sábado, 25 de outubro de 2008

APENAS UM SIMPLES PRESENTE


Em uma de suas viagens a São Paulo, o meu primo-amigo, mais amigo do que primo, Luiz Eudes, me presenteou com três CD’s da mais fina nata do cancioneiro caipira: os imortais Tonico e Tinoco.

Ressoaram as trombetas da emoção ao ouvir essa afinadíssima dupla. “Casinha de palha / lá no ribeirão (...)” Nessa época, ou seja, no início dos anos sessenta do século passado, eu não sabia o que era um ribeirão. Lá em casa tinha um riacho. E Nininho, meu irmão mais velho, me disse:

– Ribeirão é um riacho grande, muito maior do que esse que a gente se banha todos os dias”.

Fiquei assustado em saber que existia um riacho maior do que o nosso. Não imaginava haver vida além da Ladeira Grande, onde o horizonte impunha limites à nossa visão.

Nos primórdios de minha infância fui bombardeado pelo dueto caipira em ondas de rádio captadas nas antenas da casa da roça. Os dois dominavam as ondas hertzianas do Brasil caboclo, alentando a alma do sertanejo em sua lida nas primeiras horas matinais. No virar da década sessentista, os meios de comunicação no arraial do Junco eram precaríssimos, quase inexistindo. Havia apenas um rádio valvulado, do finado Enoque, cujo funcionamento ficava à mercê de Zé Grosso, o destemido operador do motor de luz. Das 18 horas, quando era ligado o gerador, às 22, quando Zé Grosso dava o primeiro sinal de que a cidade iria mergulhar nas trevas, podíamos ouvir o som do rádio de Enoque, acalentando a nossa alma de música e de notícia das terras civilizadas. No primeiro acesso de loucura de Lindemberg, filho mais velho de Enoque, tocava no rádio a música “O que você foi / fazer no mato / Maria Chiquinha”. Ele se revoltou contra a traição de Maria Chiquinha, jogou o rádio no chão e saiu xingando todo mundo, em direção do bar de Chiquito. Aquilo estava errado, o Junco estava errado, o mundo estava errado, as mulheres (e o rádio de Enoque) não tinham conserto! No bar, mais um prejuízo: quebrou os tacos na mesa de sinuca e saiu correndo pelo meio da rua. Foi preciso mais de dez cabras fortes para dominá-lo, colocá-lo no Jeep da Prefeitura e levá-lo para tratamento médico especializado em Alagoinhas. Depois desse episódio, as noites do arraial do Junco ficaram silenciosas, até que um dia inventaram o transistor e o chamado rádio portátil. Ou de pilha.

Nilton era um rádio-técnico de muita competência na cidade de Serrinha. Foi ele o responsável pela introdução do rádio de pilha no Junco, principalmente nas roças. Rádio fabricado por ele mesmo. O ruim era o consumo excessivo de pilha, também chamada de “carga”, e nem todo mundo dispunha de capital para trocar as pilhas duas a três vezes na semana.

     Nininho, meu irmão, vendeu uma vaquinha para poder comprar um rádio de ondas médias e curtas ao técnico de Serrinha. O restante do dinheiro ele investiu em estoque de pilhas e em uma roupa nova para a festa da Padroeira. Comprou também uma brilhantina Glostora, que deixava o cabelo sempre úmido e brilhante. Forçou o penteado tipo maracanã, deixando a testa livre. Quando o cabelo fixou o penteado, a moda acabou. E Nininho nunca mais conseguiu o penteado original.

Tempos depois o meu tio Durval também comprou um rádio. ABC, a Voz de Ouro, dizia a propaganda. Ficava exposto na prateleira da sala da casa da roça e era exibido com orgulho pelo meu tio. Só ele podia mexer. Padrinho Adelino, meu avô, ganhou um de presente, trazido de Alagoinhas por um dos seus filhos, comerciante naquela cidade. Tonho de Maria de Lolô demorou, mas entrou na onda. Oleiro do meu tio Durval, pediu adiantamento de salário e comprou um, a Nilton, de Serrinha. Meu avô Lolô protestou contra o desperdício de dinheiro do seu genro. Contemporâneo de Antonio Conselheiro, ele achava que o rádio era invenção de Satanás.

Aconteceu uma coisa engraçada no pico da temperatura da febre de rádios transistorizados pelo povo da roça: um cidadão, no dia seguinte à compra, não conteve a curiosidade e partiu o rádio ao meio num só golpe de machado. Queria ver quem era o homem que cabia dentro daquela caixinha e falava com um corno, se explicou depois, envergonhado.

A rádio que mais se ouvia era a Rádio Emissora de Feira de Santana; o programa de maior audiência era o de Jota Luna, na parte da tarde, cujo prefixo musical era “Petite Fleur”, de Sidney Bechet, executada pelo delicioso sax de Chris Barber’s Jazz Band. No Ângelus, as mulheres rezavam “o terço” ao som da Ave Maria, de Gounot, tocada na Rádio Tupy de São Paulo. Infelizmente, para elas, as novelas só eram transmitidas pelas rádios de Salvador, cujas ondas médias não chegavam lá. Somente a Rádio Cultura de Feira de Santana transmitia em ondas curtas.

O meu irmão Nininho, embora nosso pai acordasse a gente muito cedo, só dormia depois das dez horas da noite, após sintonizar a Rádio Nacional de São Paulo e ouvir Tonico e Tinoco cantar. Às quatro da manhã, depois de rezar a Ladainha de Nossa Senhora, ele corria para o rádio, sintonizava a Rádio Tupy de São Paulo para ouvir... Tonico e Tinoco. De vez em quando outros apareciam para cantar, mas a tônica eram os dois irmãos. Quem viveu aquela época e não se emocionou com os sucessos “Tristeza do Jeca”, “Brasil Caboclo”, “Chico Mineiro” e “Gondoleiro do Amor”, música em arranjo de valsa sobre poema de Castro Alves.

"Teus olhos são negros, negros
Como a noite sem luar
São ardentes, são profundos
Como o negrume do mar
Sobre o amargor dos amores
Da vida boiando a flor
Moram teus olhos na fronte
Do gondoleiro do amor.”

     Retorno ao tempo presente. Apenas três minúsculos disquinhos tiveram o poder de aguçar as minhas emoções e aflorar as lembranças adormecidas na grande distância física, geográfica e temporal. Um simples presente de um amigo teve o dom de me fazer mergulhar no passado e recuperar uma história relegada à amnésia do Tempo. Isso me fez evocar os neurônios e descobrir que somos uma geração sem memória e sem história. Não preservamos nada do nosso passado e nossos descendentes terão apenas uma interrogação como elo de ligação entre eles e seus precursores. Que história nossos filhos terão para contar aos seus filhos? Que monumento ou memorial mostrarão aos seus netos? Nem escombros eles terão para soterrar suas amarguras e chorar sua dor de terem sido gerados in vitro. Sem passado, o ser humano é herdeiro apenas de uma proveta. Seria ótimo se os nossos políticos colocassem em seus planos de governo a intenção de resgatar e de preservar a nossa história. E a executassem em sua integralidade.

A História agradeceria.

Publicado no jornal “Gazeta Voz Ativa”


Um comentário:

Susana Ventura disse...

Bonito demais, Tom Torres. Parabéns pela conquista da felicidade de expressão ( é tão difícil). Beijo, Susana Ventura