sexta-feira, 29 de maio de 2009

- SEGUNDO NEGO DE ROSENO - Antonio Torres


Do livro de contos
"MENINOS, EU CONTO"
Ed. Record - 1999



Imagem: capa frontal do livro "Meninos, eu conto".


– Patrãozinho, me dê uma prata?

– Pra que você quer dinheiro, homem? – disse o menino.

– Me dê uma prata para eu tomar uma.

– Não vai trabalhar? Papai está te esperando.

– Eu vou mas é tomar uma.

– Tome duas e caia logo de vez – disse o menino, pondo as duas moedas na mão do homem e se retirando.

– Deus te ajude, patrãozinho.


Era terça-feira e era o fim de tudo – e o último ser vivo do mundo estava caindo de bêbado, nem bem o sol havia raiado.

Agora não havia mais missa nem feira nem barraca nem pão-de-ló e a rua voltou a ser o que sempre foi: uma solidão única.

O menino percebeu isso ao acordar. Estava sozinho. Como o padre, todos haviam retornado a suas casas de verdade, fazendolas e casebres miseráveis das redondezas que, se somadas, davam mai de nove léguas. Até tio Ascendino, o último dos beatos (o bêbado não contava), tinha abandonado o seu posto e retornado à sua marcenaria. Agora só lhe restava o caminho da roça. O pior não era a solidão. Era a fome. E assim, com as tripas roncando e esfregando os dedos nos olhos para limpar a remela, o menino foi descendo para a venda de Josias Cardoso. Ia comprar um pão de milho. Agora podia comprar o que quisesse, porque as três notas que o padre lhe dera compravam muitas coisas. Mas ia devagar. Lá na roça seu pai o aguardava com uma enxada.


Felizmente não sobraram apenas o menino, o bêbado e o dono da venda. Também havia Nego de Roseno e sua fubica parada na porta do armarinho. A fubica era um pouco mais que o veículo que transportava uma pança negra cheia de níqueis dos roceiros. Era o único orgulho motorizado do Junco – e o prêmio justo para um homem que passara toda uma vida carregando mercadorias no lombo de um burro. O menino também estava fascinado com o progresso desse homem e chegava mesmo a invejar-lhe a liberdade de poder rodar para cima e para baixo na boleia daquele caminhãozinho que, mesmo quebrando e atolando nas estradas, acabava sempre chegando a algum destino. E talvez fosse isso que ele estivesse querendo dizer, nesse momento. Imóvel dentro do armarinho, como se fosse mais um dos caixotes que Nego de Roseno tentava mudar de posição, o menino agora admirava a maneira delicada como ele, um homenzarrão desengonçado, arrumava os frascos de cheiro nas prateleiras. E foi que Nego de Roseno falou. Queria alguma coisa? Queria sim. Aquela camisa ali, quanto é?


Custava mais do que o dinheiro que ele tinha, mas Nego de Roseno deixou pelo dinheiro que ele tinha.


Seu pai é um bom freguês – disse – Vou lhe fazer um desconto.

Seu pai. Agora precisava inventar uma boa mentira para contar em casa. Por que você demorou tanto? Porque...


Talvez levasse uma surra.


Mas tinha dois pães numa mão e uma camisa na outra – e isso, por enquanto, era o que importava. Uma camiseta branca, de mangas cavadas (diferente, moderna), a primeira coisa na vida que comprava com o seu próprio dinheiro. Também não mandou pôr os pães na conta do pai, como das outras vezes. O problema é que sua alegria não estava sendo maior que o seu medo. Quem mandou demorar tanto?


Quando chegou à marcenaria, tio Ascendino ainda cantava benditos. Era um velho muito só que vivia rezando e praguejando contra as maldades do mundo. Tio Ascendino parou de cantar, parou a enxó, ajeitou os suspensórios e mostrou um caminhão azul para o menino.


Fiz esse para você. Gosta da cor azul?


O menino ofereceu um dos seus pães para o tio e tio Ascendino aproveitou para fazer um café. Enquanto esperava, e agora com uma alegria redobrada, por causa do presente, trocou de camisa.


– Só está é um pouco folgada – disse tio Ascendino – Mas não faz mal. Quando lavar, ela encolhe. E você está crescendo.


Esquecido do tempo e da enxada e da possibilidade de uma surra, o menino conversou muito, como se fosse um bom companheiro para o tio.


– Essa terra só se alegra quando tem missa, não é?

– É a pura verdade – disse tio Ascendino – É uma pena só ter missa de tempos em tempos. Já estamos precisando de um padre que more aqui e que celebre missa pelo menos todos os domingos.

– Também acho – disse o menino.

– E você, quando vai para o seminário?

– Não sei não, tio.

– Quando vejo você ajudando o padre, tão bonito, fico pedindo a Deus para ver você um dia metido numa batina. Ia ser o maior orgulho deste lugar. Mas talvez eu não viva tanto para ver isso.


Há uma certa hora no Junco que dá para se ouvir um carro de bois cantando do outro lado do universo. Entre 11 da manhã e 3 da tarde o sol treme e até as cigarras param de piar. O menino ia pela estrada atento aos buracos. Atento ao barulho das rodas de seu caminhãozinho, que ele empurrava com uma forquilha.


O presente do tio também serviu de perdão para a sua demora. O que não lhe perdoaram foi o fato de ele ter dado o seu dinheiro numa camisa que não valia nada. Burro. Burro e besta. Seu pai ordenou:


– Volte lá e devolva isso. Traga o dinheiro de volta.


Tinha que voltar à rua. Não havia outro jeito. No caminho, pedia a Deus que lhe jogasse na frente as três notas que ganhara do padre e que agora se encontravam nas mãos de Nego de Roseno. Se isso acontecesse, ele poria a camisa fora e voltava para casa sem ter que enfrentar o dono do armarinho. Era uma humilhação ter que se desfazer de um negócio que fizera por sua livre vontade. Mas se Deus não o iria socorrer, muito menos Nego de Roseno. Pediu o apoio de Dirce, com os olhos molhados. Dirce não se moveu. Pediu o apoio de Neguinho, que um dia havia caído a seus pés, no meio da rua, durante um ataque de epilepsia. Neguinho também não disse nada. Que espécie de homem era ele?, perguntava Nego de Roseno. Comprava uma coisa e depois se arrependia? Além do mais, a camisa estava melada de suor. Em casa, além de enxada, agora aguardava uma nova bateria de ameaças e descomposturas. E esse incidente iria perturbar-lhe o sono durante largo tempo da sua vida.


Como no dia que Neguinho se jogou no tanque velho e morreu afogado, para se vingar de um tapa que levara do pai. Em seus sonhos, o menino via Neguinho se debatendo e espumando no chão, com os olhos arregalados e suplicantes, como se estivesse lhe pedindo socorro. Essa cena iria se repetir noites a fio, por mais que o menino rezasse pela alma de Neguinho.


Só muito depois, quando a camisa já estava rasgada e não servia mais para nada, foi que ele deu o caso por encerrado.


Uma noite seu pai voltou um pouco tarde da rua e ficou conversando com sua mãe. Estava contado a respeito do que ouvira uns homens dizer sobre o menino.


– Estava eu, Josias, compadre Zeca e Nego de Roseno.


O menino ficou de orelha em pé. Ainda não haviam se esquecido daquela coisa.


– Aí Nego de Roseno disse: dá gosto ouvir aquele menino falar. Aquele menino é um homem – contava o velho – Os outros, todos, disseram a mesma coisa.


Agora, sim. Seu pai estava orgulhoso.


O filho dele era um homem, segundo Nego de Roseno.



quinta-feira, 28 de maio de 2009

Vozes da Caatinga

Verão de 91. O sol declinava no horizonte enquanto eu saboreava um chope na barraca do Abel, admirando o encantado entardecer da praia de Cruz das Almas, visto em direção da Ponta Verde, zona sul da maltratada Marajacap. De repente surgiu, entre as mesas, um garotão, pinta de hippie dos anos 60, e, dirigindo-se a mim, sem firula nem fricote, indagou:
- Você não é Toninho de Irineu?
Quem, senão um do Junco, para fazer tal pergunta?! Toninho de Irineu! Quanto tempo meus ouvidos não ouviam isso! No Junco, alguém é sempre de alguém, quer seja emancipado, quer seja portador de carta de alforria. Você só é alguém se tiver fiador genealógico, se for marcado pelo ferro da posteridade: “Rola de Dãozinho, Neura de Adelino Torres, Tonho de Ôzinho, Pedro de Chiquinho, Zefa de Mané da Lambregada, Zuza de Lolô de Febrônio e... Toninho de Irineu”
Só quem mora longe sabe o prazer e a emoção de um encontro casual com gente de sua terra. Lembranças tidas como esquecidas afloram de imediato. Pessoas transcendem o tempo, as notícias de outro mundo chegam fresquinhas e até um amigo guardado na ressaca vespertina da memória ressurge com todo vigor:
- Sou Luiz Eudes, sobrinho de Nenen de Roxinho, seu amigo...
Belíssima apresentação. Nada mais precisava ser dito. A amizade é a chave que abre as portas do mundo. Diz o dito-pop: “Mais vale um amigo na praça do que dinheiro na Caixa”. Velho Nenen, amigo-irmão, quantos anos de ausência, meu caro! Quantas léguas silenciaram nossas conversas no frescor da tarde no quintal da sua casa, ao sabor de uma “loira” gelada, onde uma vez ajudamos Telê Santana a escalar a Seleção Brasileira para jogar contra Camarões, na Copa da Itália! Fico feliz em saber que envelhecemos, mas não perdemos a ternura. A tirania da distância não pôde apagar as lembranças desses encontros. Havia testemunhas:
- Talvez você não se lembre de mim. Eu ficava brincando com Paulinho, quando você ia pra casa do meu tio.
Como haveria de me lembrar, meu caro Nenen? O menino cresceu. Os cabelos longos e encaracolados eram a lembrança viva da minha geração “peace and love”. Estava acompanhado da namorada, uma belíssima loira, que, anos antes, eu a havia visto na televisão, em Salvador, representando o Junco num concurso de beleza. Ao vivo era mais bonita. E muito simpática. E estava ali, ao meu lado, ao vivo e a cores. Será que ela me daria um autógrafo?
Novos tempos. Novos conceitos. Novos preceitos. Na minha época, quem era doido de ganhar o mundo com a namorada a tiracolo? Era um escândalo. A moça ficava proibida de ir à missa e de se confessar. Seria condenada sumariamente ao fogo do Inferno, que, certamente, queimava menos que a saliva cáustica das más línguas.
Esse encontro abriu o portal do Tempo reavivando a minha memória e coisas que eu pensava esquecidas, afloraram como afloram as espigas de milho nas manhãs friorentas de junho. E da indiferença, o arraial do Junco passou a ser uma lembrança intensa e presente no meu dia a dia.
Quando Antonio Carlos Magalhães estava prestes a perder o mandato de senador por violar o painel do Senado, o então prefeito Joaquim Neto apareceu para todo o país nos noticiários televisivos dizendo que ACM era seu rei, não sentindo o mínimo remorso por enxovalhar a honra e a ética do povo que representava. Queria apenas o glamour das câmaras de televisão, sem se importar com a imagem da cidade para o Brasil e para o mundo, certamente imaginando que o Junco escreveria a sua história por outros brados retumbantes, esquecido de que ousadia e a intrepidez de gente que mergulha fundo nas aventuras sem temer o desconhecido é que transformam a história de um povo de uma hora pra outra.
E Luiz Eudes, segundo Barack Obama, é o cara. Poderia se dar bem em qualquer lugar, mas não abandona o seu torrão. Move céus e terra em busca de colocar o arraial do Junco no mapa do mundo.
Os heróis sabem que o povo clama por um rei. E o prefeito, que se babava todo ao ouvir o nome “ACM”, na falta de sua majestade, devia gritar em alto e bom som: “Luiz Eudes, meu rei!”
Para o bem da humanidade, todo prefeito só dura, no máximo, oito anos. Toda sua obra será resumida numa foto em uma obscura galeria, sujeita aos humores do tempo e das traças, e que ninguém se dá ao trabalho de saber de seus feitos. Os heróis não precisam de fotos em galeria para serem lembrados. Suas obras são eternas.
Avoé, meu rei!

terça-feira, 26 de maio de 2009

Letras do Junco, literatos de Sátiro Dias

Por Luiz Eudes


Fotos retiradas do Orkut de Cristiana Alves


Seria uma semana como outra qualquer na capital baiana. Seria se não fosse o fato de que naquela semana estiveram reunidos no Centro de Convenções da Bahia escritores de todo o país. O local transformou-se em um celeiro de intelectuais, editores e livreiros em busca de solo fértil onde pudessem semear letras aos montes e colher leitores. Afinal já dizia o vate Antônio de Castro Alves “Bendito seja aquele que semeia livros as mãos cheias”. Então, porque não semear?


Seria uma tarde de domingo como outra qualquer se três junquenses não estivessem na grade de programação dos semeadores da Bienal do Livro da Bahia: Cristiana Alves, poetisa e cronista, lançando o seu mais novo livro “Sabor de uma lembrança” em tarde concorrida, reunindo boa parte do povo letrado do Junco no estande da Litteris Editora onde este aprendiz de escriba também autografou a sua participação no “O que é que a Bahia Tem”, não sem antes ter sentado na mesa da Câmara Baiana do Livro para assinar o “Contos e crônicas para viagem”.


O final se fez feliz quando o Café Literário ficou repleto de estrelas da literatura baiana sob o comando do melhor de todos de toda a sua geração, o junquense Antônio Torres (brilhante escritor e melhor ainda como amigo) que falou para uma platéia atenta e capaz de apanhar os frutos da colheita.


Seria uma semana como outra qualquer se três literatos não tivessem levado o seu povo a desfilar sua simpatia e simplicidade entre livros e autores no coração da intelectualidade baiana, brasileira e, também, estrangeira.


E viva o Junco! Viva Sátiro Dias!




sexta-feira, 22 de maio de 2009

AS EPÍSTOLAS

 A palestra do jornalista e escritor Luiz Gutemberg na terceira bienal alagoana do livro, em 2007, versou sobre literatura e jornalismo, ou seja, quando o primeiro cumpre o papel do segundo. Nessa conferência cultural, ficamos sabendo que houve uma época em Maceió que as cartas anônimas faziam parte do cotidiano, destruindo casamentos e criando desafetos. Descobriu-se, depois, que tais cartas tinham uma única matriz, deduzindo-se, então, que tudo não passava de calúnia de algum invejoso. 
Ele explicou como se escrever carta anônima sem deixar má impressão. Em primeiro lugar o missivista tem que parecer solidário com o infortúnio do outro e não usar da grosseria nem fazer afirmações deliberadas. Deve se escrever assim: “Olha, acho que era sua mulher entrando no motel tal, hora tal, com um cidadão parecido com fulano”. Ou: “Acho que vi você e o seu marido saindo do motel. Não sabia que você tinha pintando o cabelo de loira.” Sempre nessa linha, sutil, deixando o estrago nas entrelinhas. Mas uma coisa é de fundamental importância: jamais se deve assinar uma carta anônima.
Com a globalização e o uso disseminado do correio eletrônico, será que ainda se usa carta anônima? Acho que não. A carta convencional perdeu-se nos meandros da inutilidade, mais por culpa da pressa do ser humano em obter notícias em tempo real, do que propriamente pela falta de assunto. Em segundos, milhões de cartas virtuais cruzam o ar em endereços criptografados e decodificados eletronicamente, sem o calor do manuseio humano nas centrais de triagens, do carteiro e, principalmente, do missivista.
As cartas eletrônicas, se ganham na velocidade, perdem na qualidade, pois, muitas vezes, escritas às pressas, as palavras são abreviadas, as mensagens são curtas, que mais lembram o telegrama de antigamente, aqueles em Código Morse, vistos em filmes de faroeste. Falando nisso, alguém ainda se lembra o que é um telegrama?
A carta, escrita à mão, tem uma inquestionável vantagem sobre a eletrônica: o cheiro. Por mais bacana que seja o chamado e-mail, por mais bem escrito que seja, não terá o cheiro nem o perfume usado naquele momento de devaneios da pessoa que escreve. Como se achar as impressões digitais em um e-mail? Como identificar as lindas caligrafias femininas, que levavam alguns homens a suspirar e a se apaixonar pela missivista? O maior inventor das fontes de editor de texto não conseguiu inventar uma fonte com a caligrafia feminina, pois, coisa que só Deus sabe o porquê, só a elas coube o feitiço e o encanto das letras (e de outras coisas também).
Cartas e telegramas faziam parte do currículo escolar e era obrigatório o seu estudo nas primeiras séries. Uma carta bem escrita, de imediato revelava o aluno para o mundo da Gramática, pois nela havia de tudo um pouco, desde as simples palavras e pronomes de tratamento, ao intricado jogo das orações subordinadas, reforma ortográfica e conjugações verbais. Havia cartas pessoais, cartas comerciais, cartas disso, cartas daquilo e as livrarias vendiam papel apropriado para carta, que não podia ser qualquer um nem escrita de vermelho ou verde, que se dizia ser “antididático”, para não se chamar diretamente o missivista de “grosso”. As editoras faturavam com a venda de livros com modelos de cartas comerciais, de amor, de amizade, modelos para pedir dinheiro a político e de se iniciar um amancebamento.
Havia os floreios, as letras requintadas, desenhadas, verdadeiras obras de arte. Você já imaginou Pero Vaz de Caminha enviando um e-mail para el-rey? D. Manuel, rei de Portugal de então, com o Tesouro Real atolado até o pescoço em dívidas, preocupado com a conta de telefone, com os vírus e spams, deletaria a mensagem e não teríamos testemunha documental do Descobrimento, nem o primeiro escrito de nossa Literatura.
Na adolescência recebi uma carta de uma namorada de Sergipe. O intróito: “Meu amor, você é o lenitivo do meu ser, o refrigério de minha alma.” Estanquei. Eu, com dezessete, ela, com dezesseis anos. Aquilo não era linguagem de adolescente. Mostrei a carta para o meu primo Paulo, que morava na mesma rua, em Alagoinhas. Ele também ficou sem saber o que era lenitivo, muito menos refrigério. “Ser”, ainda dava para decifrar. Paulo sugeriu: “Isso deve ser coisa desses livros de cartas de amor. A minha irmã tem um. Vamos lá dar uma olhada!” Fomos. Realmente ela havia copiado de um livro chamado “Como escrever cartas de amor”

"Que sacana! E agora, Paulo, o que é que faço?!"

"Peraí..." - pegou o livro, folheou, e respondeu - "Diga que a resposta está na página 105."

Nunca mais tive notícias da namorada. 
O escritor Antonio Torres enche o peito de orgulho quando, em suas palestras, diz que se descobriu escritor escrevendo cartas para o povo de sua terra, e que os pés-de-moleque, rosários de ouricuri e outras guloseimas foram seus melhores direitos autorais já pagos até hoje. Siga o exemplo desse insigne escritor e deixe aflorar o escritor que existe em você: escreva uma carta. Sempre haverá alguém querendo saber notícias suas, do seu povo, da sua terra. O correio convencional ainda é o meio mais seguro, mais rápido e mais barato para comunicação interpessoal. A Internet é pra quem tem tempo disponível, paciência de Jó e a grana de tio Patinhas.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

FELIZ, APESAR DE TUDO

Por José Pedreira da Cruz*
Baseado em episódios da vida real



Fotos: http://petropolisnoseculoxx.zip.net/images/APP.jpg [estudantes]
http://progaltuni.blogspot.com/2007/12/retrica-e-o-pragmatismo-da-aliana-para.htm




Fruto de uma árvore genealogicamente humilde, aqui, com o meu primeiro raio de luz, desabriguei-me choroso das entranhas maternas e me inseri numa árida e sofrida região do terceiro mundo.

Surgi tal qual um algarismo a ser inserido nos registros e nas estatísticas de governos, onde, ainda, aqui estou, sedento de justiça, junto a uma leva de milhões de compatriotas que só servimos como dados de referência para a rolagem das dívidas ou, apenas, como ferramenta propícia para o enriquecimento de exploradores da pobreza.

Porém, com tantas mazelas, ainda me sobra tempo e espaço para sorrir e dizer que sou feliz, mas creio que o digo pelo simples e voluntário ato de falar.

– Sim, sou feliz – repito –, apesar de ter saboreado do meu primeiro chocolate aos 14 anos de idade, e isto graças ao “Seu” Kennedy. Foi este bondoso homem que através do programa “Aliança para o Progresso” mandou vitaminar as criancinhas desnutridas do mundo afora e, entre elas, eu. Foi isto o que me disse a professora Teresa, a grande lapidadora da minha negra ignorância. Foi ela quem me confidenciou ser o Tio Sam o remetente daquela deliciosa comida feita à base de chocolate, e eu, na mais pura ingenuidade, julgava ser verdadeiramente sobrinho do Tio Sam.

**

Diminuíram-se assim minhas fraquezas e adquiri mais ânimo e energias com o dito alimento, do qual, se bem me lembro, estava higienicamente embalado em saco plástico – creia, eu nunca tinha visto um saco plástico –, e nele o slogan:

“USA X BRAZIL”
“ALIANÇA PARA O PROGRESSO”
“ALIMENTO PARA A PAZ”

Repleto de incredulidade com o tal slogan, eu me indagava: por que alimento para a paz se a guerra com o Paraguai cessara há décadas? Estariam inventando outras? Deus que nos acuda! Ficava eu falando a sós, enquanto alisava o saco do chocolate estampado com uma bandeira listrada rubramente e divinamente estrelada. Foi ai que decorei a flâmula americana e passei a achá-la muito bela. Ela ocupava quase toda a embalagem do chocolate, enquanto que a de destino, a auriverde, bem miudinha, lá num cantinho do saco, mal se podia ler o recado que nos foi atribuído numa faixa branca cortando o céu do Brasil: “Ordem e Progresso”. “Ordem nós temos em demasia, mas o tal progresso só vem de muletas, assim nos dizia a professora Teresa”.


**

Meu status como comedor de chocolate americano estava em alta, e eu nem imaginava que naquela mesma época as criancinhas da Biafra, lá no além–mar, eram tão desnutridas quanto eu, e se empanturravam, também, do dito alimento, e que em suas angelicais inocências, tais quais as minhas, acreditavam piamente serem verdadeiros sobrinhos do tal Tio Sam. Éramos irmanados nas necessidades calóricas e nas ignorâncias.

Mas, num entardecer de certo dia, o destino cumprindo seus planos me fez sentar num banco de jardim d’uma cidadezinha interiorana, aonde eu me deliciava com as músicas dos serviços de alto-falantes, quando, abruptamente, a melodia cessou e o locutor com uma voz embargada e trêmula, balbuciando, alertou:

– Agência Press - “Estados Unidos, Dalas, Texas”, urgente:
“O presidente John Fitzerald Kennedy acaba de falecer vitimado em atentado”.

Estupefato com aquela estupidez eu me arrepiei dos pés à cabeça.

– Mataram “seu” Kennedy?! Mataram o presidente! – gritei exclamando aos ventos e interrogando a mim mesmo.

– Mataram Kennedy?
– Valha-me Deus!

Era só o quê se dizia; era só o quê se ouvia.

Com certo pesar o homem do alto-falante repetia aquela lastimada notícia por seguidas vezes sem fundo musical e sem nenhum comentário e em seguida desligava o som deixando a população da cidade em êxtase, mas, passados alguns minutos, ele voltava a noticiar a mesma fala. Parecia que só queria se recompor.

Num piscar de olhos surgiram tarjas negras em portas, janelas e carros, e tudo parou; e o luto foi iminente; e a comoção transformou-se em lágrimas nos olhos dos habitantes do planeta.

Momentaneamente tive uma sensação de ter perdido alguém da familia.

Levantei-me do banco do jardim e silenciosamente me recompus monologando:

“Não, ele não é meu parente, nem tampouco meu presidente!”

Tive calafrios ao imaginar que alguma coisa muito grave estaria acontecendo nos bastidores da guerra fria, e que o mundo, doravante, corria sério perigo frente à temida corrida atômica. Só havia um Kennedy para frear a escalada da morte que se imaginava iminente. E agora, como seria sem ele? Morreríamos? Será que nunca mais eu comeria um chocolate em pó? Indaguei-me, e nesse instante me lembrei de um tristonho diálogo que há anos atrás ouvira entre minha mãe e nossa vizinha Don’ana que nervosamente eufórica punha a cabeça para fora da janela e gritava:

– Comadre Maria! Ôôô comadre!

– O quê é comadre Ana? – respondeu-lhe mamãe, segurando-me ao colo.

– O presidente Vargas morreu! O rádio disse que foi suicídio.

– Valha-me Deus! Suicídio não, comadre! Suicida não entra no Céu! – questionou mamãe pondo em pauta um dos princípios da sua fé e concluiu sua tristeza dizendo: e agora, comadre? O que vai ser dos pobres?

Não deu para segurar a emoção e aparei uma gota que rolando do seu rosto caiu na minha mão.

– Estamos perdidas, comadre! – retrucou Don’ana, também lacrimosa.

Naquele instante uma onda de tristeza apoderou-se de mim, e também chorei, mas certamente foi o choro de uma criança que nem mesmo sabia o significado da palavra suicídio. Creio que aquelas pequenas lágrimas foram pelo fato de me sentir um pobre prematuramente desamparado, e que, sequer, havia até então degustado um chocolate.

Depois me senti calejado com o descaso que me impuseram, e me consolei ao ver-me equiparado a outras tantas milhões de almas desamparadas que perambulam pelo mundo, e que, provavelmente, ainda vivem na mais promíscua necessidade sem nunca se ter deliciado de um chocolate em pó made in USA, made in Brazil, nem made in lugar nenhum, mas, mesmo assim, se diz feliz.


*José Pedreira da Cruz é mais conhecido como Tico de Tiago, irmão de Delosmar e Zé Walter.