que era extremamente racista, só não está a afligir-se no túmulo porque não sabe da real importância de um negro governar a América. Obama chega à Casa Branca levado pela mesma utopia que colocou Lula no Planalto, aliás, usando o mesmo mote de campanha que emocionou multidões: “sem medo de ser feliz”.
Dizem que a eleição de Obama será o resgate do sonho americano. O sonho dos doze Césares: a expansão imperialista. “Veni, vidi, vici!” Na mensagem enviada ao futuro inquilino da Casa Branca, o primeiro-ministro francês disse que o mundo necessita de um grande líder. Será Obama esse “grande líder” que satisfará a ânsia francesa? Vercingetórix, o druida e herói gaulês que se insurgiu contra a ocupação romana da Gália em 53 a.C., com certeza chorou de vergonha por ter se sacrificado por um povo que mais tarde sentiria falta de um imperador.
A minha avó já dizia que canja de galinha e precaução não faz mal a ninguém. A frustração pode ser grande e geral para os que habitam fora das divisas americanas. Cogitar-se que Barack Obama será um imperialista amigo do terceiro mundo só por causa de sua cor, é presumir que um papa afro-descendente tornará a Umbanda a religião oficial do Vaticano.
Alea jacta est.



domingo, 2 de novembro de 2008

O Jegue Barroso*

Foi, deveras, o jegue mais famoso de toda a história da região. Fama adquirida pela sua sanha devassa e insaciabilidade sexual. Ele sentia o cheiro da fêmea no cio a léguas de distância e não sossegava enquanto não consumasse seu intento. Pulava cerca de macambira, se rasgava no arame farpado e atacava jega devidamente montada, colocando o montador em risco de se machucar com as investidas vigorosas e insistentes do jumento. Não adiantava gritar, ameaçar ou bater. Seu instinto animal era mais forte que a dor.

Era um verdadeiro deus-nos-acuda quando surgia uma jega no cio. Ou um espetáculo para os moleques e devassos; uma vergonha para as moças de família.

- Deus nos acuda! - gritou o padre, interrompendo o cântico.

O Junco vivia um prenúncio de estiagem. O vento nordeste soprava seu hálito quente, seco, levantando redemoinho de poeira que vinha da Rua da Bomba até a Praça do Tamarindeiro. A água do Tanque Velho há muito que secara e o Tanque do Município, também chamado de Tanque Novo, fornecia suas últimas gotas. A seca rondava o sertão e os roceiros, apreensivos e angustiados, andavam em procissão, chapéu na mão, pedindo proteção ao Senhor. O padre puxava os cânticos, acompanhado por centenas de vozes graves e agudas. 

Avééé, avéé; avemariiiaa! – cantavam em louvor a Nossa Senhora do Amparo, já chegando próximo à escadaria da igreja, quando se ouviu um relincho, dois relinchos, três relinchos, tropel de jegue a galope descendo a Rua Maria Gouveia, e eis que surge uma jega em desabalada carreira em direção do povo, seguida do jegue Barroso, que tentava montá-la em desespero de causa, ocasionando um verdadeiro alvoroço entre os devotos. O padre, após pronunciar o apelo já citado acima, segurou a barra da batina e subiu as escadas em desespero, se enrolando no cordão batinal, se estatelando no chão. O povo, em pânico, se espremia na porta da igreja, cada um querendo a preferência e não entrando ninguém. O padre, recomposto da queda, excomungou o jegue e todos os seus ascendentes e descendentes. De quebra, amaldiçoou também o seu dono.

Uma hora depois os milicianos conseguiram demover o jegue Barroso de suas intenções libidinosas, afastando sua pretendente para bem longe. O dono do inditoso teve que arcar com o prejuízo de uma multa imposta pelo delegado e por uma penitência de cem pais-nossos e trezentas ave-marias. 

*Crônica baseada no cordel “O Jegue Barroso”, de José Pedreira da Cruz.
(Extraído do livro "Arraial do Junco: Crônica de Sua Existência)

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Por Um Pé de Feijão

Abrindo alas para o mestre.

Antônio Torres


Nunca mais haverá no mundo um ano tão bom. Pode até haver anos melhores, mas jamais será a mesma coisa. Parecia que a terra (á nossa terra, feinha, cheia de altos e baixos, esconsos, areia, pedregulho e massapê) estava explodindo em beleza. E nós todos acordávamos cantando, muito antes do sol raiar, passávamos o dia trabalhando e cantando e logo depois do pôr-do-sol desmaiávamos em qualquer canto e adormecíamos, contentes da vida.

Até me esqueci da escola, a coisa que mais gostava. Todos se esqueceram de tudo. Agora dava gosto trabalhar.

Os pés de milho
cresciam desembestados, lançavam pendões e espigas imensas. Os pés de feijão explodiam as vagens do nosso sustento, num abrir e fechar de olhos. Toda a plantação parecia nos compreender, parecia compartilhar de um destino comum, uma festa comum, feito gente. O mundo era verde. Que mais podíamos desejar?

E assim foi até a hora de arrancar o feijão e empilhá-lo numa seva tão grande que nós, os meninos, pensávamos que ia tocar nas nuvens. Nossos braços seriam bastantes para bater todo aquele feijão? Papai disse que só íamos ter trabalho daí a uma semana e aí é que ia ser o grande pagode. Era quando a gente ia bater o feijão e iria medi-lo, para saber o resultado exato de toda aquela bonança. Não faltou quem fizesse suas apostas: uns diziam que ia dar trinta sacos, outros achavam que era cinqüenta, outros falavam em oitenta.

No dia seguinte voltei para a escola
. Pelo caminho também fazia os meus cálculos. Para mim, todos estavam enganados. Ia ser cem sacos. Daí para mais. Era só o que eu pensava, enquanto explicava à professora por que havia faltado tanto tempo. Ela disse que assim eu ia perder o ano e eu lhe disse que foi assim que ganhei um ano. E quando deu meio-dia e a professora disse que podíamos ir, saí correndo. Corri até ficar com as tripas saindo pela boca, a língua parecendo que ia se arrastar pelo chão. Para quem vem da rua, há uma ladeira muito comprida e só no fim começa a cerca que separa o nosso pasto da estrada. E foi logo ali, bem no comecinho da cerca, que eu vi a maior desgraça do mundo: o feijão havia desaparecido. Em seu lugar, o que havia era uma nuvem preta, subindo do chão para o céu, como um arroto de Satanás na cara de Deus. Dentro da fumaça, uma língua de fogo devorava todo o nosso feijão.

Durante uma eternidade, só se falou nisso: que Deus põe e o diabo dispõe.

E eu vi os olhos da minha mãe ficarem muito esquisitos, vi minha mãe arrancando os cabelos com a mesma força com que antes havia arrancado os pés de feijão:

- Quem será que foi o desgraçado que fez uma coisa dessas? Que infeliz pode ter sido?

E vi os meninos conversarem só com os pensamentos e vi o sofrimento se enrugar na cara chamuscada do meu pai, ele que não dizia nada e de vez em quando levantava o chapéu e coçava a cabeça. E vi a cara de boi capado dos trabalhadores e minha mãe falando, falando, falando e eu achando que era melhor se ela calasse a boca.

À tardinha os meninos saíram para o terreiro e ficaram por ali mesmo, jogados, como uns pintos molhados. A voz da minha mãe continuava balançando as telhas do avarandado. Sentado em seu banco de sempre, meu pai era um mudo. Isso nos atormentava um bocado.

Fui o primeiro a ter coragem de ir até lá. Como a gente podia ver lá de cima, da porta da casa, não havia sobrado nada. Um vento leve soprava as cinzas e era tudo. Quando voltei, papai estava falando.

- Ainda temos um feijãozinho-de-corda no quintal das bananeiras, não temos? Ainda temos o quintal das bananeiras, não temos? Ainda temos o milho para quebrar, despalhar, bater e encher o paiol, não temos? Como se diz, Deus tira os anéis, mas deixa os dedos.

E disse mais:

- Agora não se pensa mais nisso, não se fala mais nisso. Acabou. Então eu pensei: O velho está certo.

Eu já sabia que quando as chuvas voltassem, lá estaria ele, plantando um novo pé de feijão.



domingo, 26 de outubro de 2008

J. GODOY, O RÁDIO-APRESENTADOR



J. Godoy é um conterrâneo, assim como muitos de nós, exilado de sua terra, sem a mínima perspectiva de retorno.
Fincou sua bandeira profissional em Ribeira do Pombal, cidade co-irmã do arraial do Junco, às margens da BR – 110, a um passo do Raso da Catarina, região muito utilizada por Lampião e seus cabras que encontraram na caatinga abrigo seguro para suas vidas fugidias. Foi perto de Pombal, na cidade de Santa Brígida, que Maria Bonita arrumou sua trouxa para seguir ao lado do maior cangaceiro da história.

Fui apresentado a ele pelo “hermano” Herval, outro junquês perdido nas lides soteropolitanas, em pleno bate-papo virtual. J. Godoy é apresentador de um programa romântico e podemos encontrá-lo quebrando o silêncio e a solidão noturna via ondas hertzianas ou cibernéticas, pelo site da Rádio Pombal FM. A tecnologia dos últimos tempos nos permite ouvir em tempo real as emissoras de rádio instaladas nos confins. E Pombal saiu à frente das outras rádios interioranas levando sua programação para todo o mundo. Graças a esse recurso tecnológico, passo as noites ouvindo a boa programação do nosso conterrâneo, como também, interagindo, ao solicitar pelo MSN as músicas que quero ouvir enquanto trabalho no meu micro. Ele, sempre solícito, além de colocar as músicas, ainda me saúda no ar, falando o local onde estou.

Não me lembro do nome do programa, mas vai ao ar de segunda à sexta-feira das 21 horas a uma da manhã. Pode-se ouvir pelo site http://www.pombalfm.com.br e interagir pelo MSN do nosso amigo, que deixarei aqui e sei que o mesmo não vai se opor, vez que, sendo ele um homem que trabalha com o público, vai se sentir honrado em tê-lo como ouvinte e, principalmente, participar da sua grade programática. Eis seu MSN: jgodoyfm@hotmail.com

Aproveite o programa do Godoy para enviar mensagens rápidas para seus amigos naquelas plagas ou em outras. Ou então combinem se encontrar no ar e compartilhar da programação, que, diga-se de passagem, é uma das melhores e o nosso amigo e conterrâneo está de parabéns pelo bom gosto.

Temos outro radialista da terra perdido na deselegância discreta de Sampa: Eddy Luem, também compositor e músico. Não sei qual a rádio que ele trabalha, nem horário, e pediria até que ele enviasse o endereço eletrônico caso a mesma tenha programação on line. Seu trabalho como artista da música pode ser visto no seu blog http://eddyluemshow.blogspot.com


Como a otimização e redução de custo das empresas de radiodifusão estão acabando com a profissão do apresentador, principalmente nas freqüências moduladas onde chamam de “adequação ao modernismo tecnológico”, poder ouvir a voz de um locutor ao vivo é viajar a um passado não longínquo onde interagir ao vivo via telefone, ou então enviar mensagens através de cartas, era muito mais que participar: era sentir-se prestigiado pelo apresentador.



sábado, 25 de outubro de 2008

PEQUENA CRÔNICA A AIMÊE

Aymêe não é coisa de Dona Deusinha. Quando ela veio ao mundo, a mãe disse a seu Totó para registrar “Aimée”, palavra francesa cujo significado refletia sua condição de caçula: amada. Vira esse nome no Almanaque e assim deveria ser, pois o leite estava escasseando e poria um ponto final nas estripulias do marido. Seria ela a caçula, a mais amada, a mais endeusada, a mais paparicada e querida pelas tias e ponto final. Mas seu Totó era um caboclo simples, não entendia dessas coisas de mãe, e pouca importância deu quando Maricas Coxeba grafou “Aymêe”, numa invencionice que nem Emília seria capaz de praticar no sítio de seu Lobato. Seu Totó ensaiou uma reclamação, mas Maricas Coxeba o convenceu de que com um ipisilone no meio ficava mais chique. Maricas Coxeba falando, quem haveria de contestar?
 
Dona Deusinha era amante das letras estrangeiras e isso obrigava o povo do Junco a falar Inglês, embora a contragosto, pela dificuldade natural em se lidar com letras aborígenes. Nada de Tonho, de Zé, de Mané. Muito menos Mundinha ou Zefa, tão fácil de se falar e escrever. Uma vez o jornalista Marcelo Torres escreveu sobre o culto ao estrangeirismo no arraial do Junco, porém fincou sua enxada vernacular apenas nos amigos, deixando de lado Dona Deusinha, a precursora do anglicismo e do galicismo. Talvez, por ser ele à época um menino ainda moço, ignorava as benesses de se ser um Wilton onde só existia Zé; uma Aymêe onde as mulheres atendiam por Maria.
 
Quando Dona Deusinha engravidava, havia uma expectativa sobre o nome. Ao cumprimentar o pai, a pergunta era inevitável:

– Que palavra inglesa haveremos de aprender a pronunciar dessa vez, compadre Totó?!
– Não vai ser inglesa não. Segundo Deusinha, dessa vez é francesa: Aydée.

Na precariedade educacional daqueles tempos, havia o caráter didático, o desafio ao desconhecido, o trava-língua. A professora Serafina só aprovava o aluno quando ele soletrava corretamente o nome de um, o mais difícil. Chamava o infeliz no canto e tascava:

– Soletre o nome do filho de compadre Totó! – ordenava, batendo levemente a palmatória na mão. Quando ela pegava naquele pedaço de madeira, respondesse certo ou então saísse de baixo.

– Ú-il-tê-ó-tó: Uilto! – disse o aluno, apavorado.
– Esse não... o outro!
– Ú-il-si-ó-só, Uilso!
– Tá me enrolando, seu moleque! O outro, o que mora fora!
– Aaaaahhhhhhhhhhhh! – exclamou triunfal o garoto – Tamém a sinhora num isprica. Esse é fáci: Vê-a-si-vá... agá-in -nê... gê-tê-ó-nê-ton... Uosto!



APENAS UM SIMPLES PRESENTE


Em uma de suas viagens a São Paulo, o meu primo-amigo, mais amigo do que primo, Luiz Eudes, me presenteou com três CD’s da mais fina nata do cancioneiro caipira: os imortais Tonico e Tinoco.

Ressoaram as trombetas da emoção ao ouvir essa afinadíssima dupla. “Casinha de palha / lá no ribeirão (...)” Nessa época, ou seja, no início dos anos sessenta do século passado, eu não sabia o que era um ribeirão. Lá em casa tinha um riacho. E Nininho, meu irmão mais velho, me disse:

– Ribeirão é um riacho grande, muito maior do que esse que a gente se banha todos os dias”.

Fiquei assustado em saber que existia um riacho maior do que o nosso. Não imaginava haver vida além da Ladeira Grande, onde o horizonte impunha limites à nossa visão.

Nos primórdios de minha infância fui bombardeado pelo dueto caipira em ondas de rádio captadas nas antenas da casa da roça. Os dois dominavam as ondas hertzianas do Brasil caboclo, alentando a alma do sertanejo em sua lida nas primeiras horas matinais. No virar da década sessentista, os meios de comunicação no arraial do Junco eram precaríssimos, quase inexistindo. Havia apenas um rádio valvulado, do finado Enoque, cujo funcionamento ficava à mercê de Zé Grosso, o destemido operador do motor de luz. Das 18 horas, quando era ligado o gerador, às 22, quando Zé Grosso dava o primeiro sinal de que a cidade iria mergulhar nas trevas, podíamos ouvir o som do rádio de Enoque, acalentando a nossa alma de música e de notícia das terras civilizadas. No primeiro acesso de loucura de Lindemberg, filho mais velho de Enoque, tocava no rádio a música “O que você foi / fazer no mato / Maria Chiquinha”. Ele se revoltou contra a traição de Maria Chiquinha, jogou o rádio no chão e saiu xingando todo mundo, em direção do bar de Chiquito. Aquilo estava errado, o Junco estava errado, o mundo estava errado, as mulheres (e o rádio de Enoque) não tinham conserto! No bar, mais um prejuízo: quebrou os tacos na mesa de sinuca e saiu correndo pelo meio da rua. Foi preciso mais de dez cabras fortes para dominá-lo, colocá-lo no Jeep da Prefeitura e levá-lo para tratamento médico especializado em Alagoinhas. Depois desse episódio, as noites do arraial do Junco ficaram silenciosas, até que um dia inventaram o transistor e o chamado rádio portátil. Ou de pilha.

Nilton era um rádio-técnico de muita competência na cidade de Serrinha. Foi ele o responsável pela introdução do rádio de pilha no Junco, principalmente nas roças. Rádio fabricado por ele mesmo. O ruim era o consumo excessivo de pilha, também chamada de “carga”, e nem todo mundo dispunha de capital para trocar as pilhas duas a três vezes na semana.

     Nininho, meu irmão, vendeu uma vaquinha para poder comprar um rádio de ondas médias e curtas ao técnico de Serrinha. O restante do dinheiro ele investiu em estoque de pilhas e em uma roupa nova para a festa da Padroeira. Comprou também uma brilhantina Glostora, que deixava o cabelo sempre úmido e brilhante. Forçou o penteado tipo maracanã, deixando a testa livre. Quando o cabelo fixou o penteado, a moda acabou. E Nininho nunca mais conseguiu o penteado original.

Tempos depois o meu tio Durval também comprou um rádio. ABC, a Voz de Ouro, dizia a propaganda. Ficava exposto na prateleira da sala da casa da roça e era exibido com orgulho pelo meu tio. Só ele podia mexer. Padrinho Adelino, meu avô, ganhou um de presente, trazido de Alagoinhas por um dos seus filhos, comerciante naquela cidade. Tonho de Maria de Lolô demorou, mas entrou na onda. Oleiro do meu tio Durval, pediu adiantamento de salário e comprou um, a Nilton, de Serrinha. Meu avô Lolô protestou contra o desperdício de dinheiro do seu genro. Contemporâneo de Antonio Conselheiro, ele achava que o rádio era invenção de Satanás.

Aconteceu uma coisa engraçada no pico da temperatura da febre de rádios transistorizados pelo povo da roça: um cidadão, no dia seguinte à compra, não conteve a curiosidade e partiu o rádio ao meio num só golpe de machado. Queria ver quem era o homem que cabia dentro daquela caixinha e falava com um corno, se explicou depois, envergonhado.

A rádio que mais se ouvia era a Rádio Emissora de Feira de Santana; o programa de maior audiência era o de Jota Luna, na parte da tarde, cujo prefixo musical era “Petite Fleur”, de Sidney Bechet, executada pelo delicioso sax de Chris Barber’s Jazz Band. No Ângelus, as mulheres rezavam “o terço” ao som da Ave Maria, de Gounot, tocada na Rádio Tupy de São Paulo. Infelizmente, para elas, as novelas só eram transmitidas pelas rádios de Salvador, cujas ondas médias não chegavam lá. Somente a Rádio Cultura de Feira de Santana transmitia em ondas curtas.

O meu irmão Nininho, embora nosso pai acordasse a gente muito cedo, só dormia depois das dez horas da noite, após sintonizar a Rádio Nacional de São Paulo e ouvir Tonico e Tinoco cantar. Às quatro da manhã, depois de rezar a Ladainha de Nossa Senhora, ele corria para o rádio, sintonizava a Rádio Tupy de São Paulo para ouvir... Tonico e Tinoco. De vez em quando outros apareciam para cantar, mas a tônica eram os dois irmãos. Quem viveu aquela época e não se emocionou com os sucessos “Tristeza do Jeca”, “Brasil Caboclo”, “Chico Mineiro” e “Gondoleiro do Amor”, música em arranjo de valsa sobre poema de Castro Alves.

"Teus olhos são negros, negros
Como a noite sem luar
São ardentes, são profundos
Como o negrume do mar
Sobre o amargor dos amores
Da vida boiando a flor
Moram teus olhos na fronte
Do gondoleiro do amor.”

     Retorno ao tempo presente. Apenas três minúsculos disquinhos tiveram o poder de aguçar as minhas emoções e aflorar as lembranças adormecidas na grande distância física, geográfica e temporal. Um simples presente de um amigo teve o dom de me fazer mergulhar no passado e recuperar uma história relegada à amnésia do Tempo. Isso me fez evocar os neurônios e descobrir que somos uma geração sem memória e sem história. Não preservamos nada do nosso passado e nossos descendentes terão apenas uma interrogação como elo de ligação entre eles e seus precursores. Que história nossos filhos terão para contar aos seus filhos? Que monumento ou memorial mostrarão aos seus netos? Nem escombros eles terão para soterrar suas amarguras e chorar sua dor de terem sido gerados in vitro. Sem passado, o ser humano é herdeiro apenas de uma proveta. Seria ótimo se os nossos políticos colocassem em seus planos de governo a intenção de resgatar e de preservar a nossa história. E a executassem em sua integralidade.

A História agradeceria.

Publicado no jornal “Gazeta Voz Ativa”