quarta-feira, 20 de maio de 2009

FELIZ, APESAR DE TUDO

Por José Pedreira da Cruz*
Baseado em episódios da vida real



Fotos: http://petropolisnoseculoxx.zip.net/images/APP.jpg [estudantes]
http://progaltuni.blogspot.com/2007/12/retrica-e-o-pragmatismo-da-aliana-para.htm




Fruto de uma árvore genealogicamente humilde, aqui, com o meu primeiro raio de luz, desabriguei-me choroso das entranhas maternas e me inseri numa árida e sofrida região do terceiro mundo.

Surgi tal qual um algarismo a ser inserido nos registros e nas estatísticas de governos, onde, ainda, aqui estou, sedento de justiça, junto a uma leva de milhões de compatriotas que só servimos como dados de referência para a rolagem das dívidas ou, apenas, como ferramenta propícia para o enriquecimento de exploradores da pobreza.

Porém, com tantas mazelas, ainda me sobra tempo e espaço para sorrir e dizer que sou feliz, mas creio que o digo pelo simples e voluntário ato de falar.

– Sim, sou feliz – repito –, apesar de ter saboreado do meu primeiro chocolate aos 14 anos de idade, e isto graças ao “Seu” Kennedy. Foi este bondoso homem que através do programa “Aliança para o Progresso” mandou vitaminar as criancinhas desnutridas do mundo afora e, entre elas, eu. Foi isto o que me disse a professora Teresa, a grande lapidadora da minha negra ignorância. Foi ela quem me confidenciou ser o Tio Sam o remetente daquela deliciosa comida feita à base de chocolate, e eu, na mais pura ingenuidade, julgava ser verdadeiramente sobrinho do Tio Sam.

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Diminuíram-se assim minhas fraquezas e adquiri mais ânimo e energias com o dito alimento, do qual, se bem me lembro, estava higienicamente embalado em saco plástico – creia, eu nunca tinha visto um saco plástico –, e nele o slogan:

“USA X BRAZIL”
“ALIANÇA PARA O PROGRESSO”
“ALIMENTO PARA A PAZ”

Repleto de incredulidade com o tal slogan, eu me indagava: por que alimento para a paz se a guerra com o Paraguai cessara há décadas? Estariam inventando outras? Deus que nos acuda! Ficava eu falando a sós, enquanto alisava o saco do chocolate estampado com uma bandeira listrada rubramente e divinamente estrelada. Foi ai que decorei a flâmula americana e passei a achá-la muito bela. Ela ocupava quase toda a embalagem do chocolate, enquanto que a de destino, a auriverde, bem miudinha, lá num cantinho do saco, mal se podia ler o recado que nos foi atribuído numa faixa branca cortando o céu do Brasil: “Ordem e Progresso”. “Ordem nós temos em demasia, mas o tal progresso só vem de muletas, assim nos dizia a professora Teresa”.


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Meu status como comedor de chocolate americano estava em alta, e eu nem imaginava que naquela mesma época as criancinhas da Biafra, lá no além–mar, eram tão desnutridas quanto eu, e se empanturravam, também, do dito alimento, e que em suas angelicais inocências, tais quais as minhas, acreditavam piamente serem verdadeiros sobrinhos do tal Tio Sam. Éramos irmanados nas necessidades calóricas e nas ignorâncias.

Mas, num entardecer de certo dia, o destino cumprindo seus planos me fez sentar num banco de jardim d’uma cidadezinha interiorana, aonde eu me deliciava com as músicas dos serviços de alto-falantes, quando, abruptamente, a melodia cessou e o locutor com uma voz embargada e trêmula, balbuciando, alertou:

– Agência Press - “Estados Unidos, Dalas, Texas”, urgente:
“O presidente John Fitzerald Kennedy acaba de falecer vitimado em atentado”.

Estupefato com aquela estupidez eu me arrepiei dos pés à cabeça.

– Mataram “seu” Kennedy?! Mataram o presidente! – gritei exclamando aos ventos e interrogando a mim mesmo.

– Mataram Kennedy?
– Valha-me Deus!

Era só o quê se dizia; era só o quê se ouvia.

Com certo pesar o homem do alto-falante repetia aquela lastimada notícia por seguidas vezes sem fundo musical e sem nenhum comentário e em seguida desligava o som deixando a população da cidade em êxtase, mas, passados alguns minutos, ele voltava a noticiar a mesma fala. Parecia que só queria se recompor.

Num piscar de olhos surgiram tarjas negras em portas, janelas e carros, e tudo parou; e o luto foi iminente; e a comoção transformou-se em lágrimas nos olhos dos habitantes do planeta.

Momentaneamente tive uma sensação de ter perdido alguém da familia.

Levantei-me do banco do jardim e silenciosamente me recompus monologando:

“Não, ele não é meu parente, nem tampouco meu presidente!”

Tive calafrios ao imaginar que alguma coisa muito grave estaria acontecendo nos bastidores da guerra fria, e que o mundo, doravante, corria sério perigo frente à temida corrida atômica. Só havia um Kennedy para frear a escalada da morte que se imaginava iminente. E agora, como seria sem ele? Morreríamos? Será que nunca mais eu comeria um chocolate em pó? Indaguei-me, e nesse instante me lembrei de um tristonho diálogo que há anos atrás ouvira entre minha mãe e nossa vizinha Don’ana que nervosamente eufórica punha a cabeça para fora da janela e gritava:

– Comadre Maria! Ôôô comadre!

– O quê é comadre Ana? – respondeu-lhe mamãe, segurando-me ao colo.

– O presidente Vargas morreu! O rádio disse que foi suicídio.

– Valha-me Deus! Suicídio não, comadre! Suicida não entra no Céu! – questionou mamãe pondo em pauta um dos princípios da sua fé e concluiu sua tristeza dizendo: e agora, comadre? O que vai ser dos pobres?

Não deu para segurar a emoção e aparei uma gota que rolando do seu rosto caiu na minha mão.

– Estamos perdidas, comadre! – retrucou Don’ana, também lacrimosa.

Naquele instante uma onda de tristeza apoderou-se de mim, e também chorei, mas certamente foi o choro de uma criança que nem mesmo sabia o significado da palavra suicídio. Creio que aquelas pequenas lágrimas foram pelo fato de me sentir um pobre prematuramente desamparado, e que, sequer, havia até então degustado um chocolate.

Depois me senti calejado com o descaso que me impuseram, e me consolei ao ver-me equiparado a outras tantas milhões de almas desamparadas que perambulam pelo mundo, e que, provavelmente, ainda vivem na mais promíscua necessidade sem nunca se ter deliciado de um chocolate em pó made in USA, made in Brazil, nem made in lugar nenhum, mas, mesmo assim, se diz feliz.


*José Pedreira da Cruz é mais conhecido como Tico de Tiago, irmão de Delosmar e Zé Walter.



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